terça-feira, 15 de março de 2011

Aeromodelo Ícaro


      A religião em mim é uma doença crônica. Preocupo-me com ela como me preocupo com minha esofagite. Doenças crônicas são incuráveis, pois não, mas podem, com mudanças de comportamento e de visão de mundo, ser detidas em algum ponto. Sei que ainda muito me preocupará a invenção de Deus; o medo da finitude e o egocentrismo imensurável que nos levaram a inventar e persistir em Sua invenção. Deus – está claro para mim – existe! como um poema (que afinal não deixa de ser ficção) existe. Acredito piamente em coisas e seres inventados; são capazes de criar outras coisas – reais – absolutamente terríveis ou absolutamente belas. Deus há de existir até que morra o último homem que acredita em Deus.
      Por que digo isso? Sei lá. Talvez porque outra questão crônica em mim seja esta mania de encurralar qualquer assunto entre pequenas divagações mais ou menos infelizes. A partir daqui, na condição de timoneiro e único viajante desta canoa, corrijo a rota e toco em frente... Ou, antes, divago mais pouco...
      Crônicas, tal qual poemas, nascem da profunda coincidência de acasos. São capazes de poesia às vezes até mais do que os poemas: desinteressadas, dão de ombros e se realizam na lírica miúda, pasta sob o braço e guarda-chuva, lendo os jornais entre goles de café e cuecas viradas.
      Dos acasos todos, o mais comum que se me passa – a um sopro de vento, farfalhar de folhas, luz estranha sobre a mesma coisa – é ser jogado inapelavelmente a um dos pátios da infância: escola, quadra de esportes, quintal de casa sob a mangueira, adro vazio de igreja. A partir de então, todas as coisas podem vir a ser conjugadas no pretérito mais-que-presente do inesquecível. O tempo perde o fio, a linearidade. É imperceptível para as pessoas à volta, mas por brevíssimos momentos enguiça a cronologia pessoal. Os tempos se engavetam na Avenida Rodrigo Madeira.


***
      Avenida? Melhor que se dissesse alameda ou, ainda melhor, ruazinha sem saída. Que importa?! Ali – avenida, rua sem saída ou alameda –, de há muito tempo exatamente agora, assisto perplexo a um acidente lírico: minha primeira comunhão, a primeira vez; ou por outra, a primeira missa no ministério do amor.
Entrei com V. de mãos dadas na capelinha e, por uns poucos segundos, tive sim Jesus Cristo por sogro.
      Amava em silêncio a pequena V.. Eu queria o Corpo (não o corpo de Cristo), mesmo sem saber direito o que fazer com ele. Eu queria o corpo de V.; os olhos, a pele, as mãos e a boca de V.; os seios como sóis nascentes de V.. Tudo aquilo que, caso ela me dissesse “toma, é teu, sou tua”, me faria sair correndo em pânico.
      Todas as poucas vezes em que conversei com V., foi fazendo economia de guerra com as palavras: uma palavra por ocasião, que o resto era um silêncio tão estúpido que talvez se ouvisse meu coração zurrar e escoicear o peito. Às vezes concluo que, durante aqueles poucos meses das aulas de catequese, eu só lhe disse uma palavra, uma única frase abortada após todas as gestações do mundo.
      À entrada da capela, os primeiros comungantes vínhamos aos pares. E – ai, meu Deus! – com o perdão do clichê, nossas mãos eram asinhas de penugem rala. Suadas, por razões diferentes, mas suadas e enlaçadas. Se a dela era pequena demais para ser de harpia, a minha era, com certeza, asa de Ícaro, feita e desfeita para ascensão e queda, para aquilo de que só um neologismo dá conta: paichão.
      V. nunca quis nada comigo. Experimentei também, primeira vez, a patética ambigüidade de amar e o poder afrodisíaco da indiferença. V. queria e conseguiu o que quis: meu amigo F., lourinho e nada melancólico. As meninas, não sei bem por quê, precisavam de meninos lourinhos, de preferência os que não fossem tímidos e melancólicos. E meu amigo venturosamente condisse: “Puxa, não parece o príncipe Adam do He-Man?!” Já eu, sob aquele sol sem pálpebras de Foz do Iguaçu, sol de derreter catedrais, era um pequeno caçador etíope; de quebra, dentucinho. As meninas não se interessavam. Nem ligavam para minhas outras qualidades: bom de bafo, excelente soldado de infantaria (com bicicleta) na guerra de mamona, capaz de – embaixo dágua, sem respirar – ir e voltar na piscina, exímio chutador de pedras e tampinhas no golzinho do bueiro; além da capacidade invejável de mentir feito um estelionatário. Nada disso importava a V.; só tinha olhinhos para meu amigo Adam.
      Demorei bastante tempo pra descobrir que V. era feia. Desencanei. Depois vieram outras, mais bonitas e mais feias. Segui meio melancólico e pateta com as mulheres. Sempre fui fiel àquele meu primeiro sentimento de mutismo e assombro. Pirralho de tudo, já montava aeromodelos Ícaro.


***
      Em suas memórias, Bob Dylan conta um episódio de seu comecinho de carreira, ainda antes de se tornar compositor. Um famoso mas decadente lutador de wrestling, que precedera o fantástico roufenho numa feirinha de variedades de Duluth, teria lhe dito ao descer do palco: “Vai lá, Bob, mostra pra eles como é que faz”. E Dylan, no livro, arremata: “Não sei se foi assim que aconteceu, mas é assim que eu lembro.” Pois então. Hoje é assim que eu lembro. Quem sabe amanhã seja outra história.
      Minha infância ainda renderá, do século anterior, muitas notícias de mim para mim mesmo. Como um jornal ao mesmo tempo velho e estranhamente novo – tinta fresca, cheiro de celulose e ipê –, com que se embrulha um peixe que sequer foi arrancado da água. Peixe escorregadio e absoluto: feito apenas de tempo.
      Quando eu era moleque, pescava pelos riachos bagres, cascudos, lambaris, tilápias. Vez ou outra, peguei cascudo que eu teimava em dizer que era bagre. Quem sabe o que se pesca amanhã no rio de ontem? A infância tem mais conjugações do que a gramática. O pretérito mais-que-precário do inventativo, por exemplo, é das declinações que mais me comovem a lembrança.

* Rodrigo Madeira é crônico. Escreve mensalmente na Gazeta do Torto.

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