quinta-feira, 29 de novembro de 2012

manuel bandeira

                                                      
JOSÉ RIBERA, santa maria egipcíaca (1651)

















               
BALADA DE SANTA MARIA EGIPCÍACA
                     
                     
Santa Maria Egipcíaca seguia.
Em peregrinação à terra do Senhor.

Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de
                                                                   [mártir...

Santa Maria Egipcíaca chegou
À beira de um grande rio.
Era tão longe a outra margem!
E estava junto à ribanceira,
Num barco,
Um homem de olhar duro.

Santa Maria Egipcíaca rogou:
– Leva-me à outra parte do rio.
Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe.

O homem duro fitou-a sem dó.

Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de
                                                                   [mártir...

– Não tenho dinheiro. O senhor te abençoe.
Leva-me à outra parte.

O homem duro escarneceu: – Não tens dinheiro,
Mulher, mas tens teu corpo. Dá-me o teu corpo,
                                                           [e vou levar-te.
E fez um gesto. E a santa sorriu.
Na graça divina, ao gesto que ele fez.

Santa Maria Egipcíaca despiu
O manto, e entregou ao barqueiro
A santidade da sua nudez.

                                 
                     (manuel bandeira)

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

sábado, 24 de novembro de 2012

Dafne

                               
GIAN LORENZO BERNINI, apolo e dafne (1622-1625)

  
                                                      
No bosque fundo, o mundo canta e é mudo.
(Pessoa canta: o mito é nada, tudo.)
E as ninfas são, as ninfas dão... mas uma
não! Aquela: a ninfa-nunca, a fulva Dafne,
filha de Ladão, pomba sem milhafre,
que nunca amou ninguém por nada, em suma.

No bosque fundo, o mundo canta e é mudo.
(Pessoa canta: o mito é nada, tudo.)
Amor que também ama sente asco.
Bem-lhe-quer, mal-lhe-quer, as duas flechas
somaram sim com não – e a conta fecha?
Amor que folga ou falta entorna o frasco.

Dafne dispara. E a crina solta as tranças.
(Um deus, mais do que um fauno, jamais cansa;
o que cuspiu Cupido não se evita.)
Fugindo ao deus que louco corre à cata,
correndo seminua pela mata,
o desespero a deixa mais bonita.

E à sombra do milhafre sobre a pomba
(Cupido entre as folhagens ri-se e zomba),
suplica a presa, a fuga quase finda:
 – Eu quero ser loureiro que não ama!
Loureiros não se deitam numa cama!
Mas natureza é mais que mito ainda...

De estar tão arvorada, a lenha exposta,
o corpo se arrepende e quer e gosta
e agora, aberta em flor, cheira a malícias;
implora a Zeus que torne em vento Apolo:
que o deus lhe passe sempre pelo colo,
que vente por seus louros em carícias.
                              
                
* inspirado nos versos finais do soneto II: 12/ Sonetos a Orfeu, de Rilke.
[Rilke, Rainer Maria. Poemas; tradução e introdução de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.]      

terça-feira, 20 de novembro de 2012

post-scriptum

     
                          : la petite mort


[aqui termina
a ínfima viagem órfica
no aqueronte da saliva]


ossários de amor são líquidos
melancólicos felizes


e se o dia implodiu-se               se só a respiração
            sobre si                                tem vigas

                    é preciso dizer: seus peitos

não são ruínas;

barcos de aqueus, de aquéns
subindo e descendo
no horizonte

(res-pi-ra)

crianças
subindo e descendo
a colina

[aqui termina
a ínfima viagem órfica
no aqueronte da saliva]


o que sei eu da Morte
que sei eu de orfeu e suas culpas,
eu que mal e mal
sei da língua e suas liras?

 claro que sim, foi uma delícia, minha lúdica lúbrica nua
eurídice
               

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

9 línguas

                                                 
                    estou aqui: de corpo e língua
                        
                    exact warm unholy
                                   e.e. cummings


1

e se eu lhe desse
um beijo de língua portuguesa

se eu dissesse
que seus ossos
são ruínas tomadas de vegetação rasteira

se eu dissesse
que seus olhos
foram atravessados por um pássaro

que seu sorriso apodreceu meu ódio
como a lepra

se eu dissesse

que, se de sua nudez você se despe
a caminho da rua,

me perde e excomunga
a luz do quarto em sua pele

e se eu       não dissesse

                                           ?
     
                   
2


queria dizer
não com a língua de falar
(mas) a de lamber


3

cuspir a língua
no criado-mudo, para

que no corpo tudo
sejam línguas.

abrir a janela
ao silêncio da estrela:

aquela que virgem,
rameira,
brilha no eremitério
das ruas,
                           brilha
                           em sua virilha.

e deixá-la falar
a noite inteira
 pelo amor de alumiar 
o que nenhuma estrela
é capaz de falar 


4

Amar.

com mãos absurdas



                      (como um mudo exaltado)


5

entoar o CÂNTICO DOS CÂNTICOS
apenas com as mãos


6

revogar o idioma
e expatriar os pés
a primeira vez

de sua nudez
na moldura móvel
de minhas mãos


7

absurdamento:
fiquei parado o coração batendo,

surrado
por uma corja de borboletas.

(não que fosse sua primeira nudez
o meu primeiro alumbramento.)


