quinta-feira, 30 de agosto de 2012

três fotógrafos (por rodolfo jaruga)

                                                                                                                      

* respectivamente: thiago autran (autorretrato); rafael bertelli (por albert nane); thiago autran (por rafael bertelli).

                             
Três fotógrafos


Um fotografa como quem mata. Cada foto sua é tiro quente de revólver. E suas mãos são ágeis, são pincéis que tingem seu entorno com luz e fogo e revelam serem frágeis os instantes memoráveis, fugitivos os momentos importantes. Um mata a cada e muita vez o mundo e não se acalma, não se dissolve. E há sempre um silêncio violento a lhe envolver e uma ausência a lhe exigir o movimento morto de uma foto.


O outro faz fotos por fazer amor. Seus olhos espelhares se enamoram daquilo que apodrece, do que, vivo, evoca a morte. Ao lançar a vista ao mundo, o outro lança uma viscosa saliva que corrói e saboreia a mucosa da vida, as ruínas de umbrais de uma cidade rugosa e triste. Sua foto é comunhão com a carne morna desse mundo. De certa forma, o que o outro faz é fotografar o espelho inacabado e não temer o refletir seu próprio nada.

        
O terceiro tira fotos como quem ora. Suas fotos são afrescos em paredes de uma igreja matemática. Sua dura geometria é uma oração exata e fria, evocação de seu vazio. E a fina arquitetura que ele trança em secas linhas é a estrutura mesma de sua tumba, a construção da delicada sepultura em que ele guarda, com pudor, todo o seu amor e medo de viver. O terceiro tece fotos como quem reza e caminha resoluto para o fim.


                                                                                         RODOLFO JARUGA

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

rodchenko

       




                                                                                                   














terça-feira, 28 de agosto de 2012

alberto martins

                                                                                         
NUMA EXPOSIÇÃO DE RODCHENKO (1891-1956)                                                                                                                     




                                                                                                                           
Quando vejo as fotos de Rodchenko
dos primeiros tempos da Revolução
                                          descubro
                                          nos corpos
                                          nas caras
                                          nas ruas
grandes quantidades de energia   o poeta
era equivalente a uma torre de eletricidade
uma corrente de transmissão trilhos de aço
cortando a estepe 

mesmo a expressão feroz
do retrato de Maiakóvski
deve muito ao ar de época:
ar de quem está à frente
no campo de combate

Naquelas fotos a descoberta do mundo
era simultânea à descoberta da forma:
qualquer arruela ou parafuso era fruto
do trabalho comum  e o trabalho comum
uma alegria de todos

Mas que faz um fotógrafo
quando a matéria de seu trabalho
se transforma de forma irremediável?

Nas fotos do último Rodchenko
não sei ao certo o que seu olho está buscando
Parece haver mais graça na lona fora de foco
do circo do que nas acrobacias
da foca e do palhaço

De algum modo ele entendeu
que as coisas haviam chegado
a esse ponto  

                                         
                     ALBERTO MARTINS                          


* fotos de rodchenko: vladimir maiakóvski (1924);
vladimir durov com leão marinho (1940)

sábado, 25 de agosto de 2012

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

poema para albert nane

                          
                                foto de albert nane



quando está no campo [no espaço fotográfico], ali está,
capturado de uma vez por todas, como os insetos no âmbar (...)
                                                               philippe dubois  

                   
a imagem está parada
mas o tempo        não

a imagem está parada
mas os olhos nas órbitas
as pálpebras         não

a imagem está parada
mas não está parada
a respiração

a imagem está parada
mas não está parado
o coração


2.

o inseto no âmbar (voando)
vareja dentro,
sem qualquer
medida, o que é recesso ilimitável
de um único momento
e o restante
de nossas vidas.

o inseto-instante,
imóvel no âmbar,
está voando
em quem se deixa voar
por um inseto no âmbar.

o inseto no âmbar
está voando


* o latim das moscas (inédito)

