domingo, 20 de março de 2011

infância

                       e eu não sabia que minha estória
                                   era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

                                                        drummond



o menino sem camisa empinava o sol
(a palma da minha mão é hoje a cartografia do exílio)

no retrato , a carranca dos avós: eternamente condenados
a fazer cara de moscou
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

O menino, sólido e leve, não sabia crer: deus é uma fumaça
tão pesada...
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

lançou a auréola no jogo de argolas
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

o jardim da infância era o mundo. e o mundo, pequeno
como uma vila, não cabia no infinito
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

os jardineiros dormiam mortos sob os caules do azul
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

escreveu numa mensagem-de-garrafa-lançada-ao-mar:
o mar não existe!
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

d’artagnan, se não deixasse richelieu para amanhã
levava sopapos da mãe
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

iniciou-se em literatura comendo papel
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

e o desejo maciço de lavar-se em bacia de osso
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

a jangada seguia sobre um pântano de glicínias...
don juanito nos infernos, narcisando
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

e também fumava escondido, de cócoras, e gomava
as asas de urtigas e flores de ipê
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

ícaro obedecia a sua natureza de filho:
desobedecia ao pai
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

e uma pêra nascia no limoeiro
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

a segunda divisão panzer SS “das reich” de saúvas
carregava o chassis do louva-a-deus
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

o menino passeava com seu cão imaginário
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

à margem de teixos roendo-se em silêncio, especulava
as águas: iscara um anzol de nuvens para apenas roçar
o que foge, passarinhado...
(a palma da minha mão é a cartografia do exílio)

...................................................................

mas há de sempre trocar de pele e carnes,
pois seu corpo é sua estória...
(a palma da minha mão é o registro do que morro:

o menino me recomeça)

* do livro "sol em pálpebras" (imprensa oficial, 2007)

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