8

na calada da noite.


amolar
contra a pedra do olho
um relâmpago enferrujado.

e aproveitá-lo (mesmo que contrário
ao silêncio à fala)

como piercing de língua
numa boca que se cala




    o co
            lapso dos
            andaimes da voz

            dos andaimes do
                                             colibri
             
                      do ex-libris

o dia implodido                       só a respiração
            sobre si                                tem vigas


                 o templo vazio

                              pro

                              fanou

 tudo           ,      
                              tu
                              do que resta
                                                está


           h   o   r   i   z   o   n   t   a   l
                               

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

e.e. cummings (VI)

 
o amor é um lugar...

o amor é um espaço
& por esse espaço de
amor se movem
(com o brilho da paz)
todos os espaços

o sim é um mundo
& nesse mundo de
sim vivem
(habilmente enrodilhados)
todos os mundos


tradução: r.m. & r.j.


love is a place...

love is a place
& through this place of
love move
(with brightness of peace)
all places

yes is a world
& in this world of
yes live
(skilfully curled)
all worlds
       

terça-feira, 13 de novembro de 2012

e.e. cummings (V)

 
im(abelha)ó


im(abelha)ó
v(em)el
você(um
a)está(ú
nica)

dorm(rosa)indo?


tradução: r. m.


un(bee)mo


un(bee)mo
n(in)g
are(th
e)you(o
nly)

asl(rose)eep

domingo, 11 de novembro de 2012

pablo neruda

                             

CONSTANTIN BRANCUSI, musa adormecida (1910)


                                           
SONETO XVII

Não te amo como fosses rosa de sal, topázio
ou a flecha de cravos que propagam o fogo:
eu te amo como se amam certas coisas escuras,
secretamente, aqui, entre a alma e a sombra.

Eu te amo como a planta que não floresce e leva
dentro de si, oculto, o lume daquelas flores,
e o difícil aroma desprendido da terra,
graças a teu amor, vive obscuro no meu corpo. 

Te amo sem saber como, nem quando, nem de onde,
te amo diretamente sem orgulho ou problemas:
assim te amo pois não sei amar de outra maneira,

senão assim de modo em que eu não seja ou sejas,
tão próximo que tua mão em meu peito é minha,
tão perto que se fecham teus olhos se adormeço.   
       
versión: r.m. 

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

pintor e poeta (paul klee)

 
POEM

Water
Waves on the water
A boat on the waves
On the boat-deck, a woman
On the woman, a man.

                             (1906)


tradução: anselm hollo (1962)


POEMA

Água
Ondas sobre a água
Um barco sobre as ondas
Sobre o chão do barco, uma mulher
Sobre a mulher, um homem.

                             (1906)


trad. a partir do inglês: r.m.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

aquarelas em D maior

                               
                                 
CAETANO VELOSO, trem das cores (1982)
               
PAUL KLEE, nuvens sobre Bor (1928)

terça-feira, 6 de novembro de 2012

frank o'hara

                                                                  

MIKE GOLDBERG, sardines (1955)

           
POR QUE NÃO SOU PINTOR

               
Não sou pintor, eu sou poeta.
Por quê? Acho que eu preferiria
ser um pintor, mas não sou. Bem,

por exemplo, Mike Goldberg
está começando um quadro. Eu apareço.
"Senta aí e bebe um pouco" ele
diz. Eu bebo; nós bebemos. Dou uma
olhada. "Você escreveu SARDINHAS nele."
"Pois é, faltava alguma coisa ali."
"Ah". Vou embora e os dias se vão
e apareço de novo. O quadro
vai em frente, e eu me vou, e os dias
se vão. Apareço. O quadro está
terminado. "Cadê as SARDINHAS?"   
Tudo o que sobrou são apenas
letras, "Era demais," Mike diz.

Mas e eu? Um dia estou pensando
numa cor: laranja. Escrevo uma linha
sobre o laranja. Em pouco tempo a coisa vira
uma página inteira de palavras, não linhas.
Depois outra página. É preciso haver
muito mais, não do laranja, das
palavras, de como é terrível o laranja
e a vida. Os dias se vão. Até mesmo
em prosa, sou um poeta de verdade. Meu poema
está terminado e eu não mencionei
o laranja ainda. São doze poemas, eu os chamo de
LARANJAS. E um dia numa galeria
vejo o quadro de Mike, chamado SARDINHAS.

(1971)
  
tradução: rodrigo madeira

                                   
WHY I AM NOT A PAINTER
        
I am not a painter, I am a poet.
Why? I think I would rather be
a painter, but I am not. Well,

for instance, Mark Goldberg
is starting a painting. I drop in.
"Sit down and have a drink" he
says. I drink; we drink. I look
up. "You have SARDINES in it."
"Yes, it needed something there."
"Oh." I go and the days go by
and I drop in again. The painting
is going on, and I go, and the days
go by. I drop in. The painting is
finished. "Where's SARDINES?"
All that's left is just
letters, "It was too much," Mike says.

But me? One day I am thinking of
a color: orange. I write a line
about orange. Pretty soon it is a
whole page of words, not lines.
Then another page. There should be
so much more, not of orange, of
words, of how terrible orange is
and life. Days go by. It is even in
prose, I am a real poet. My poem
is finished and I haven't mentioned
orange yet. It's twelve poems, I call
it ORANGES. And one day in a gallery
I see Mike's painting, called SARDINES.

(1971)   

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

paul klee

                        
como manoel de barros
no terreno baldio das palavras,
ou miró por las calles
y colores catalanes,
com 40, 50, 60 anos
e a maturidade plena
de seu velho assombro,
escolheu como último destino
morrer na infância.


              
paul klee, grupo colorido (1939)

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

paulo henriques britto

 

      LUCIAN FREUD, homem numa cadeira (1985)

                                
MAN IN A CHAIR
(Lucian Freud)

Esperar sentado, mas sem
relaxar os músculos. Mãos
tensas nas coxas como quem
prestes a se levantar. Não

como quem, à espera, descansa.
E sim como se encurralado
na cadeira. Sem esperanças
nem expectativas. Sentado

na cadeira como quem não
espera exatamente nada.
Sem certezas, com exceção
da única, e indesejada.

                    (paulo henriques britto)