terça-feira, 29 de março de 2011

Protágoras, santo padroeiro dos patéticos e mentirosos

...

     
     
      O filósofo grego Protágoras de Abdera foi acusado, por conta de seu livro “Sobre os Deuses”, de impiedade, ateísmo e blasfêmia. Morreu na fuga de Atenas para a Sicília, num naufrágio, não se sabe bem em que ano do século V antes de Cristo. Antes e depois do fatídico, causou profundo impacto na nascente filosofia antropológica e, muitíssimo mais tarde, na filosofia humanística europeia. Protágoras, cujos escritos não nos chegaram, mas a quem foi dedicada farta doxografia, ajudou a encerrar de vez o período cosmológico e deslocar o eixo das perquirições filosóficas do arké (causa primeira, princípio fundamental – fogo, água, ar, ser...) para o homem e a vida em sociedade. Por oposição, também foi importante a todos os grandes filósofos que mais tarde lhe fizeram resistência. Afinal, foi o maior representante do movimento sofista, corrente filosófica que, entre outras coisas, propunha o relativismo da verdade, a ideia segundo a qual o conhecimento nunca está no objeto e sim no sujeito que o percebe, no homem que é “a medida de todas as coisas”. Além disso, sofistas eram utilitaristas e venais. Caixeiros-viajantes do conhecimento, faziam preleções focadas na arte da retórica e da persuasão. Atendiam aos interesses políticos imediatos de seus alunos, filhos de homens ricos que queriam ter participação decisiva na pólis democrática. 
      Hoje, sofista é sinônimo de impostura, de canalhice interesseira. Sócrates era menos unidimensional do que o senso-comum e o Aurélio Buarque de Holanda: oscilava entre a admiração e a indignação. Ao fim, porém, deu seu veredito: o pensamento sofista não é filosofia.
      Faço coro a um comentário de meu camarada Ivan Justen: a poesia também não é filosofia. Graças a Deus! Mas onde diabos quero chegar com isso? Ao contrário dos sofistas, o poeta em geral não quer persuadir ninguém nem segue a lógica utilitária do conhecimento. A verdade, na poesia, quando não é um substantivo concreto, é adjetivo capaz de ventar; a verdade é apenas um som enfático (ou inenfático) que ilumina um objeto em fuga. O principal objetivo do poeta consiste em, quem sabe, provocar uma pequena explosão interna: derrame patético, infarto fulminante no relógio da matriz, pequeno AVC – acidente cardioversicular.
      Mas, se o pensamento sofista não dá conta da realidade material do mundo (concordo com Max Planck: na ciência, por exemplo, a verdade não é inventada, mas descoberta, ela se nos impõe à razão) e se tem preocupações práticas e “precificáveis”, há algo nele de essencial que nos permite um paralelo com a poesia: o império da subjetividade. Lembro sofisticamente a sentença de um dos maiores sofistas do século XX, T.S. Eliot: “toda verdadeira poesia é uma visão de mundo”. Mais: o feroz efeito dessacralizante, quando mais não seja no que diz (des)respeito à religião. Por isso, é menos forçação de barra do que parece declarar Protágoras o Santo Padroeiro dos Poetas.
      (Daqui em diante, após preâmbulo tão cansativo e metido à besta, a quem de fato interessa: os poetas.)     
      Mesmo que levemos em conta que talvez a linguagem tenha surgido das canções de trabalho e dos rituais mágicos dos primeiros homens, no tempo primevo em que música e poesia não existiam autonomamente, ou em que as palavras nascituras, conforme Borges, eram todas metáforas – portanto carregadas de poeticidade que, apenas com o tempo imemorial das erosões cotidianas, desgastaram-se e se tornavam metáforas mortas –, ainda assim, eu não acreditaria que a poesia fosse sagrada ou demiúrgica. Eu, infeliz ou felizmente, não acredito na sacralidade de nada. Acredito, isto sim, na poesia e nos poetas.
      Quando digo que o poeta é um afiador de facas ou uma ex-chacrete, consoante o espírito de porco que às vezes me obseda, não me entendam mal; não quero me autoflagelar com um açoite de guizos. O que pretendo é dimensionar este ofício do verso nos dias de hoje. O poeta caiu, dessacralizado, de seu nicho. Nada da respeitosa desconfiança de Sócrates – obcecado pelo conhecimento em prejuízo do prazer estético; aliás, confundindo as duas coisas: sabedoria e beleza – nem do glorioso degredo que Platão reservou aos poetas, cuspidos fora da República mas coroados de louros. Versos já não têm nas sociedades o relevo que um dia tiveram. É especialmente verdadeiro para a poesia aquilo que se diz dos escritores em geral: hoje há mais poetas do que leitores de poesia. Talvez seja preciso vaguear 40 anos pelo deserto para encontrar um único leitor de poesia que não seja poeta.
