quarta-feira, 23 de março de 2011

a morte

  
meu tio,
que ontem mesmo
perguntou as horas,
já não está

em lugar algum,

já não está
onde seu corpo está.

seu corpo está
ali, enguiçado.

meu tio
deitou-se sobre si.

melhor, deitaram
o que fora meu tio,
os pés juntos, sem

a memória do tato,
o escândalo de aves
nos cabelos,

o cheiro de urina,
os goles de naufrágio

(letes nas veias),

como um quarto
sem mobília ou gente
sobre o terreno cediço,

uma nudez,
como escurecer
desmorona uma maçã
e acende a luz
na pele
         de um cavalo.

a morte agora
é sua casa, a roupa do corpo,
o oxigênio,

a carta de câmbio,
o preço do frete,
      a dentadura, o aquário,

o berço, a biblioteca,
a gaveta
           de gravatas,
o comprovante
                     de renda,
o revólver,
a certidão
             de nascimento.

morrer é para sempre.

o corpo de meu tio
(sem que meu tio
estivesse presente)
foi enterrado

com um relógio
no pulso.


* primeira das seis partes do poema
  ("pássaro ruim", ed. medusa, 2009)

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