terça-feira, 31 de janeiro de 2012

nick lowe e johnny cash

                                       


A BESTA EM MIM

A besta em mim
Por fracas e frágeis grades presa
Incansável faça sol ou anoiteça
Rasca e ruge contra as estrelas
Que Deus ajude a besta em mim

A besta em mim
Teve de aprender a lamber a ferida
E se abrigar das chuvas repentinas
E talvez num piscar de olhos
Tenha de ser contida
Que Deus ajude a besta em mim

Às vezes tenta enganar a mim
Parecendo um bichinho desdentado
E do nada se desfaz no ar parado
E é então que eu devo tomar cuidado
Com a besta em mim

Todo mundo já está avisado
Já a viram calçando meus sapatos
Sem que a gente saiba, eu e os outros
Se é Curitiba ou o Ano Novo
Que Deus ajude a besta em mim
A besta em mim

transplantation: rodrigo madeira
  
* cheguei a traduzir como "monstro" (beast), mas o duplo sentido da palavra "besta" é irresistível.


segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

bob dylan

                                        


NÃO ESCURECEU AINDA

A noite está caindo e estou aqui desde cedo
Não consigo dormir, o tempo escorre entre os dedos
Sinto que a minha alma foi em aço forjada
O sol não me sarou nenhuma das chagas
Em nenhuma parte me resta algum lugar
Não escureceu ainda, mas está chegando lá

É isso, meu senso de humanidade cobriu-se de bolor
Atrás de cada coisa bela houve algum tipo de dor
Ela me escreveu uma carta, uma carta tão gentil
Ela pôs em palavras tudo o que sentiu
Nem sei por que eu deveria me importar
Não escureceu ainda, mas está chegando lá

Pois então, fui a Londres, fui à Paris do desvario
Cheguei ao mar seguindo o curso do rio
Fui ao fundo deste mundo que mente tão bem
Não estou buscando nada nos olhos de ninguém
Às vezes pesa mais do que eu posso suportar
Não escureceu ainda, mas está chegando lá

Eu nasci aqui e aqui vou morrer desagradado
Sei que pareço em movimento, mas estou parado
Cada nervo de meu corpo está tão nu e amortecido
Nem me lembro a razão para um dia haver fugido
Sequer ouço o murmúrio que fazemos ao rezar
Não escureceu ainda, mas está chegando lá
          
tradução: rodrigo madeira
          
                    

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

não sei dançar #9

                                                                                         
para ouvirhttp://www.myspace.com/570488999                           

* agradecimento especial ao andré pepe russo, piloto comercial, dono do estúdio hangar17 e músico sem fins lucrativos. andré tocou bateria, baixo, teclado e uma guitarra simples e bonita à buddy holly.


EU NÃO SABIA
(rodrigo madeira/ lu cañete)


Eu não sabia
Que a vida era só feita de vida
Que a vida é coberta de feridas
E que só na morte cicatriza

Eu não sabia
Que tudo que nasce é despedida
Que tudo que vive é sem saída
Que a vida que mata é uma alegria

Quando a sombra verga
E o anjo pia
Quando a faca cega
E o sol esfria

Deixa que doa o que dói
Que não dura
Que doa o que dói
Que não dura

Eu não sabia
Que a vida era só feita de vida
Que a vida é coberta de feridas
E que só na morte cicatriza

Eu não sabia
Que tudo que nasce é despedida
Que tudo que vive é sem saída
Que a vida que mata é uma alegria

Quando a lua pesa
E o cão respira
Quando a faca cega
E o sol esfria

Deixa que doa o que dói
Que não dura
Que doa o que dói
Que não dura...
           

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

lanterneiro

                           
é verdade,
a vida é um troço de doer.

dói, meu caro,
dói, sim senhor, dói
como um guarda-chuva aberto
no estômago,
como uma ave emplastrada de petróleo,
como um galo no ártico.

dói como talvez doessem as pevides
dentro da fruta,
como dói o corpo dentro do quarto,
como deus na eternidade
das coisas que não existem.

atino em eufórica
sensação de escombro:
mais importante que ser feliz
é estar vivo!

e não obstante sermos 
entre a dor da morte
e a dor
           do parto 
este buquê de dores,
jamais aceitaremos
o éter na veia,
o vaso de águas enfermiças,
a roça de lápides e relógios,
o sorriso sarcástico nos pulsos.

nossas vísceras são focos de incêndio.
e se em algum lugar
de nossa carne transparente
erguermos uma nave e um rito,
não o faremos para o sofrimento,

e sim para que, antes
de nos espojarmos nos degraus,
brindemos
           a nossa próxima
                      alegria
                                   
(sol sem pálpebras, 2007)
              

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

robert frost (III)

                               
LUGARES ERMOS


A noite e a neve caindo, caindo presto
Num campo que contemplo mas não atravesso;
E o chão quase inteiro de neve se acolchoa,
Salvo algumas ervas e restolhos dispersos.