      Dito isso, pergunte para uma ex-chacrete (pergunte para mim) se é ou não fundamental ser uma chacrete, pergunte a mim se existe sobre a terra pessoa ou técnica que substitua e supere a mestria de um afiador de facas...  
      Notável também como os poetas de hoje, lambendo infinitamente sua ferida narcísica, muitas vezes gastamos mais tempo e energia vital com nosso impulso possessivo do que com o impulso criativo (aquelas noções de Bertrand Russel); ou seja,  uma parte vexaminosa de nós sonha ser proprietária exclusiva de algo que, se não nos põe em franca rivalidade, pode arremessar-nos ao pathos dos recorrentes ressentimentos e desconfianças. Percebam como alguns poetas agimos feito abutres, disputando com outros abutres uma carcaça reduzida à pedra do osso. É comovente e nauseabundo!                     
      Os modernos já desmistificaram à exaustão visões e “revisões” do poeta enquanto santo ou cortesão do diabo, invenção de românticos repetida por simbolistas e beats. Já meio caminho foi percorrido quando, num poema de Baudelaire, o poeta vê cair na rua sua auréola e tem de fazer uma escolha: reavê-la e ser atropelado pelos coches, ou seguir em frente e, atravessando desmistificado a rua, perder-se no interior da cidade e da vida. É, portanto, uma banalidade dizê-lo. Repiso não para repreender meus pares, senão para vencer na porrada e no cansaço – ou pela exposição à luz de meu ridículo – um certo heroísmo residual que mancha como alcatrão as paredes de meu quarto de poeta: não, ao contrário do que certa vez Leminski repercutiu, não há qualquer heroísmo.
      Talvez pensar que somos especiais e essenciais nos ajude a dormir certas noites, embriagados por um leve sentimento de superioridade. Obviamente, existe sim o tesão, a febre, o entusiasmo; mas não há, ataviando-nos a cabeça, qualquer nimbo de fumaça suja ou tiara de estrelas cariadas. O poeta não é uma espécie de monge secular desprendido, dominicano entre prostitutas, nem algum tipo de maluco iluminado. Alguns de nós são grandes autores mas pessoas medíocres ou apagadas; outros são até excelentes maus-caracteres e covardes. 
      A mim já não comove a imagem e autoimagem do poeta como um ser triste e solitário pescando à margem do Estige. Falo por experiência própria: fez muito mal a minha saúde física e espiritual algum dia haver acreditado nisso: masturbar-me com os dedos da morte, ser um desses caras que, nas palavras de Adélia Prado, “cheiram a suicídio e glória”.
      (Quer ver outro mito? O da hipersensibilidade. Como tantos outros que sentem eventualmente uma dor-de-corno, o poeta pode ser sensível. No entanto, para que alguém seja um bom poeta, a sensibilidade deverá ser sempre menor do que a “pesquisa e desenvolvimento”: comovida inteligência aplicada à linguagem.)   
      Protágoras queria ser pago – e bem – por sua cátedra itinerante. Nisso, entre poetas e sofistas, outra gritante diferença: se existem poetas argentários, ainda não conheci nenhum que acredite em que um dia poderá comprar o pão e pagar as contas com o dinheiro de seus poemas. A poesia há muitíssimo tempo é para o poeta um hobby de sobrevivência, um amadorismo vital que não tem valor de mercado, e sim de vísceras. (Entretanto o poeta – por supuesto, como no?! – até aceita ser pago em glória...)  
      Não sei se as sociedades vivem ou não sem seus vates. Se a vida só é possível reinventada, a poesia não é a única forma de fazê-lo. Talvez sejamos mesmo uns afiadores de facas... Não há aí nenhum derrotismo ou autoinfligido desterro. Embora artistas como outros (um ator da Globo, por exemplo), e por isso a necessidade de carinho e aplauso – e o sonho com o público um pouquinho maior –, certo mesmo só o fato de que: quem não vive sem o poeta é o poeta. Porque não nos basta respirar pelo nariz, nem tampouco é a poesia uma segunda peça de roupa ou um apartamento na praia pra variar. Pra quem tem esta cisma, poemas são a segunda árvore respiratória.
      Quem sabe você, aí na outra margem da página, numa das infinitas pontas da web, pense que tudo o que eu disse acima é somente um mal reprimido sonho de grandeza. Também. Mas quero crer que há menos megalomania enrustida do que – para sofrer menos e gozar mais – esforçado exercício de autodesmistificação; o que não me impede, fique claro, de comungar daquele sofismático desejo de Drummond: um belo dia um poema meu – ou, vá lá, de poeta que admire – impresso na primeira página de todos os jornais.     
            
