XV
Eu, François Villon, aos cinquenta e um anos
gordo e corpulento, de lábios cor de cinza
e bochechas que o vinho arroxeara,
a uma corda enforcado
sei tudo acerca do pecado.
Eu, François Villon,
de uma corda pendido
balanceio-me lento, tendo sido
pior que Judas, que também morreu enforcado.
As velhas estremecem ao ouvir as minhas façanhas
pois não tive respeito pela vida humana.
Que o vento me mova, oiço já próximas as vozes
daqueles a quem mandei pentear macacos.
Esperam-me no inferno
e esfregam as mãos
porque correu ali, do Lete* ao Cócito**,
que por fim Villon tinha morrido enforcado!
E a lua aparece, e ilumina a forca
dando ao meu rosto a cor do sangue,
eu, que me fiz de mau entendedor do que fazia
até que por fim morri enforcado.
E os lobos ladram em torno do patíbulo
e, semelhantes a ratazanas, as crianças gritam:
Villon morreu enforcado!
Velhas que me insultáveis na estrada escura:
sabei que o sémen molha os meus quadris
e é fresco e saboroso o sémen do enforcado!
Que os meus dentes façam
proveito ao teu caldeirão
bruxa dos confins, tu a quem admiro
conhecedora de bruxedos, de poções e de feitiços
mais poderosos que
a fé e que os apóstolos
de quem se riu Simão, o Mago***, mais apta que eles
a conhecer a dor
deste que nem um sepulcro merece!
E que o vento, ao amanhecer, amanhã,
vaidosamente diga a rãs e a vermes
Villon tornou-se finalmente célebre
pois no fim uma forca delineia a sua figura
Villon morreu enforcado!
E que da minha mão emurchecida caia a rosa
que os meus dentes apertaram
pois ela soube os meus crimes
e foi minha confidente
e que o diga ela ao mundo, caindo ao chão
Villon morreu enforcado!
Logo virá a canalha
fossar no meu túmulo
e urinarão em cima, e certamente os amantes
farão amor sobre os meus ossos
e será o nada a minha mais simples recompensa
para que o diga,
não sei se o nada ou a rosa:
Villon morreu enforcado!
De mim saberão as crianças
de idades vindouras
como de um grande pecador
e assustadas correrão a esconder-se
debaixo dos lençóis quando as suas mães
lhes disserem: “Cuidado, vem aí.”
E essa será a fama de Villon, o Enforcado.
E será tanta a minha fama que prefiro o esquecimento
porque um dia, amanhã
desse futuro que o fedor
assemelha à memória, uma mão
deixará cair, ao ouvir o meu nome
o fruto do cu, o excremento
e a minha vida, e a minha carne, e todos os meus
escritos
serão, prometo, só para as moscas!
trad. jorge melícias
ResponderExcluirNOTA DO TRADUTOR:
* Na segunda parte da Divina Comédia, de Dante Alighieri , o Purgatório, o Lete aparece como um rio de cujas águas os pecadores tinham de beber para apagarem a memória dos seus pecados cometidos - e já apagados pelos castigos purificadores do Purgatório - e entrarem no Céu.
** Na Divina Comédia, de Dante Alighieri, o Cócito é um rio de gelo no 9°Círculo do inferno, onde estão os traidores. Nesse rio estão quatro esferas por onde eles se distribuem, e é inclusive a morada de Lúcifer.
*** Simão, o Mago, também chamado de Simão de Gitta, foi um líder religioso samaritano com quem o apóstolo Pedro terá travado uma acesa polémica (At. 8, 9-24). Encontram-se referências a este personagem no livro dos Actos dos Apóstolos e noutras obras ligadas ao gnosticismo. O texto bíblico narra o episódio em que Simão tenta comprar dos apóstolos o poder de operar milagres. Tal acto, considerado pecaminoso pela teologia cristã, foi denominado de simonia (acto de Simão), termo que define especificamente o comércio ou tráfico de coisas sagradas e espirituais, tais como sacramentos, dignidades, indulgências e benefícios eclesiásticos, e que estaria no centro das críticas e discussão que conduziriam à Reforma protestante no século XVI.
A obra poética de Leopoldo María Panero situa-se, na emblemática expressão de Túa Blesa (professor na Universidade de Saragoça e, provavelmente, o maior especialista do poeta), como um “sol negro” em toda a cosmologia da poesia espanhola contemporânea. É a partir de um lugar que é o próprio vazio ou, mais exactamente, “um buraco lavrado no vazio” (socorremo-nos, uma vez mais, das palavras de Blesa), que irradia a potência da palavra de poeta, desde sempre escrita ao arrepio do sistema e da legitimação da ordem cultural e social. Toda a obra de Leopoldo María Panero carrega em si a marca da transgressão, situando-se nas margens “não já daquilo que se entende por literatura, mas do que poderá chegar a ser aceite por literário”. Daí as muitas reticências que a crítica, ou, pelo menos, certa crítica, sempre teve para com a obra do poeta. Porque aqui a vulgaridade (utilizamos a palavra despida de qualquer intenção de juízo de valores, mas apenas como aquilo que se quer vulgar) nunca se fez banal. E é este o mais belo oximoro de toda a poesia de Panero, a perseguição de uma vulgaridade fracturante, onde toda a aparente trivialidade resulta sempre transcendente.
jorge melícias