Pertence à floresta  isto nela fica inscrito.
Os animais todos em seus esconderijos.
Estou vazio demais pra ser levado em conta;
A solidão inclui-me sem qualquer aviso.

Se solitária assim a solidão se faz,
Antes de ser menos, ainda há de ser mais 
Alvor crescente, analfabeta neve em branco
Sem nada que dizer e sem dizer jamais.

Entre as estrelas – onde impossível vivermos –,
Estes espaços vazios não me fazem medo.
Eu trago muito mais próximos, em meu íntimo,
Meus próprios e aterradores lugares ermos.

tradução: rodrigo madeira


DESERT PLACES

Snow falling and night falling fast, oh, fast
In a field I looked into going past,
And the ground almost covered smooth in snow,
But a few weeds and stubble showing last.

The woods around it have it  it is theirs.
All animals are smothered in their lairs.
I am too absent-spirited to count;
The loneliness includes me unawares.

And lonely as it is, that loneliness
Will be more lonely ere it will be less 
A blanker whiteness of benighted snow
With no expression, nothing to express.

They cannot scare me with their empty spaces
Between stars  on stars where no human race is.
I have it in me so much nearer home
To scare myself with my own desert places.
                   

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

minuto de sabedoria cínica (XVI)

                                       
Somos um nada que ama.

                                  LUIZ FELIPE PONDÉ
     
                                   

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

A Morte e o Beduíno

                                                            
       Não sou dos que veem no deserto um portal entre o céu e o homem, entre o inferno e o homem, embora ninguém duvide de que se trata do mais dramático e importante "teatro de religiões". A coisa me parece bem menos grandiosa; tenho fé em que seja bem mais simples e difícil e solitária: o deserto, imensa pátria baldia, é somente um portal entre o homem e sua morte.
    Seríamos deuses se não morrêssemos; não haveria necessidade de criá-los. (Afinal, como bem disse Amós Oz, Deus nunca acreditou em religiões.) Atravessaríamos o deserto como quem vai entre árvores frutíferas e jasmineiros.
      E se eu dissesse que o deserto é o mar que perdeu tudo, que perdeu rigorosamente tudo senão a fome feroz da existência, estaria falando de um outro deserto que é a alma humana. E estamos sempre falando de um outro deserto que é a alma humana. 
     Por isso, paupérrimos, mesquinhos, os desertos são de tal maneira luxuriantes. Não existe espaço alegórico melhor, melhor geografia afetiva para nossa condição banal e extrema: quem pisa o deserto é de imediato um moribundo – não há quem pise o deserto sem que caminhe, durma e ame à beira da morte, debaixo de um céu belíssimo e indiferente.
     Digo isso tudo para dizer o contrário: mas, quando imaginação e memória são sinônimos perfeitos, tudo pode ser rápida e incoerentemente, como que por ventos contra-alísios, posto do avesso. Um exemplo? Vejamos a antiquíssima fábula árabe que inventei agora:
     
   Tempo mítico, a areia emperrando o mecanismo do relógio, veio a Morte em missão ao deserto da Líbia. Buscava um certo beduíno, pouquíssimo visto, esquivo, imortal nos rumores. Por três anos e três noites (na medida arbitrária da eternidade), a Morte rastreou e farejou-o. Leu pegadas, deteve as caravanas, comeu carne de cobra e gafanhotos, bebeu água de cacto, cuspiu areia, espreitou semanas em oásis, chamou-o pelo nome...
     
     As crianças tuaregues cantavam nas travessias
                                                                                   
                                                                                    – a Morte te alcança
                                                                                       imortal beduíno
                                                                                       sob a luz da lua
                                                                                       sob o sol a pino –
                                                                                                         
                                                                                                               os versículos de um arpoador de estrelas.