* Rodrigo Madeira é afiador de facas. Escreve atualmente no extinto Jornal do Brasil

segunda-feira, 28 de março de 2011

a indesejada

                      
quando Ela chegar amanhã
                                   (daqui a muitos anos),
bom anfitrião, espero
sussorrir-lhe  de  li  ca  da  men  te...

“entre, minha querida,
não tenha medo.

sou poeta
mas não sou eterno.”     

domingo, 27 de março de 2011

piazzolla

     Papá nos pidió que lo dejáramos solo durante unas horas. Nos metimos en la cocina. Primero hubo un silencio absoluto. Al rato, oímos que tocaba el bandoneón. Era una melodía muy triste, terriblemente triste. Estaba componiendo Adiós Nonino.
                                  daniel piazzolla, su hijo, 1986

sexta-feira, 25 de março de 2011

2.

o que sinto é
e não é palavra.

uma parte
do que sinto só cabe,
ancestral e feroz,
no rosnado de um lobo.

uma parte
do que sinto só diz
adiós nonino de piazzolla,

ou o silêncio de após
a patética de beethoven.


3.

também a fotografia.

o que é consciência e palavra
não é do morto. imagem pura (putre-
fazendo nada), coisa
finalmente em si.

consciência e palavra
são
do vivo que as inventa
ao lembrar-se.

posso ouvi-lo gritar:
“vermes, deixem-me ser
eterno!”

mas sem a morte, tio –
lembrança de meu tio,
passado de meu tio, amor que sinto
por ti, meu tio –,
sem a morte
não teríamos nascido

e a vida é bela.


* duas das seis partes do poema "a morte"
(pássaro ruim, ed. medusa, 2009)

quarta-feira, 23 de março de 2011

a morte

  
meu tio,
que ontem mesmo
perguntou as horas,
já não está

em lugar algum,

já não está
onde seu corpo está.

seu corpo está
ali, enguiçado.

meu tio
deitou-se sobre si.

melhor, deitaram
o que fora meu tio,
os pés juntos, sem

a memória do tato,
o escândalo de aves
nos cabelos,

o cheiro de urina,
os goles de naufrágio

(letes nas veias),

como um quarto
sem mobília ou gente
sobre o terreno cediço,

uma nudez,
como escurecer
desmorona uma maçã
e acende a luz
na pele
         de um cavalo.

a morte agora
é sua casa, a roupa do corpo,
o oxigênio,

a carta de câmbio,
o preço do frete,
      a dentadura, o aquário,

o berço, a biblioteca,
a gaveta
           de gravatas,
o comprovante
                     de renda,
o revólver,
a certidão
             de nascimento.

morrer é para sempre.

o corpo de meu tio
(sem que meu tio
estivesse presente)
foi enterrado

com um relógio
no pulso.


* primeira das seis partes do poema
  ("pássaro ruim", ed. medusa, 2009)

terça-feira, 22 de março de 2011

w.h. auden


FUNERAL BLUES

Parem os relógios, cortem o telefone,
Ao cão que ladra um osso que emudeça a fome.
Calem os pianos e, ao rufar dos tambores,
Tragam o caixão, deixem vir os pranteadores.

Deixem que os aviões lamentem pelo céu,
escrevendo a mensagem: Sim, Ele Morreu.
Amarrem fitas de luto nas pombas públicas,
E que os guardas de trânsito usem negras luvas.    

Ele era meus dias úteis e meu descanso,
Meu meio-dia, meia-noite, fala e canto,
Era meu Norte, meu Sul, Leste e Oeste ao lado;
Pensei fosse o amor eterno: eu estava errado.