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

você


eu que por pouco não sou transparente
apesar de minha solidez aflitiva
filho de todas as razias
eu que por mais um pouco seria invisível
que saio de casa para entrar no mundo
que enxergo, como henrika,
peixes nas poças de chuva

eu que sou um franciscano brutal
que alimento os pombos com parafusos
um relógio onde o tempo se estraga
que nunca superei as drogas
que nunca venci aquela paixão
que não posso ver uma mesa de cartas

eu que como papel entre
haustos de tinta
que tenho a chave para as praças da cidade

eu que bebo com os cavalos as águas estigiais
que oxido a lua de urina
que construí escadas que vão dar no teto – como
madame winchester 
que inventei janelas inacessíveis
construí casarões sem alicerces
na mudança meus fantasmas
e uma mitologia de cães cegos

eu que sou esta florescência de miasmas
cuja alegria é uma careta
cujo sangue é de auroras
cujos ossos são de tijolos e a alma
de querosene

meu sonho será
apodrecer exalando música

eu que guardo uma gaivota na traqueia
que tenho cabelos no coração
e rins de diamante

que saio pelas ruas, charanga de calúnias
que vadio as estrelas e o amor
que desconfio dos poderes sobrenaturais 
da linguagem
e ainda assim digo, grito desesperadamente as coisas
como arrastado por um desacampamento 
de ciganos, como se uma guerra 
começasse por minha causa
como se um mágico tirasse moedas 
de minha boca e as esferográficas guardassem
a velha herança das navalhas ruins
como se houvesse fios de alta-tensão
entre nossos corpos

eu que vivo o precário vaudeville dos instantes
que aprendi a dar cambalhotas
com os bobos
de shakespeare e os retardados
cujo bom-senso é o estopim da combustão
cujo reino é uma cratera
cuja coroa é o nariz do palhaço
e o assassinato, um ressuscitar-se

eu que sou, às 3:00 da manhã, a única janela acesa
que me intoxico de deus
que perdi a identidade, o ônibus, a graça
e os sisos e
o bilhete premiado e o fio de ariadne
a lembrança do inferno e do paraíso

eu que volto para casa sangrando
como quem assobiasse

que faço parelhas aos afogados
que sempre quis ser o poeta de troia
o poeta da boca de fumo, o poeta de porta de cadeia
o poeta dos obituários, o poeta oficial das alvoradas
o poeta oficial da vila hauer
e que, ao fim, não sou poeta oficial
nem de mim mesmo

eu que toco trombone 
dentro de uma piscina vazia
eu que tenho queimaduras de terceiro grau
por dentro
que cato os rebotalhos da cultura materialista
e reciclo
do jeito que dá e não dá
e junco de esperança todos
os impedimentos

eu, exilado do país infinito
que manipulo venenos, que enlouqueço sozinho
que subo a montanha
como um profeta que engolisse a língua
eu que escovo os dentes
com chuva e maçarico

eu, meu corpo
que tenho a espessura da vida
e o tamanho exato
de meu cadáver

eu 
coluna de fumaça
espelho quando mente
ferragem retorcida
rosto em branco (como um edifício ou um anjo
transitório)
minha cara inconfundível

uma palavra
(r
el
âm
pa
g
     o) que não acaba nunca
                 
           
           
(pássaro ruim, 2009)

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

aulas de solidão

         
A visão de uma carne infinita é a visão dos loucos, mas se eu cortar a carne em pedaços e distribuí-los pelos dias e pelas fomes  então ela não será mais a perdição e a loucura: será de novo a vida humanizada.

                                                  CLARICE LISPECTOR (A paixão segundo G.H.)
                                                             

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

julio cortázar


Instruções para dar corda no relógio
              
     
Lá no fundo está a morte, mas não tenha medo. Agarre o relógio com uma das mãos, pegue com dois dedos o pino da corda, eleve-o suavemente. Agora se abre outro prazo, as árvores desprendem suas folhas, os barcos correm regatas, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.
Que mais você quer, que mais você quer? Prenda-o depressa no seu pulso, deixe-o bater com liberdade, imite-o ofegante. O medo enferruja as âncoras, cada coisa que se pôde alcançar e foi esquecida vai corroendo as veias do relógio, gangrenando o sangue frio de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a morte se não corremos e chegamos antes e compreendemos que já não importa.

