terça-feira, 24 de dezembro de 2013

drummond

       
                          
    
Hieronymus Bosch,
Tríptico da Epifania (ou Adoração dos Reis Magos), 1495.



VI NASCER UM DEUS


Em novembro chegaram os signos.
O céu nebuloso não filtrava
estrelas anunciantes
nem os bronzes de São José junto ao palácio Tiradentes
tangiam a Boa-Nova.
Eram outros os signos
e vinham na voz de iaras-propaganda
páginas inteiras de refrigerador e carro nacional
mas vinham.
O governo destinou só 210 mil dólares
à importação de artigos natalinos
avelãs figos castanhas ameixas amêndoas
sóis luas outonos cristalizados
orvalho de uísque em ramo de pinheiro
champagne extra-sec pour les connoisseurs
mas vinham
a fome sambava entre caçarolas desertas
e o amor dormia na entressafra
mas vinham
e petroleiros jatos caminhões nas BR televisores transistores
                                                                               [corretores
descobriram subitamente
Jesus.

(Quem adquire a big cesta de natal Tremendous
no ato de pagamento da primeira prestação
recebe prêmio garantido
e concorre
na última quarta-feira de cada mês
– números correspondentes aos da Loteria Federal –
a visões como um apartamento
                                             um jipe                             

                                             uma lambreta
                                                    um lunik
                                     um anjo eletrônico
e mais:
ajuda quinhentos velhinhos
a provar alegria
pois a Obra de Senectude Evangélica
tem comissão em cada cesta vendida.)

... na manjedoura?
no presépio?
no chão, diante do pórtico arruinado, como em Siena o pintou
                                                                   [Francesco Giorgio?
na capelinha torta de São Gonçalo do Rio Abaixo?
na big cesta de natal?

                                        ... repousa o Infante esperado.
As luzes em que o esculpiram tornam-lhe o corpo dourado. 

O Cristo é sempre novo, e na fraqueza deste menino
há um silencioso motor, uma confidência e um sino.

Nasce a cada dezembro e nasce de mil jeitos.
Temos de procurá-lo até na gruta de nossos defeitos.

Ministro deputados presidentes de sindicados
prosternam-se, estabelecendo os primeiros contatos.

Preside (mal) as assembleias de todas as sociedades
anônimas, anônimo ele próprio, nas inumerabilidades

de sua pobritude. E tenta renascer a cada hora
em que se distrai nossa polícia, assim como uma flora

sem jardineiro apendoa, e, sem húmus, no espaço
restaura o dinamismo das nuvens. Sua pureza arma um laço

à astúcia terrestre com que todos nos defendemos
da outra face do amor, a face dos extremos.

Inventou-se menino para ser ao menos contemplado,
senão querido (pois amamos a nosso modo limitado,

e de criança temos pena, porque submersos garotos
ainda fazem boiar em nós seus barcos rotos,

e a tristeza infantil, malva seca no catecismo, nunca se esquece).
Assim o Cristo vem numa cantiga sem rumo, não na prece

                  com pandeiros alegres tocando
                  com chapéus de palhinha amarela
                  companheiros alegres cantando.

Ó lapinha,

menino de barro,
deus de brinquedo,
areia branca de córrego,
musgo de penhasco,
Belém de papel,
primeira utopia,
primeira abordagem
de território místico,
primeiro tremor.
Vi nascer um deus.
Onde, pouco importa.
Como, pouco importa.
Vi nascer um deus
em plena calçada
entre camelôs;
na vitrina da boutique
sorria ou chorava,
não sei bem ao certo;
a luz da boate
mal lhe debuxava
o mínimo perfil.
Vi nascer um deus
entre embaixadores
entre publicanos
entre verdureiros
entre mensalistas,
no Maracanã
em Para-lá-do-mapa,
quando os gatos rondam
a espinha da noite
os mendigos espreitam
os inferninhos
e no museu acordam as telas
informais
e o homem esquece
metade da ciência atômica:
vi nascer um deus.
O mais pobre,
o mais simples.

                                        
[Andrade, Carlos Drummond. Lição de Coisas. São Paulo, Companhia das Letras, 2012.]

sábado, 7 de dezembro de 2013

madiba


 
foto por abigail hadeed
 
                                                                                                                             
deixando um pouco de lado as postagens pornossatíricas, também quero fazer minha homenagem a nelson mandela. madiba. o maior político e estadista da segunda metade do século XX. "o homem que ensinou a perdoar".

"invictus", este poema que tentei traduzir (mal, diga-se, a toque de caixa),  era o preferido de mandela. os versos de william ernest henley, poeta vitoriano pouco lembrado para além dos belíssimos versos em questão, foram uma espécie de companhia moral e espiritual durante o 27 anos de cárcere do líder sul-africano.
                         
*
                   

INVICTUS


Do fundo desta noite que me veste,
Tal qual dum fosso o escuro indivisível,
Eu agradeço ao deus que ainda reste
Por este meu espírito invencível.
                                                                 
Da circunstância em garras afiadas,
Não me curvei nem foi lamúria ouvida.
Tomando dos acasos mil pancadas,
Minha cabeça sangra, mas erguida.
                                                                    
Além deste lugar de raiva e danos,
O Horror da sombra emerge desde cedo,
e ainda assim, feroz passar dos anos
me encontra e sempre encontrará sem medo.
                                                                           
Que seja a porta estreita quanto for,
Já não importa a dor do veredito;
Sou eu de meu destino meu senhor:
Eu sou o capitão de meu espírito.
 
                                     
trad. r.m.
    

*
                                                     
INVICTUS
 
 
Out of the night that covers me,
Black as the pit from pole to pole,
I thak whatever gods may be
For my unconquerable soul.
                                                   
In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.
                                                        
Beyond this place of wrath and tears
Looms but the horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds and shall find me unafraid.
                                                         
It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll,
I am the master of my fate:
I am the captain of my soul.
                                                                

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

VI – Iâmbicos curiosos

                                                                                                                                       
Eu sei que tens amor que dar, sincera,
e sei que a xana espera minha vara;
eu sei que “a rima é rica” – tu ponderas – ,
mas faz um outro encaixe rima rara.

Se deixas que eu te afague com as nozes   
e afogue o podre pulcro feio cisne
no cu, botão de flor que em fogos tisne,
ao dar-se assim desfazem-se as neuroses.

Por que o horror, se o cu já sabe de
prazeres que da mão e do bidê? 
Por quê, se a roda sempre acaba imunda?

Que o rabo aguente a merda como a tora,
que cagues para dentro e para fora:
ao vaso ou pau por trás, sorria a bunda.    
                         
                           
* um dos sete sonetos da seção "o xifópago aconselha".

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

bem no meio do cu da morte

                                                                                                                                                                                         
maria schneider e marlon brando na antológica cena
de "o último tango em paris" (bertolucci, 1972)