Quem quer estrelas? Apaguem-nas uma a uma;
Desmontem o sol, tratem de embrulhar a lua,
E escorram todo o mar, ponham fora a floresta.
Porque nada disso (que ainda existe) presta.


tradução: rodrigo madeira


FUNERAL BLUES
Stop all the clocks, cut off the telephone,
Prevent the dog from barking with a juicy bone,
Silence the pianos and with muffled drum
Bring out the coffin, let the mourners come.

Let aeroplanes circle moaning overhead
Scribbling on the sky the message He is Dead.
Put crepe bows round the white necks of the public doves,
Let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,
My working week and my Sunday rest,
My noon, my midnight, my talk, my song;
I thought that love would last forever: I was wrong.

The stars are not wanted now; put out every one,
Pack up the moon and dismantle the sun,
Pour away the ocean and sweep up the woods;
For nothing now can ever come to any good.

domingo, 20 de março de 2011

infância

                       e eu não sabia que minha estória
                                   era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

                                                        drummond



o menino sem camisa empinava o sol
(a palma da minha mão é hoje a cartografia do exílio)

no retrato , a carranca dos avós: eternamente condenados
a fazer cara de moscou
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

O menino, sólido e leve, não sabia crer: deus é uma fumaça
tão pesada...
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

lançou a auréola no jogo de argolas
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

o jardim da infância era o mundo. e o mundo, pequeno
como uma vila, não cabia no infinito
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

os jardineiros dormiam mortos sob os caules do azul
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

escreveu numa mensagem-de-garrafa-lançada-ao-mar:
o mar não existe!
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

d’artagnan, se não deixasse richelieu para amanhã
levava sopapos da mãe
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

iniciou-se em literatura comendo papel
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

e o desejo maciço de lavar-se em bacia de osso
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

a jangada seguia sobre um pântano de glicínias...
don juanito nos infernos, narcisando
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

e também fumava escondido, de cócoras, e gomava
as asas de urtigas e flores de ipê
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

ícaro obedecia a sua natureza de filho:
desobedecia ao pai
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

e uma pêra nascia no limoeiro
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

a segunda divisão panzer SS “das reich” de saúvas
carregava o chassis do louva-a-deus
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

o menino passeava com seu cão imaginário
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

à margem de teixos roendo-se em silêncio, especulava
as águas: iscara um anzol de nuvens para apenas roçar
o que foge, passarinhado...
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

...................................................................

mas há de sempre trocar de pele e carnes,
pois seu corpo é sua estória...
(a palma da minha mão é o registro do que morro:

o menino me recomeça)

* do livro "sol em pálpebras" (imprensa oficial, 2007)

terça-feira, 15 de março de 2011

Aeromodelo Ícaro


      A religião em mim é uma doença crônica. Preocupo-me com ela como me preocupo com minha esofagite. Doenças crônicas são incuráveis, pois não, mas podem, com mudanças de comportamento e de visão de mundo, ser detidas em algum ponto. Sei que ainda muito me preocupará a invenção de Deus; o medo da finitude e o egocentrismo imensurável que nos levaram a inventar e persistir em Sua invenção. Deus – está claro para mim – existe! como um poema (que afinal não deixa de ser ficção) existe. Acredito piamente em coisas e seres inventados; são capazes de criar outras coisas – reais – absolutamente terríveis ou absolutamente belas. Deus há de existir até que morra o último homem que acredita em Deus.
      Por que digo isso? Sei lá. Talvez porque outra questão crônica em mim seja esta mania de encurralar qualquer assunto entre pequenas divagações mais ou menos infelizes. A partir daqui, na condição de timoneiro e único viajante desta canoa, corrijo a rota e toco em frente... Ou, antes, divago mais pouco...
      Crônicas, tal qual poemas, nascem da profunda coincidência de acasos. São capazes de poesia às vezes até mais do que os poemas: desinteressadas, dão de ombros e se realizam na lírica miúda, pasta sob o braço e guarda-chuva, lendo os jornais entre goles de café e cuecas viradas.
      Dos acasos todos, o mais comum que se me passa – a um sopro de vento, farfalhar de folhas, luz estranha sobre a mesma coisa – é ser jogado inapelavelmente a um dos pátios da infância: escola, quadra de esportes, quintal de casa sob a mangueira, adro vazio de igreja. A partir de então, todas as coisas podem vir a ser conjugadas no pretérito mais-que-presente do inesquecível. O tempo perde o fio, a linearidade. É imperceptível para as pessoas à volta, mas por brevíssimos momentos enguiça a cronologia pessoal. Os tempos se engavetam na Avenida Rodrigo Madeira.


