I
Só o ego de um psicopata é maior que o ego de um artista.
No entanto, outro dia mesmo, vendo na TV um programa sobre
a origem do universo, o poeta tomou mais uma de muitas porradas pedagógicas.
Dizia Alex Filippenko, astrofísico da Universidade de Berkeley: Como é
pequeno o pedaço da História que de fato ocupamos! Para simplificar isso,
imagine comprimir 14 bilhões de anos de História do Universo em 14 anos. Nessa
escala, a Terra teria existido somente nos últimos cinco anos. De maneira que,
em 1/3 da História do Universo, as grandes criaturas teriam se desenvolvido há
apenas sete meses. Nessa escala, os dinossauros teriam se extinguido há apenas
três semanas. Toda a História registrada dos seres humanos teria começado há
apenas três minutos. As sociedades industriais modernas, nos últimos seis
segundos.
Se é uma doída, mas saudabilíssima, paulada na mesquinha e
autoatribuída importância da espécie, o que dizer de nosso infinitesimalmente
mais mesquinho narcisismo individual?
Como não lembrar os versinhos de Stephen Crane? A man said to the
universe:/ “Sir I exist!”/ “However”, replied the universe,/ “The fact has not
created in me/ A sense of obligation.”
* (Algo
como: Um homem falou para o universo:/ “Hei, eu existo!”/ “No entanto”,
redarguiu o universo,/ “Este fato não provoca em mim/ o menor senso de responsabilidade.”)
II
E partindo desse pressuposto, partindo de que somos já de
saída insignificantes, no entanto chegamos a extraordinários.
Somos capazes de pensar a morte, não somos? De povoar a
morte, de reinventar a vida. De viver eternidades. A alma, cheia de máculas e
pesadelos, ao mesmo tempo rasgou-se no fundilho. Somos trágicos e banais,
metafísicos e cotidianos, graves e ridículos. Diante do fim, talvez rebente-nos
dos pulmões um soluço e uma apóstrofe: Vermes, deixem-me ser eterno!
Como diz meu irmão Dom Pozzo: Tá branco, tá branco! A
gente até que é saudável, mas sofre de humanidade. Pouco importa que
desejemos medir e mentir, medir e manipulá-lo.
Desde os sumérios, dividimos o Tempo em blocos de 12. Desde
antes, o homem se divide em projeções e memórias afetivas. O homem encilha o
tempo, doma o tempo em quadrantes, ampulhetas e poliuretanos. Cavalga o tempo.
E cai do cavalo.
III
Veja como são as coisas: escorrendo pelo Visconde de Nácar,
pensei sem mais algo banal e inútil, incapaz sequer de desdobrar-se num poema
ruinzinho.
Como aquilo me causou alegria e perplexidade gratuitas!
(Sim, até a perplexidade pode ser gratuita.) Veja bem, não me fará
diferença alguma. Muito menos a você, escassíssimo leitor. Algo que não nos
levará a nada; levaria no máximo, de vento em vento, guardanapos, folhas secas,
papéis de pão, uma sacola plástica...
(Desculpe, lá vou eu de novo, um vira-lata divagando.
Voltemos à sarna que solicita as unhas...).
Escorrendo apressado pela Visconde de Nácar, pensei algo
banal e inútil, e pensá-lo era sentir-me o dono de um cachorro sem dono, era
ser de novo um menino, a imaginação esfolada. Às vezes pouco é melhor do que
nada, às vezes pouco é melhor do que tudo. Pensei simplesmente, e a ideia, de
dentro pra fora, ia refrescando meu rosto:
o
vento é uma máquina vazia
Pode crer! Mais gratuito do que jamais fui grave, pensar “o
vento é uma máquina vazia” me fez, por alguns instantes, eterno entre.
(Li esse baita achado num livro de poemas do Maurício Arruda Mendonça.)
Entreterno.
Depois, é claro, voltei a ser premeditado. Segui àquele
lugar aonde eu ia: imprescindível, inadiável, respeitabilíssimo. Aquele lugar
que eu já nem lembro.
IV
A eternidade, no presente, é uma sensação indivisível, flor
que tem num só instante raízes neste, em todos, em nenhum momento; mero
abre-e-fecha de parênteses (entre as tais coisas inadiáveis da vida), mas
parênteses inesquecíveis...
