sábado, 26 de outubro de 2013

minha amada express

               
um relâmpago e após a noite! – aérea beldade,
e cujo olhar me fez renascer de repente,
só te verei um dia e já na eternidade?
 
bem longe, tarde, além, jamais provavelmente!
 
                                      baudelaire, a uma passante


eu me lembro de você,
musa em trânsito,
feita de primavera
e pressa.

de suas axilas caíam flores,
seus cabelos cheiravam
                                a gasolina?
eu me lembro.

um barulho surdo,
de sangue nas veias,
entre os barulhos do dia.
um passo após o outro
na partitura
             do silêncio.

talvez fosse um spam
             da beleza (e um susto)
em meu sistema nervoso central,
no sistema nervoso
de toda a cidade.

(vasculho o riquíssimo lixo
urbano
de uma lembrança.)


2

você me beijou até abrir o sinal.
você me deixou,
amante e mãe,
sobre a calçada, para eu nascer
sozinho. largou-me no meio da casa
de minha infância. bebeu
minhas lágrimas
sobre uma alfombra
de vestígios e ruínas.
morreu de velhice
numa manhã de agosto.

você soltou minha mão
e disse:
              "hei, não exume seu cadáver
               sobre minha cama, não assine
               obituários de você mesmo
               em poemas delicados. porra, antes
de morrer, viva!

ouça a respiração das coisas.
dobre-se sobre elas
e as ouça (tudo: o corpo, a cidade, as fezes
e violetas) respirar."

e ainda assim, você apenas passou,
musa anônima
entre os carros,       (bye-bye, baby)
aparição de carne e carne,
sujeita à chuva
e à ferrugem
do esquecimento.

mas você poderia,
                               eu sei,
                      num golpe obsceno de silêncio,
                                          ali mesmo
                                          na faixa de pedestres,
                      despir-me o pijama da rotina,
                      virá-lo do avesso,
ou (sem vexame algum),
                                ao coral de buzinas,
    enquanto de sua buceta,                
    sob o restolhal cor-
                           de-ozônio desmaiado,
    escorresse um
                 óleo carburante,
                                             simular orgasmos com uma planta,
um poste de eletricidade, e ainda com martelos de plástico.*

                                    
                                                                                   *[de uma notícia online]

eu me lembro,
antes que a noite chegue,
antes que o mundo acabe,
                                               e eu nem sei o seu nome. 


3

nós também construímos
em curitiba (no mundo)
o inferno
com o diesel e a fumaça
do comércio diário.

por isso é que eu sopro a clarineta
de um escapamento
ou canto tossindo,
com a voz pulvero-
rápida, empretecida,
irritada.
os pulmões chiam
dentro do canto
por você,
misturando desejo
e dióxido.

quem diria que a visconde de nácar
tinha vocação (ou combustão,
                        ou congestão)
e fuligem de cegar
para tornar-se
meu caminho de damasco? e você, uma menina
(de 20 e poucos),
um susto da beleza, outra
qualquer, para ser
a epifania
com quadril e seios,
que converte
à única vida que há?

você tremia no ar,
bailarina paranoica,
pisava
      a cortina translúcida
dos gases sujos
                    e do calor,

você tremia no ar.


4

a contar de então,
venho sangrando
no corpo a manhã.
as vísceras da aurora
são anônimas.

o que sobrou de alma
               (o que não foi deixado, uma carcaça
pra feder
                      ao sol),
                                         encardiu-se
                                         no carbono das horas,
                                         viciou em oxigênio.

a vida a vida.
e por trás dela,
ainda a vida.
vida total, fiapo de vida,
vida desavinda,
no avesso de si mesma...

e no coração de tudo
o que vive ainda,
a morte, com dedos
de mercúrio,
inventa-se,
enrola os novelos do tempo.

ou fora de nós,
atrás dos muros e janelas,
dos batentes,
embaixo das pedras,
atrás dos livros
ou
do lampejo
e arquejo
de cada palavra,

nos observa.


5

parir-se é mais difícil
do que ser parido;
como o sol, nascer
todos os dias.

sinto o mundo latejando
em minhas carótidas. a vida,
desde meu estômago
                            (desde meu caralho),
incha, inflama, ameaça
rasgar a pele e as roupas,
arremessar meus olhos
no meio da rua,
explodir meu coração
        como um fogo de artifício.

um galo de lata
de coca-cola,
almuadem,
canta cinco vezes
                           ao dia.

caminho por nossas ruas.
uma araucária
na lapela, uma
araucária atravessada
na garganta.
o iguaçu brota,
poluído,
de minha saliva, lava-se
em minha infância
                
                 (talvez eu compre uma
                 arma,
                 talvez seja
                                  atropelado,
                 ou fume um
                 último cigarro,
                 ou siga um vira-lata
                 por toda a cidade)

e é em você que eu penso, minha amada,
antes que eu me esqueça,
antes

que eu

me esqueça.

                                
          
(pássaro ruim, 2009)

Nenhum comentário:

Postar um comentário