***
      Avenida? Melhor que se dissesse alameda ou, ainda melhor, ruazinha sem saída. Que importa?! Ali – avenida, rua sem saída ou alameda –, de há muito tempo exatamente agora, assisto perplexo a um acidente lírico: minha primeira comunhão, a primeira vez; ou por outra, a primeira missa no ministério do amor.
Entrei com V. de mãos dadas na capelinha e, por uns poucos segundos, tive sim Jesus Cristo por sogro.
      Amava em silêncio a pequena V.. Eu queria o Corpo (não o corpo de Cristo), mesmo sem saber direito o que fazer com ele. Eu queria o corpo de V.; os olhos, a pele, as mãos e a boca de V.; os seios como sóis nascentes de V.. Tudo aquilo que, caso ela me dissesse “toma, é teu, sou tua”, me faria sair correndo em pânico.
      Todas as poucas vezes em que conversei com V., foi fazendo economia de guerra com as palavras: uma palavra por ocasião, que o resto era um silêncio tão estúpido que talvez se ouvisse meu coração zurrar e escoicear o peito. Às vezes concluo que, durante aqueles poucos meses das aulas de catequese, eu só lhe disse uma palavra, uma única frase abortada após todas as gestações do mundo.
      À entrada da capela, os primeiros comungantes vínhamos aos pares. E – ai, meu Deus! – com o perdão do clichê, nossas mãos eram asinhas de penugem rala. Suadas, por razões diferentes, mas suadas e enlaçadas. Se a dela era pequena demais para ser de harpia, a minha era, com certeza, asa de Ícaro, feita e desfeita para ascensão e queda, para aquilo de que só um neologismo dá conta: paichão.
      V. nunca quis nada comigo. Experimentei também, primeira vez, a patética ambigüidade de amar e o poder afrodisíaco da indiferença. V. queria e conseguiu o que quis: meu amigo F., lourinho e nada melancólico. As meninas, não sei bem por quê, precisavam de meninos lourinhos, de preferência os que não fossem tímidos e melancólicos. E meu amigo venturosamente condisse: “Puxa, não parece o príncipe Adam do He-Man?!” Já eu, sob aquele sol sem pálpebras de Foz do Iguaçu, sol de derreter catedrais, era um pequeno caçador etíope; de quebra, dentucinho. As meninas não se interessavam. Nem ligavam para minhas outras qualidades: bom de bafo, excelente soldado de infantaria (com bicicleta) na guerra de mamona, capaz de – embaixo dágua, sem respirar – ir e voltar na piscina, exímio chutador de pedras e tampinhas no golzinho do bueiro; além da capacidade invejável de mentir feito um estelionatário. Nada disso importava a V.; só tinha olhinhos para meu amigo Adam.
      Demorei bastante tempo pra descobrir que V. era feia. Desencanei. Depois vieram outras, mais bonitas e mais feias. Segui meio melancólico e pateta com as mulheres. Sempre fui fiel àquele meu primeiro sentimento de mutismo e assombro. Pirralho de tudo, já montava aeromodelos Ícaro.


***
      Em suas memórias, Bob Dylan conta um episódio de seu comecinho de carreira, ainda antes de se tornar compositor. Um famoso mas decadente lutador de wrestling, que precedera o fantástico roufenho numa feirinha de variedades de Duluth, teria lhe dito ao descer do palco: “Vai lá, Bob, mostra pra eles como é que faz”. E Dylan, no livro, arremata: “Não sei se foi assim que aconteceu, mas é assim que eu lembro.” Pois então. Hoje é assim que eu lembro. Quem sabe amanhã seja outra história.
      Minha infância ainda renderá, do século anterior, muitas notícias de mim para mim mesmo. Como um jornal ao mesmo tempo velho e estranhamente novo – tinta fresca, cheiro de celulose e ipê –, com que se embrulha um peixe que sequer foi arrancado da água. Peixe escorregadio e absoluto: feito apenas de tempo.
      Quando eu era moleque, pescava pelos riachos bagres, cascudos, lambaris, tilápias. Vez ou outra, peguei cascudo que eu teimava em dizer que era bagre. Quem sabe o que se pesca amanhã no rio de ontem? A infância tem mais conjugações do que a gramática. O pretérito mais-que-precário do inventativo, por exemplo, é das declinações que mais me comovem a lembrança.

