sábado, 24 de novembro de 2012

Dafne

                               
GIAN LORENZO BERNINI, apolo e dafne (1622-1625)

  
                                                      
No bosque fundo, o mundo canta e é mudo.
(Pessoa canta: o mito é nada, tudo.)
E as ninfas são, as ninfas dão... mas uma
não! Aquela: a ninfa-nunca, a fulva Dafne,
filha de Ladão, pomba sem milhafre,
que nunca amou ninguém por nada, em suma.

No bosque fundo, o mundo canta e é mudo.
(Pessoa canta: o mito é nada, tudo.)
Amor que também ama sente asco.
Bem-lhe-quer, mal-lhe-quer, as duas flechas
somaram sim com não – e a conta fecha?
Amor que folga ou falta entorna o frasco.

Dafne dispara. E a crina solta as tranças.
(Um deus, mais do que um fauno, jamais cansa;
o que cuspiu Cupido não se evita.)
Fugindo ao deus que louco corre à cata,
correndo seminua pela mata,
o desespero a deixa mais bonita.

E à sombra do milhafre sobre a pomba
(Cupido entre as folhagens ri-se e zomba),
suplica a presa, a fuga quase finda:
 – Eu quero ser loureiro que não ama!
Loureiros não se deitam numa cama!
Mas natureza é mais que mito ainda...

De estar tão arvorada, a lenha exposta,
o corpo se arrepende e quer e gosta
e agora, aberta em flor, cheira a malícias;
implora a Zeus que torne em vento Apolo:
que o deus lhe passe sempre pelo colo,
que vente por seus louros em carícias.
                              
                
* inspirado nos versos finais do soneto II: 12/ Sonetos a Orfeu, de Rilke.
[Rilke, Rainer Maria. Poemas; tradução e introdução de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.]      

Um comentário:

  1. II: 12

    Oh quer a transformação! Deixa que te arrebate a chama:
    nela algo te escapa em que a metamorfose se gloria;
    o espírito criador, que domina o terrestre, ama
    bem mais, no impulso da figura, o centro que rodopia.

    O que se tranca em fixidez é ele próprio a rijeza;
    acaso pensa estar mais seguro no pardo singelo?
    Espera: o mais duro anuncia desde longe a dureza.
    Ai -: que já baixa o ausente martelo!

    Quem se verte como fonte, conhece-o o conhecimento,
    que o segue, fascinado, pela serena criação,
    na qual o começo é fim e o fim começo, amiúde.

    O espaço feliz é filho ou neto do distanciamento,
    que eles franqueiam, pasmos. E Dafne, após a mutação,
    quer, loureiro, que em vento te mudes.

    (rainer maria rilke/ trad. josé paulo paes)

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