segunda-feira, 23 de julho de 2012

octavio paz (II)

              
QUARTO DE HOTEL


I

À luz cinzenta das reminiscências
que anelam redimir o já vivido,
é que arde o ontem fantasma. E então sou este
que dança aos pés das árvores, delira
com nuvens que são corpos que são ondas,
com corpos que são nuvens que são praias?
Eu sou alguém que toca e canta as águas,
a nuvem e voa, a árvore e sem folhas,
um corpo e se levanta e que contesta?
Arde o tempo fantasma:
o ontem arde, o hoje queima-se e o amanhã.
Aquilo que eu sonhei dura um minuto
e num minuto apenas, o vivido.
Que importam se são eras ou minutos?
Também o tempo de uma estrela é tempo,
gota de sangue ou fogos: piscar de olhos.


II

Lava o meu rosto com suas mãos frias
o rio do que passou, suas memórias
correm sob minhas pálpebras de pedra.
Não se detém jamais sua corrente
e eu, a partir de mim, sou eu que o verto.
É de mim que urge o passado?
Corro com ele e aquele que o verte
é apenas uma sombra, e me finge, oca?
Talvez ele nem corra: ao que eu me afasto,
sequer me segue, alheio, consumado.
E quem já fui estaca na ribeira.
Não se recorda nunca, não me busca,
não me contempla e nem de mim despede-se:
contempla, busca um outro fugitivo.
Um outro que no entanto não se lembra.


III

Nem antes nem depois. O que eu vivi
será que ainda o estou vivendo agora?
O que eu vivi! E acaso eu fui? E flui:
o que eu vivi estou morrendo ainda.
O tempo não tem fim e finge lábios,
minutos, morte, céus, e finge infernos,
portas que dão no nada e ninguém cruza.
Não há fim, nem paraíso, nem domingo.
Não nos aguarda Deus finda a semana.
Dorme, não o despertam nossos gritos.
É apenas o silêncio que o desperta.
Quando tudo se cale e já não cantem
os sangues, os relógios, as estrelas,
Deus abrirá seus olhos
e ao reino de seu nada voltaremos.

            
tradução: rodrigo madeira
                                   
poema no original

2 comentários:

  1. serei aquilo que f[l]ui?

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  2. é isso aí, dom pozzo. e somos todos, né não?!
    o que foi e flui pra nunca mais...
    dá até pra fazer uma paródia do leminski:

    la vie - en passant -
    n'est pas qu'un instant

    c'est toi
    c'est moi
    c'est ça

    c'est la vie de quelqu'un
    qui n'a pas
    une autre fois

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