GIAN LORENZO BERNINI, apolo e dafne (1622-1625)
No bosque fundo, o mundo canta e é mudo.
(Pessoa canta: o mito é nada, tudo.)
E as ninfas são, as ninfas dão... mas
uma
não! Aquela: a ninfa-nunca, a fulva Dafne,
filha de Ladão, pomba sem milhafre,
que nunca amou ninguém por nada, em
suma.
No bosque fundo, o mundo canta e é
mudo.
(Pessoa canta: o mito é nada, tudo.)
Amor que também ama sente asco.
Bem-lhe-quer, mal-lhe-quer, as duas
flechas
somaram sim com não – e a conta fecha?
Amor que folga ou falta entorna o
frasco.
Dafne dispara. E a crina solta as
tranças.
(Um deus, mais do que um fauno, jamais
cansa;
o que cuspiu Cupido não se evita.)
Fugindo ao deus que louco corre à
cata,
correndo seminua pela mata,
o desespero a deixa mais bonita.
E à sombra do milhafre sobre a pomba
(Cupido entre as folhagens ri-se e
zomba),
suplica a presa, a fuga quase finda:
– Eu quero ser loureiro que não
ama!
Loureiros não se deitam numa cama!
Mas natureza é mais que mito ainda...
De estar tão arvorada, a lenha
exposta,
o corpo se arrepende e quer e gosta
e agora, aberta em flor, cheira a
malícias;
implora a Zeus que torne em vento Apolo:
que o deus lhe passe sempre pelo colo,
que vente por seus louros em carícias.
* inspirado nos versos finais do soneto II: 12/ Sonetos a Orfeu, de Rilke.
[Rilke, Rainer Maria. Poemas;
tradução e introdução de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras,
2012.]
II: 12
ResponderExcluirOh quer a transformação! Deixa que te arrebate a chama:
nela algo te escapa em que a metamorfose se gloria;
o espírito criador, que domina o terrestre, ama
bem mais, no impulso da figura, o centro que rodopia.
O que se tranca em fixidez é ele próprio a rijeza;
acaso pensa estar mais seguro no pardo singelo?
Espera: o mais duro anuncia desde longe a dureza.
Ai -: que já baixa o ausente martelo!
Quem se verte como fonte, conhece-o o conhecimento,
que o segue, fascinado, pela serena criação,
na qual o começo é fim e o fim começo, amiúde.
O espaço feliz é filho ou neto do distanciamento,
que eles franqueiam, pasmos. E Dafne, após a mutação,
quer, loureiro, que em vento te mudes.
(rainer maria rilke/ trad. josé paulo paes)