***

Relógios
      
                                         
Um fama tinha um relógio de parede e todas as semanas lhe dava corda COM GRANDE CUIDADO. Um cronópio passou e ao vê-lo começou a rir, foi a sua casa e inventou o relógio-alcachofa ou alcachofra, que de uma e outra maneira se pode e se deve dizer.
O relógio alcachofra deste cronópio é uma alcachofra da grande espécie, preso pelo talo em um buraco da parede. As inumeráveis folhas da alcachofra marcam a hora presente e ademais todas as horas, de modo que o cronópio não faz mais que arrancar uma folha e já sabe uma hora. Como vai arrancando-as da esquerda para a direita, sempre a folha da hora exata, a cada dia o cronópio começa a arrancar uma nova sequência de folhas. Ao chegar ao coração, já não se pode medir o tempo, e na infinita rosa violeta do centro, o cronópio encontra uma grande satisfação, então ele a come com azeite, vinagre e sal, e põe outro relógio no buraco.        
                                                                                    
tradução: r.m. 
         
[CORTÁZAR, Julio. Historias de cronopios y de famas. Buenos Aires: Ed. punto de lectura, 2003. p. 29 e 134.]    

terça-feira, 14 de agosto de 2012

é hoje!

                                


QUANTO TEMPO DURA UM POEMA?

  
Quanto tempo dura um poema?

O tempo do olho
sobre a página?
O tempo do corpo
vida afora?
O tempo da pátina
na memória?
  
Quanto tempo dura um poema?
  
Este poema.
  
Este,
que você lê agora.

     
MARCELO SANDMANN 

[SANDMANN, Marcelo. Lírico Renitente. Rio de Janeiro: 7Letras, 2000.]

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Fragmentos

                                                 
                                           
black spot I (mancha preta I), wassily kandinsky



I
            
Só o ego de um psicopata é maior que o ego de um artista. 
No entanto, outro dia mesmo, vendo na TV um programa sobre a origem do universo, o poeta tomou mais uma de muitas porradas pedagógicas. Dizia Alex Filippenko, astrofísico da Universidade de Berkeley: Como é pequeno o pedaço da História que de fato ocupamos! Para simplificar isso, imagine comprimir 14 bilhões de anos de História do Universo em 14 anos. Nessa escala, a Terra teria existido somente nos últimos cinco anos. De maneira que, em 1/3 da História do Universo, as grandes criaturas teriam se desenvolvido há apenas sete meses. Nessa escala, os dinossauros teriam se extinguido há apenas três semanas. Toda a História registrada dos seres humanos teria começado há apenas três minutos. As sociedades industriais modernas, nos últimos seis segundos. 
Se é uma doída, mas saudabilíssima, paulada na mesquinha e autoatribuída importância da espécie, o que dizer de nosso infinitesimalmente mais mesquinho narcisismo individual? 
Como não lembrar os versinhos de Stephen Crane? A man said to the universe:/ “Sir I exist!”/ “However”, replied the universe,/ “The fact has not created in me/ A sense of obligation.”
                  
* (Algo como: Um homem falou para o universo:/ “Hei, eu existo!”/ “No entanto”, redarguiu o universo,/ “Este fato não provoca em mim/ o menor senso de responsabilidade.”) 
         
                                           
II
                           
E partindo desse pressuposto, partindo de que somos já de saída insignificantes, no entanto chegamos a extraordinários. 
Somos capazes de pensar a morte, não somos? De povoar a morte, de reinventar a vida. De viver eternidades. A alma, cheia de máculas e pesadelos, ao mesmo tempo rasgou-se no fundilho. Somos trágicos e banais, metafísicos e cotidianos, graves e ridículos. Diante do fim, talvez rebente-nos dos pulmões um soluço e uma apóstrofe: Vermes, deixem-me ser eterno! 
Como diz meu irmão Dom Pozzo: Tá branco, tá brancoA gente até que é saudável, mas sofre de humanidade. Pouco importa que desejemos medir e mentir, medir e manipulá-lo. 
Desde os sumérios, dividimos o Tempo em blocos de 12. Desde antes, o homem se divide em projeções e memórias afetivas. O homem encilha o tempo, doma o tempo em quadrantes, ampulhetas e poliuretanos. Cavalga o tempo.  
E cai do cavalo.

