sexta-feira, 26 de abril de 2013

kobayashi issa

                                                                                                                      
                                                                                                    

Apenas um homem
e uma mosca apenas
num vasto dormitório

(trad. r.m., a partir do inglês - david g. lanoue) 


Ao lado de Bashô e Buson, Kobayashi Issa (1763-1827) é um dos vértices da trindade de mestres haicaístas japoneses. Os três, cada qual a sua maneira, trabalharam de modo exemplar a matéria pouca e fugidia do instantâneo e do corriqueiro. Cada qual, a partir do banal e do mínimo necessário, produziu em quase silêncio seus bonsais de enormidades.

Se Buson é conhecido como o poeta que mais e melhor apurou o rigor técnico e estilístico do haicai, e Bashô é o mais seminal e original dentre todos os poetas do Japão, Issa em nada lhes fica devendo em termos de relevância e autenticidade. Com sua objetividade um tanto indisciplinada e sua dicção coloquial, muito antes de quaisquer dos modernismos no Ocidente, arejou e inovou a poesia nipônica.    

Sua vida e obra são ao mesmo tempo um infindável repertório de calamidades pessoais, por um lado, e por outro, uma expressão de humor e delicadeza ímpares, registrados em mais de cinco mil poemas. Nascido no distrito de Nagano, Kobayashi Issa passou por uma sequência inacreditável de infortúnios. Perdeu sua mãe aos três anos de idade; sua madrasta o expulsou de casa com apenas treze anos; desamparado e miserável, comeu o pão que o diabo amassou ao mudar-se para Tóquio; seus quatro filhos do primeiro casamento morreram ainda na infância (sob o impacto de uma dessas mortes, escreveu: Este mundo de orvalhos/ é só um mundo de orvalhos/ e mesmo assim), bem como a mulher, vítima dos reveses de seu último parto. Nada disso, porém, o impediu de escrever uma obra delicada, tocante, norteada pelos princípios empáticos do zen-budismo.

Diz-se que apenas aos 25 anos Kobayashi Nobuyuki teria arriscado seus primeiros versos, e suas viagens pelo interior do Japão certamente aguçaram-lhe a imagística e forneceram-lhe alguns de seus temas mais caros. Seu nome artístico teria exatamente aí sua origem: Issa – “xícara-de-chá” em japonês – faria referência ao tempo de estada do poeta em cada um dos lugarejos por que passou: tempo suficiente, antes de novamente errar pelas estradas, apenas para uma xícara.


Nos olhos da libélula
refletem-se
montanhas distantes

(trad. paulo franchetti)


Em termos de deambulações ou vadiagens, Issa, até certo ponto, se aproxima de outro grande poeta: Arthur Rimbaud. Conforme escreveu Graham Robber, um dos mais importantes biógrafos do poeta ardenense: “Como tantos viajantes inveterados, ele estava preso a seu ponto de partida [Charleville] por um poderoso elástico.”  No caso de Issa, o distrito de Nagano. A comparação, no entanto, não vai muito além disso: Rimbaud morreu jovem, “mudo” e profundamente seguro de que tudo e todos eram desprezíveis; Issa, ao contrário, budista que era, morreu velho e poeta: até o fim "fixou vertigens" e "anotou silêncios", transformando mesmo as maiores dores em atos – em haicais – de alegria e louvor à vida.

Encontram-se ali, na obra de Kobayashi Issa, os consagrados elementos da tradição haicaísta: a economia de meios, a objetividade contemplativa, a apologia do silêncio, a reprodução ou cristalização do efêmero. Tudo com aquele estilo que, fiel na forma e no conteúdo à transitoriedade cíclica de todas as coisas, expressa-se num “voluntário inacabamento” (Octavio Paz). Neste sentido, o haicai de fato estabelece, em prejuízo da ação e da retórica, o primado da contemplação. O haicai: sucinto, belo, fugaz. Como três gotas de orvalho. Três versos. Três gotas de algum surpreendente colírio num olhar já enfastiado de ver o mundo.

Se tudo isso vale também para os haikus de Kobayashi Issa, a eles acresceram-se ainda o humor e a emoção. E uma "tristeza leve" e a "alegre melancolia", um até então inédito ardor que para muitos soou como apelação ou pieguice. Afinal, este é o autor de versos pungentes como: Venha brincar comigo/ pardalzinho/ sem pai nem mãe. Exatamente por isso, os ocidentais tenderiam a apreciá-lo mais do que apreciam qualquer outro mestre da poesia japonesa. Veja o que diz o professor Paulo Franchetti, num texto com o qual topei enquanto fuçava pela internet:

“Para o leitor ocidental, Issa é talvez o mais acessível dos grandes haikaístas. É mais fácil lê-lo e gostar dele do que de Bashô ou Buson. Isso talvez se deva em parte ao humor franco e simples de boa parte de seus textos, ou à sua preferência por temas ligados à vida e comportamento de animais e insetos. A principal razão, porém, para essa acessibilidade é o fato de Issa pouco se valer do procedimento mais comum da poesia japonesa, que é a alusão a fatos, poemas e personagens das obras clássicas e nipônicas. Em sua vasta obra encontram-se, entre altos e baixos, objetividade e pieguismo, iluminação e vulgaridade, um sempre sensível calor humano, uma sempre tocante e despojada apresentação (muitas vezes cômica) da condição humana.”