Ou será que já estou mentindo? Talvez a eternidade no
presente sequer exista. Quem sabe seja coisa de se conjugar somente no passado;
mais precisamente, no pretérito imperfeito do subjetivo: a eternidade era um
colibri bebendo o açúcar dos relógios.
E mesmo assim, porque somos apaixonados e temperamentais, a
coisa toda, o vívido vivido, parece suspenso fora do tempo pelos fios de meus e
teus cabelos.
Talvez por isso aquele menino com o rosto cheio de ranho e
terra me dissesse:
– É assim mesmo, tio, matando o
tempo eu consigo ser eterno!
E há também o que dizia ao menino a mãe
dentro da tarde chuvosa. Dizia-me, com um sabor poético tacanho e inesperado,
que também fica eterno o que se esquece. Ela me disse: O que a gente esquece,
meu filho, aumenta a memória de Deus!
V
Tateando cego as paredes do meu espanto (e quem garante não
ser a alça da gaveta o trinco de uma porta que eu abro?), cheguei por fim a uma
sentença: a eternidade, também ela feita de tempo – e apenas tempo –, não é o
bom e velho sempre; a eternidade é um jamais.
Ah!, meu irmão, isso não dá o mesmo barato de pensar,
enquanto sinto o vento em meu rosto, “o vento é uma máquina vazia”. A razão não
funciona como o pensamento aleatório e vacuifeito. A razão me deixa mastigando
esta bola de farinha difícil engolir.
O vento é uma máquina vazia. A gente mesmo uma máquina
vazia, uma cigarra vazia, oca, quando enfim se cantar inteira. (Lembra do
Bashô?)
Mas e o tempo,
o que é o que é?
VI
Quando eu era moleque, ganhei um relógio despertador de uma
tia distante. Fiquei curioso. Sempre quis entender o Tempo. E lá fui eu: abri o
relógio e removi cada engrenagem, cada pecinha. Tirando-as uma a uma – e
tirando também o invólucro do mecanismo – não sobrou nada.
Absolutamente nada. Aquilo me deixou abismado. Hoje eu mais ou menos entendo
que justamente esse nada que sobra é o Tempo. O mesmo nada que, sabe-se lá de
onde, vem forjando e enferrujando a gente.
VII
Chega de conversa fiada. Tá na hora de quebrar a esquina.
Passei seis meses de bobeira, de teimoso, referindo o tempo. Minha
incompreensão permanece intacta. Tudo o que faço – tudo o que os líricos
fazemos – é brincar com a incompreensão e o espanto enquanto há tempo. Enquanto
houver tempo.
Um pouco de personificação nunca fez mal à poesia. Por que
então não dar ao Tempo um rosto e um par de pernas? De modo que, para terminar:
pensemos no Tempo como num velho vigoroso e mal-educado descendo a rua XV.
Imaginem, a título de exemplo apenas, Dalton Trevisan descendo a rua
XV.
O que se dá quando nos topamos, quando o reconhecemos?
Nada. O Tempo atravessa-nos como se fôssemos invisíveis. Passa por nós na rua,
na casa, no bar, no trabalho, no amor, no sono e na insônia. Não responde a
apelos e cumprimentos, não se detém sequer um instante, sequer um leve giro de
cabeça a reconhecer-nos ou desprezar-nos.
Entende o Tempo que estamos já mortos? Somos os tais cadáveres
adiados, coçando-nos, amando, procriando? Será que foge de nós (Tempus
fugit), seus fantasmas, com medo ou remorso?
Talvez, pelo contrário, seja que tenhamos todos o mesmo
rosto, indistinguíveis, como para nós têm o mesmo rosto todas as moscas deste
mundo, como para nós é a mesma suas biografias de três semanas. Pouco se lhe dá
ver-nos, jovens ou velhos, gênios ou idiotas, nus ou vestidos, bonitos ou
feios, com uma faca ou um ramo de flores na mão direita.
Ou é porque você marcha, ó Tempo, atarefado, pontualíssimo?
É, você mesmo, Tempo! Marcha para encontrar-nos – dali a anos, amanhã logo cedo?
Marcha para encontrar-nos definitivamente, uma faca ou um ramo de flores em sua
mão direita, numa outra esquina?