         
III
                             
Veja como são as coisas: escorrendo pelo Visconde de Nácar, pensei sem mais algo banal e inútil, incapaz sequer de desdobrar-se num poema ruinzinho.
Como aquilo me causou alegria e perplexidade gratuitas! (Sim, até a perplexidade pode ser gratuita.) Veja bem, não me fará diferença alguma. Muito menos a você, escassíssimo leitor. Algo que não nos levará a nada; levaria no máximo, de vento em vento, guardanapos, folhas secas, papéis de pão, uma sacola plástica...
(Desculpe, lá vou eu de novo, um vira-lata divagando. Voltemos à sarna que solicita as unhas...).
Escorrendo apressado pela Visconde de Nácar, pensei algo banal e inútil, e pensá-lo era sentir-me o dono de um cachorro sem dono, era ser de novo um menino, a imaginação esfolada. Às vezes pouco é melhor do que nada, às vezes pouco é melhor do que tudo. Pensei simplesmente, e a ideia, de dentro pra fora, ia refrescando meu rosto:
                                                                                                         
                                       o vento é uma máquina vazia 
                                                                                                                   
Pode crer! Mais gratuito do que jamais fui grave, pensar “o vento é uma máquina vazia” me fez, por alguns instantes, eterno entre. (Li esse baita achado num livro de poemas do Maurício Arruda Mendonça.) Entreterno. 
Depois, é claro, voltei a ser premeditado. Segui àquele lugar aonde eu ia: imprescindível, inadiável, respeitabilíssimo. Aquele lugar que eu já nem lembro.
                       
                             
IV
       
A eternidade, no presente, é uma sensação indivisível, flor que tem num só instante raízes neste, em todos, em nenhum momento; mero abre-e-fecha de parênteses (entre as tais coisas inadiáveis da vida), mas parênteses inesquecíveis... 
Ou será que já estou mentindo?  Talvez a eternidade no presente sequer exista. Quem sabe seja coisa de se conjugar somente no passado; mais precisamente, no pretérito imperfeito do subjetivo: a eternidade era um colibri bebendo o açúcar dos relógios.  
E mesmo assim, porque somos apaixonados e temperamentais, a coisa toda, o vívido vivido, parece suspenso fora do tempo pelos fios de meus e teus cabelos. 
Talvez por isso aquele menino com o rosto cheio de ranho e terra me dissesse: 
–  É assim mesmo, tio, matando o tempo eu consigo ser eterno! 
E há também o que dizia ao menino a mãe dentro da tarde chuvosa. Dizia-me, com um sabor poético tacanho e inesperado, que também fica eterno o que se esquece. Ela me disse: O que a gente esquece, meu filho, aumenta a memória de Deus!  

                 
V
                   
Tateando cego as paredes do meu espanto (e quem garante não ser a alça da gaveta o trinco de uma porta que eu abro?), cheguei por fim a uma sentença: a eternidade, também ela feita de tempo – e apenas tempo –, não é o bom e velho sempre; a eternidade é um jamais
Ah!, meu irmão, isso não dá o mesmo barato de pensar, enquanto sinto o vento em meu rosto, “o vento é uma máquina vazia”. A razão não funciona como o pensamento aleatório e vacuifeito. A razão me deixa mastigando esta bola de farinha difícil engolir. 
O vento é uma máquina vazia. A gente mesmo uma máquina vazia, uma cigarra vazia, oca, quando enfim se cantar inteira. (Lembra do Bashô?)
Mas e o tempo,
                                    o que é o que é?
           
                                                                                                                                                       
VI

Quando eu era moleque, ganhei um relógio despertador de uma tia distante. Fiquei curioso. Sempre quis entender o Tempo. E lá fui eu: abri o relógio e removi cada engrenagem, cada pecinha. Tirando-as uma a uma – e tirando também o invólucro do mecanismo – não sobrou nada. Absolutamente nada. Aquilo me deixou abismado. Hoje eu mais ou menos entendo que justamente esse nada que sobra é o Tempo. O mesmo nada que, sabe-se lá de onde, vem forjando e enferrujando a gente.
                                         