E a condição humana, no fim das contas, é universal...

Embora o parecer transcrito acima seja quase que incontrastável, ele deixa sem resposta uma óbvia pergunta: se é inteiramente verdade o que escreve Franchetti, por que então, mais do que em qualquer outro lugar do Ocidente, Issa é ainda mais lido, compreendido e amado em seu próprio país?

A verdade é que, exceto aos tradicionalistas, japoneses ou não, exceto àqueles poucos que ainda teimam em acusar-lhe um estilo adulterino e a suposta marca do diluidor, Kobayashi Issa, como "uma eterna mosca de verão", permanecerá voltando e tornando a pousar.

Esta noite, por exemplo, em que Nobuyuki visitou-me para uma xícara de chá.                                
                                                                                 
                                                                                                                             
Agora que saí
Podeis fazer amor à vontade
Moscas da minha cabana

                 (trad. jorge sousa braga)                  


                                                                                                                             r.m.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

haroldo de campos

     
   
mosca ouro
mosca fosca
mosca prata
mosca preta
mosca íris
mosca reles
mosca anil
mosca vil
mosca azul
mosca mosca

mosca branca
poesia pouca



o azul é puro
o azul é pus
de barriga vazia

o verde é vivo
o verde é vírus
de barriga vazia

o amarelo é belo
o amarelo é bílis
de barriga vazia

o vermelho é fúcsia
o vermelho é fúria
de barriga vazia

a poesia é pura
a poesia é para
de barriga vazia



poesia em tempo de fome
fome em tempo de poesia
poesia em lugar do homem
pronome em lugar do nome
homem em lugar da poesia
nome em lugar do pronome
poesia de dar o nome
nomear é dar o nome
nomeio o nome
nomeio o homem
no meio a fome
nomeio a fome
      
   
* OBS: estes versos foram “degravados” de um cd de récitas concretistas. o próprio haroldo de campos os recitou assim, como se fossem – as três peças – um único poema. como os transcrevi apenas a partir da audição, é bem possível que os originais não sejam, em termos de estrofação e espacialização, exatamente como reproduzi acima.

terça-feira, 2 de abril de 2013

leopoldo maría panero/ trad. jorge melícias


              
XV


Eu, François Villon, aos cinquenta e um anos
gordo e corpulento, de lábios cor de cinza
e bochechas que o vinho arroxeara,
a uma corda enforcado
sei tudo acerca do pecado.
Eu, François Villon,
de uma corda pendido
balanceio-me lento, tendo sido
pior que Judas, que também morreu enforcado.
As velhas estremecem ao ouvir as minhas façanhas
pois não tive respeito pela vida humana.
Que o vento me mova, oiço já próximas as vozes
daqueles a quem mandei pentear macacos.
Esperam-me no inferno
e esfregam as mãos
porque correu ali, do Lete* ao Cócito**,
que por fim Villon tinha morrido enforcado!
E a lua aparece, e ilumina a forca
dando ao meu rosto a cor do sangue,
eu, que me fiz de mau entendedor do que fazia
até que por fim morri enforcado.
E os lobos ladram em torno do patíbulo
e, semelhantes a ratazanas, as crianças gritam:
Villon morreu enforcado!
Velhas que me insultáveis na estrada escura:
sabei que o sémen molha os meus quadris
e é fresco e saboroso o sémen do enforcado!
Que os meus dentes façam
proveito ao teu caldeirão
bruxa dos confins, tu a quem admiro
conhecedora de bruxedos, de poções e de feitiços
mais poderosos que  a fé e que os apóstolos
de quem se riu Simão, o Mago***, mais apta que eles
a conhecer a dor
deste que nem um sepulcro merece!
E que o vento, ao amanhecer, amanhã,
vaidosamente diga a rãs e a vermes
Villon tornou-se finalmente célebre
pois no fim uma forca delineia a sua figura
Villon morreu enforcado!
E que da minha mão emurchecida caia a rosa
que os meus dentes apertaram
pois ela soube os meus crimes
e foi minha confidente
e que o diga ela ao mundo, caindo ao chão
Villon morreu enforcado!
Logo virá a canalha
fossar no meu túmulo
e urinarão em cima, e certamente os amantes
farão amor sobre os meus ossos
e será o nada a minha mais simples recompensa
para que o diga,
não sei se o nada ou a rosa:
Villon morreu enforcado!
De mim saberão as crianças
de idades vindouras
como de um grande pecador
e assustadas correrão a esconder-se
debaixo dos lençóis quando as suas mães
lhes disserem: “Cuidado, vem aí.”
E essa será a fama de Villon, o Enforcado.
E será tanta a minha fama que prefiro o esquecimento
porque um dia, amanhã
desse futuro que o fedor
assemelha à memória, uma mão
deixará cair, ao ouvir o meu nome
o fruto do cu, o excremento
e a minha vida, e a minha carne, e todos os meus escritos
serão, prometo, só para as moscas!

trad. jorge melícias