* Rodrigo Madeira é crônico. Escreve mensalmente na Gazeta do Torto.

domingo, 13 de março de 2011

notícia de caxias do sul

.


o violino é uma árvore migratória


                           FABRÍCIO CARPINEJAR

sábado, 12 de março de 2011

notícia de porto alegre

.

Depois (à Maria)

Quando eu estiver deitado na planície, indiferente às cores e às formas, tu deves te lembrar de mim. Aí, onde a planície ondula, a terra é mais fértil. Abre com a concha da tua mão uma pequenina cova e esconde nela a semente de uma árvore. Eu quero nascer nesta árvore, quero subir com os seus galhos até o beijo da luz. Depois, nos dias abrasados, tu virás procurar a sua sombra, que será fresca para ti. Então no murmúrio das folhas eu te direi o que meu pobre coração de homem não soube dizer.

                                         IBERÊ CAMARGO (Porto Alegre, 1940)

sexta-feira, 11 de março de 2011

errata

                                     
"Já vi muitos rios, o Danúbio, o Sena, o Volga, o Arno, o Pó, o Tibre, o Tejo, o Tâmisa, o Amazonas, o Reno - mas entrego os pontos: o Nilo é de longe, e também de perto, o mais belo de todos, largo, azul e dadivoso (...)"
                                                              (carlos heitor cony na folha de são paulo)

Não é verdade.
A partir de joão cabral, o capibaribe - aquele rio comum, feio até - é o mais belo e dadivoso dos rios.

quarta-feira, 9 de março de 2011

o que fazer com a chuva


                            p. edson falcão


enxugar a palavra.

deixar que os rins
façam o trabalho.
urinar empoçamentos
de toda ordem.
livrar a palavra do
empoçamento.
reter apenas a umidade
(como um pano úmido)
da palavra na página,
incômoda

como a roupa úmida
sobre o corpo


2.

e nesta umidade
mínima (quase seca, física)
da roupa da página do corpo,
ainda assim
permitir que peixes

terça-feira, 8 de março de 2011

edson falcão (3 poemas)



*** 

a ânsia por construir
estoca milheiros de tijolos
o desejo são casas prontas
e o que é real são paredes espessas
que ainda não foram erguidas
meu terreno sustenta montes
de pedras e de areia
esperando
que os vizinhos reconheçam
que a obra existe
e que eu acredite


***

O sopro da lembrança
ajuda e muito
exemplo
Mesmo em declínio
não se afasta do Sinai o beduíno
é de assustar tudo que ignora
só conhece ovelhas pomar lua mar
enfrenta dilúvios     tempo ruim
todas as pragas
e um pó ancestral que lhe pesa
seminômade
girando ao redor do monte
ignora o declínio
no conforto das pedras ao pé do Sinai

***

O que tem de bonito
puxar
uma pequena balsa de tambor?
digo    nada
digo    a lembrança do feito
não ter feito aquilo sozinho
mesmo porque
sozinho não poderia ser feito


 * Edson Falcão é autor dos livros As musas do canal belém, O ossário de um ferreiro e A fachada e os fundos. Edson Falcão é o cara.

quarta-feira, 2 de março de 2011

"Eu – ou qualquer poeta – tenho dentro de mim uma página em branco. Não tem nada escrito. O que eu vou dizer?" 

                                                                                  ferreira gullar

terça-feira, 1 de março de 2011

E agora, Youssef?


