meu tio,
que ontem mesmo
perguntou as horas,
já não está
em lugar algum,
já não está
onde seu corpo está.
seu corpo está
ali, enguiçado.
meu tio
deitou-se sobre si.
melhor, deitaram
o que fora meu tio,
os pés juntos, sem
a memória do tato,
o escândalo de aves
nos cabelos,
nos cabelos,
o cheiro de urina,
os goles de naufrágio
(letes nas veias),
como um quarto
sem mobília ou gente
sobre o terreno cediço,
uma nudez,
como escurecer
desmorona uma maçã
e acende a luz
na pele
de um cavalo.
a morte agora
é sua casa, a roupa do corpo,
o oxigênio,
a carta de câmbio,
o preço do frete,
a dentadura, o aquário,
o berço, a biblioteca,
a gaveta
de gravatas,
o comprovante
de renda,
o revólver,
a certidão
de nascimento.
morrer é para sempre.
o corpo de meu tio
(sem que meu tio
estivesse presente)
foi enterrado
com um relógio
no pulso.
* primeira das seis partes do poema
("pássaro ruim", ed. medusa, 2009)
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