        Jamais conseguiu alcançá-lo, nunca chegou a menos de duas ou três horas de distância. Ainda assim, seu olhar agudo viu-lhe rebrilhando, quilômetros à frente nos gigantescos bancos arenosos, o alfanje prateado. De tão longe e perto, a Morte, al-quebrada, às vezes tomou por vésper ou farol o brilho daquela lâmina. 
       A insolação por fim começou a enlouquecê-la. Dizem ainda que a areia é capaz de amontoar-se, frestas microscópicas adentro, na caixa craniana, na cava das órbitas, e parir um escorpião minúsculo que arruína a visão e empeçonha o juízo. A Morte, derrotada, sentou-se nas areias, sorriu idiota para a lua. Ficou ali, abandonada, agudamente viva, latejando. E agora passa os dias, entre as dunas do deserto, com uns modos ridículos de gaivota...
     
        
*

Em tempo. A imortalidade também tem lá suas caducidades. Suponho que a esta altura o tal beduíno já esteja morto; morte de outra qualidade, diga-se, debaixo do mesmo céu belíssimo e indiferente: arquetípica, encenada – um suicídio? –, de cujas minúcias e conclusão sabe-se apenas que não restam ossos.
Os mais exaltados, no entanto, juram que sempre fora e será o Vento. O vento vestido, sua carne mais fina que a cambraia mais fina. O vento. Túnica e turbante vazios flamulando no lombo de um cavalo.

                                 

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

desert blues (tinariwen)

                              
                                                                         
                                                   

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

robert frost (II)

                     

   
O CAMINHO NÃO TRILHADO


A estrada se partiu no bosque amarelado,
E lamentando não poder seguir por ambas
E ser apenas um, fiquei ali parado
E olhei uma das vias, o olhar alongado,
Até que ela fugisse na curva entre as ramas;

Então tomei a outra, boa escolha também,
E por ser ela talvez mais convidativa,
Porque clamava a grama pelos pés de alguém,
Ainda que, em se tratando disso, o vaivém
As tivesse desgastado em igual medida

E que houvesse – aquela manhã – nas duas vias
Folhas e mais folhas ainda por pisar.
Ah, deixei a primeira para um outro dia!
Mas sabendo que um caminho em outros daria,
Duvidei de que um dia eu pudesse voltar.

Noutra parte, triste, hei de dar este relato;
Entre mim e o sucedido, a distância imensa:
A estrada se partiu no bosque amarelado 
Tomei dentre os caminhos o menos trilhado,
E isso justamente fez toda a diferença.
                    
tradução: rodrigo madeira


THE ROAD NOT TAKEN

Two roads diverged in a yellow wood
And sorry I could not travel both
And be one traveler, long I stood
And looked down one as far as I could
To where it bent in the undergrowth;

Then took the other, as just as fair,
And having perhaps the better claim,
Because it was grassy and wanted wear;
Though as for that the passing there
Had worn them really about the same,

And both that morning equally lay
In leaves no step had trodden black.
Oh, I kept the first for another day!
Yet knowing how way leads on to way,
I doubted if I should ever come back.

I shall be telling this with a sign
Somewhere ages and ages hence:
Two roads diverged in a wood, and I 
I took the one less traveled by,
And that has made all the difference.


(récita do próprio frost)
                                                            

domingo, 1 de janeiro de 2012

endomingados

                                                                                             
por que no domingo a água
tem outra velocidade
e é sempre feriado nacional
em nossas vísceras?
por que no domingo
o amor é mais lento, baldio,
vadiado
e os corpos pesam
10 gramas subtraídos?

por que há este insético zumbido
nas retinas?
por que este vazio grávido
de tudo – espera
do quê, meu deus?

por que nossas mãos ficam
quase cristalinas?
e a ordem natural pode ser
suspensa e de uma crisálida
irromper um pássaro?
por que as árvores cantam
um tom mais alto
e os cães latem noutra língua?

por que a vida respinga
das páginas que viramos
quando lemos
e o amor, ósseo, dói alegre como flor
nascendo
sobre o ombro esquerdo?

***

não há consolo necessário,
domingo não é preciso.

domingo não é um dia,
apenas mais um dia.

domingo é uma semana,
domingo é a vida inteira.

                  
                    LU CAÑETE & RODRIGO MADEIRA


(pássaro ruim, 2009)