      
      Estamos todos voltados para a direção de Meca. Torço pelos tunisianos, egípcios, iemenitas e líbios revoltosos. Mas com apreensão. Longe de mim querer, como aponta Edward Said em “Orientalismo”, dar uma de taxidermista cultural e essencializar os muçulmanos ou reduzir os árabes a uma categoria retrógrada (antimoderna) de indivíduo. Nem é minha intenção reafirmar uma identidade negativa do tipo: eu, um ocidental civilizado, sou tudo o que um muçulmano não é ou jamais poderá ser. Não creio na tal visão, a meu ver altamente redutora, do “choque de civilizações” e, quando uso termos como “ocidental” ou “Ocidente”, sei que recorro mais a uma abstrata economia de palavras do que propriamente a uma civilização, estanque e bem definida.
      O Oriente Médio é um assunto caprichoso e espinhoso até para quem dedica sua vida a estudá-lo. Uma “geografia política” estilhaçada em etnias e tribos, sunitas e xiitas, governos seculares e teocráticos, de quebra complicada à enésima potência pela criação de Israel em 1948 e as sucessivas e desastrosas políticas norte-americanas para a região. Um verdadeiro camelo na sala de estar.
      Quem se arrisca a fazer futurologia em um cenário tão incerto? Mas podemos, sem incorrer em prejulgamentos, temer – e temer bastante. Uma coisa parece certa para todos os especialistas que acompanham o desdobrar dos acontecimentos: a enxurrada revolucionária que ora vemos muito provavelmente mudará a cara e o equilíbrio de forças na região. Na esteira disso, o Ocidente, totalmente “viciado” no óleo negro prospectado pelos árabes, também se verá diante de impasses e reordenações de suas políticas exteriores.
      Um problema maior, no entanto, reponta nos “horizontes que cheiram a gasolina”. Embora haja cinquenta e três países majoritariamente islâmicos no mundo, diversos em tudo e inclassificáveis pelas mãos de necropsistas culturais, um fantasma comum parece rondá-los, em especial o Oriente Médio e o Al Magreb: o fanatismo religioso. Povos mergulhados no caldo de desespero, falta de coesão e tradição democrática – somando-se a isso os ambíguos sentimentos de atração e repulsa, admiração e ressentimento diante das potências ocidentais –, tornam-se suscetíveis ao carisma inflamado e às soluções mágicas e maniqueístas oferecidas pelos radicais.
      Revoluções são eventos excepcionais e magnéticos. Hipnóticos como tornados, são ao mesmo tempo terríveis e belos, entusiasmantes e assustadores. Acrescente-se a espontaneidade combativa de um povo cansado da tirania, impossível não se tornar simpatizante de primeira hora. O problema é que as revoluções podem engolir rapidamente seus artífices mais legítimos e maiores interessados – o povo –, dando ensejo a radicalismos de toda ordem. A história moderna é farta em exemplos: de Robespierre a Stálin, de Mao a Khomeini. Líderes megalomaníacos a ponto de se elegerem representantes diretos da História ou de Deus, pelo bem da revolução, “condenados” a perpetuar-se no poder (nem precisamos ir tão longe: pensemos em Fidel Castro). A partir desse ponto, qualquer opositor ou moderado é tido como “contrarrevolucionário” ou “infiel”; o regime precisa eliminá-lo.
      A África como um todo, mas agora em foco a África Árabe, é outro bem acabado exemplo. Muitos dos tiranos que a partir dos anos 60 subiram ao poder, fizeram-no por meio de revoluções populares ou golpes de estado com amplo apoio da população. O próprio Muamar Kadafi tornou-se o supremo coronel, em 1969, aclamado como o salvador da pátria e sucessor de Gamal Abdel Nasser na condução do pan-arabismo secular. Kadafi, há 41 anos no poder, é um desses líderes absolutamente medíocres, mas oportunistas e carismáticos, em tudo opostos aos estadistas: uma síntese fatal de megalomania, incompetência e brutalidade.
      Desde o processo de descolonização, no pós-guerra, dois caminhos políticos se abriram no Oriente Médio e no Norte da África: de um lado, velhas monarquias ou emirados, com forte controle dos costumes por meio da religião; de outro, regimes militares na figura de um coronel nacionalista. Ambos com o mesmo denominador: a completa ausência de democracia; além, é claro, do tradicional múltiplo comum: prisões arbitrárias, torturas e execuções extrajudiciais. Ambos em um perigoso jogo de aproximações e afastamentos, inibições e incitações de grupos islâmicos radicais. Por isso estas revoluções podem ser tão assustadoras. Com o colapso em cascata das velhas ditaduras seculares, uma verdadeira caixa de pandora venha talvez a ser aberta. Não é segredo para ninguém que, nas revoluções, via de regra as forças mais radicais e organizadas politicamente (além de, ideologicamente, carismáticas) tendem a prevalecer. No caso específico dos atuais países conflagrados, implica dizer que há uma grande probabilidade de que os fanáticos muçulmanos prevaleçam, a exemplo do que vimos no Irã dos teomaníacos aiatolás.  