       
VII
                                                                                   
Chega de conversa fiada. Tá na hora de quebrar a esquina. Passei seis meses de bobeira, de teimoso, referindo o tempo. Minha incompreensão permanece intacta. Tudo o que faço – tudo o que os líricos fazemos – é brincar com a incompreensão e o espanto enquanto há tempo. Enquanto houver tempo.
Um pouco de personificação nunca fez mal à poesia. Por que então não dar ao Tempo um rosto e um par de pernas? De modo que, para terminar: pensemos no Tempo como num velho vigoroso e mal-educado descendo a rua XV. Imaginem, a título de exemplo apenas, Dalton Trevisan descendo a rua XV.
O que se dá quando nos topamos, quando o reconhecemos? Nada. O Tempo atravessa-nos como se fôssemos invisíveis. Passa por nós na rua, na casa, no bar, no trabalho, no amor, no sono e na insônia. Não responde a apelos e cumprimentos, não se detém sequer um instante, sequer um leve giro de cabeça a reconhecer-nos ou desprezar-nos.  
Entende o Tempo que estamos já mortos? Somos os tais cadáveres adiados, coçando-nos, amando, procriando? Será que foge de nós (Tempus fugit), seus fantasmas, com medo ou remorso?
Talvez, pelo contrário, seja que tenhamos todos o mesmo rosto, indistinguíveis, como para nós têm o mesmo rosto todas as moscas deste mundo, como para nós é a mesma suas biografias de três semanas. Pouco se lhe dá ver-nos, jovens ou velhos, gênios ou idiotas, nus ou vestidos, bonitos ou feios, com uma faca ou um ramo de flores na mão direita.
Ou é porque você marcha, ó Tempo, atarefado, pontualíssimo? É, você mesmo, Tempo! Marcha para encontrar-nos – dali a anos, amanhã logo cedo? Marcha para encontrar-nos definitivamente, uma faca ou um ramo de flores em sua mão direita, numa outra esquina?

terça-feira, 7 de agosto de 2012

p. leminski


SINTONIA PARA PRESSA E PRESSÁGIO

                     
        Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
        na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
       Sôo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
       do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
      que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.
   
       Eis a voz, eis o deus, eis a fala,
eis que a luz se acendeu na casa
      e não cabe mais na sala.

                             
                        PAULO LEMINSKI

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

               
madalena penitente, caravaggio (1596)      


















Moça, dobre as mangas do tempo

                                              WANDO

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

jorge luis borges (II)

                                                                     

           
RELÓGIO DE AREIA


Tudo bem que se meça com a dura
Sombra que uma coluna em pleno estio
Projeta ou com as águas que há no rio
Em que Heráclito viu nossa loucura.

O tempo, já que ao tempo e à própria sorte
Se parecem os dois: a imponderável
Sombra que é diurna e o curso irrevogável
Das águas que se lançam em seu norte.

Tudo bem, mas o tempo nos desertos
Outra substância achou, pesada e vento,
Imaginada pra medir o tempo
Dos que já mortos não estão por perto.

Surge assim o alegórico instrumento
Dessas gravuras que há nos dicionários,
A peça que esses grises antiquários
Relegarão ao mundo então cinzento.

Do desemparelhado bispo, e a espada
Inerme, do confuso telescópio,
Do sândalo se o morde o incenso do ópio,
E da poeira, do azar, do próprio nada.

Quem não se demorou diante do hostil
E severo instrumento que acompanha
Na destra mão do deus uma gadanha,
E cujas linhas Dürer repetiu?

Por um ápice entreaberto o cone inverso
Deixa vazar a cautelosa areia,
O ouro que aos poucos vai deixando cheia
A âmbula de cristal, seu universo.

É agradável ficar olhando a arcana
Areia descendente que escorrega
E apinha-se já próxima da queda
Com sua pressa inteiramente humana.
          
É a mesma a areia em ciclos, impassível,
A história das areias é infinita;
Assim, haja alegrias ou desditas,
A eternidade abisma-se invencível.

Não se detém jamais sua descida;
Sou eu, não o cristal, que sangra. O rito
De decantar areias é infinito
E com a areia vai-se a nossa vida.

Nos minutos da areia eu acredito
Sentir o tempo cósmico, ou a história
Que enjaula em seus espelhos a memória
Ou que dissolve o Letes inaudito.

O pilar da fumaça e o do carvão,
Cartago e Roma na difícil guerra,
Simão, o Mago, os sete pés de terra
Que oferta ao norueguês o rei saxão,

A tudo arrasta e perde este incansável
Sutil e fino fio da areia muita.  
Não hei de me salvar, coisa gratuita,
De tempo, que é matéria degradável.


tradução: rodrigo madeira