     Tomo a liberdade de dizer que o Oriente Médio corre o risco de passar por ainda mais profundo processo de “wahhabização”. O wahhabismo é uma corrente radical saudita (e portanto sunita) que em tudo resume o fanatismo religioso. Defende tanto a expansão pelos territórios infiéis quanto a severa e inflexível aplicação das leis islâmicas. Ainda no século XVIII, quando surgiu, até mesmo o famigerado Marquês de Sade tratou de acusar-lhe o autoritarismo monstruoso. O wahhabismo é a doença crônica do islamismo. Seu principal sintoma é a absurda literalidade corânica, o desejo de impor leis e costumes extemporâneos e abomináveis. Apedrejamentos, mutilações, mortes sumárias de infiéis, opressão sistemática das mulheres. Não há multiculturalismo capaz de justificá-lo. Desde John Locke pelo menos, passando pelos iluministas, temos a possibilidade de escolha de uma plataforma moral e intelectual em favor da vida e da liberdade de ação e pensamento. Qualquer multiculturalismo que tente negociar ou torcer estes valores, cai de imediato no cinismo. Direitos humanos são universais. A ânsia de entender diferentes culturas não pode chegar ao ponto de justificar regimes que fazem de tudo para sufocar diferenças políticas e religiosas. 
        Traçando um paralelo entre o cristianismo e o islamismo, percebo que duas importantes questões podem ser levantadas. Antes de mais nada, não posso deixar de  afirmar, sem meias palavras, quais os meus critérios: tanto Estados seculares quanto democracias liberais são melhores do que, respectivamente, teocracias e regimes autoritários. Democracias liberais e laicas são sempre mais eficientes e livres do que qualquer regime arbitrário, pouco importa se a verdade e a morte são encomendadas a Deus, militares ultranacionalistas ou burocratas do Partido. Dito isso, vamos à comparação: Jesus Cristo, embora fosse filho de Deus e o próprio Deus (vai entender...), era ao mesmo tempo um joão-ninguém. Nunca teve intenção de criar ou gerir um Estado. Já o islã, além de refundar a religiosidade dos povos árabes urbanos e berberes, surgiu com evidentes pretensões políticas: unir as diversas tribos rivais por meio de uma identidade comum, império e religião amalgamados. Mohammad não foi um joão-ninguém; empunhando ele mesmo um alfanje, foi o fundador de um dos maiores, mais poderosos e longevos impérios sobre a terra. Por isso, me parece, talvez seja ainda mais difícil para os muçulmanos a separação entre Estado e religião. Para boa parte deles, o ideal é que se resgate a glória e, de alguma maneira, um modo de vida que remonte àquele período entre o século VII e o século XIV. Não conheço cristãos que defendam o retorno aos gloriosos tempos de Constantino, primeiro imperador romano a converter-se ao cristianismo. Na cristandade ocidental, felizmente, a Igreja foi desautorizada a exercer poder político que ultrapasse o poder cultural e diplomático (o tal soft power). Entretanto, não tenho dúvida de que, se lhe dessem uma segunda chance, o Vaticano não perderia a oportunidade de mais uma vez dar as cartas – e de fazê-lo novamente com intolerância e terror. Pois esta é a natureza das religiões que detêm poder político excessivo: intolerância e terror. O mundo, ou uma parcela dele, nas mãos de líderes religiosos é o pior dos mundos possíveis. Religiões só conseguem ser minimamente saudáveis quando se tornam uma opção individual, integralmente circunscritas à vida privada.                                               
      Chegamos ao ponto. Em grande parte dos países islâmicos, mulás, aiatolás e outras autoridades religiosas ainda têm amplos poderes políticos e jurídicos para administrar almas e Estados. Obviamente, a secularização do Ocidente foi um processo lento e difícil, que demandou séculos. Daí também nasce a preocupação: quando os países muçulmanos (exceto a Turquia) estarão de fato prontos a adotar o regime democrático? E, enquanto isso não acontece, qual será o destino destas revoluções belíssimas e irrefreáveis que comovem e entusiasmam tanto aqueles que se mobilizam em seu epicentro, quanto aqueles que assistem a tudo de longe, pela televisão e pelos jornais?
      O barulho de um tirano quando cai soa como música. É lindo. Mas alguém inevitavelmente ocupará seu lugar. Sempre é possível que a emenda seja pior que o soneto. Quem poderá afirmar que Lênin e Stálin foram melhores do que o czar Nicolau II? Ou que o xá Reza Pahlevi foi pior do que o aiatolá Khomeini?             
      Estamos voltados para a direção de Meca. A caravana da História mais uma vez passa enquanto os cães, fiéis ou infiéis, ladram. Resta-nos torcer. Que os árabes sublevados vençam duplamente, tanto o status quo autoritário quanto as seduções do radicalismo religioso. Que o desespero seja sempre menor do que a maturidade política e o sonho da democracia. Fanáticos religiosos não têm nada a oferecer além de cinzas, suratas e sangue.