segunda-feira, 20 de agosto de 2012

você


eu que por pouco não sou transparente
apesar de minha solidez aflitiva
filho de todas as razias
eu que por mais um pouco seria invisível
que saio de casa para entrar no mundo
que enxergo, como henrika,
peixes nas poças de chuva

eu que sou um franciscano brutal
que alimento os pombos com parafusos
um relógio onde o tempo se estraga
que nunca superei as drogas
que nunca venci aquela paixão
que não posso ver uma mesa de cartas

eu que como papel entre
haustos de tinta
que tenho a chave para as praças da cidade

eu que bebo com os cavalos as águas estigiais
que oxido a lua de urina
que construí escadas que vão dar no teto – como
madame winchester 
que inventei janelas inacessíveis
construí casarões sem alicerces
na mudança meus fantasmas
e uma mitologia de cães cegos

eu que sou esta florescência de miasmas
cuja alegria é uma careta
cujo sangue é de auroras
cujos ossos são de tijolos e a alma
de querosene

meu sonho será
apodrecer exalando música

eu que guardo uma gaivota na traqueia
que tenho cabelos no coração
e rins de diamante

que saio pelas ruas, charanga de calúnias
que vadio as estrelas e o amor
que desconfio dos poderes sobrenaturais 
da linguagem
e ainda assim digo, grito desesperadamente as coisas
como arrastado por um desacampamento 
de ciganos, como se uma guerra 
começasse por minha causa
como se um mágico tirasse moedas 
de minha boca e as esferográficas guardassem
a velha herança das navalhas ruins
como se houvesse fios de alta-tensão
entre nossos corpos

eu que vivo o precário vaudeville dos instantes
que aprendi a dar cambalhotas
com os bobos
de shakespeare e os retardados
cujo bom-senso é o estopim da combustão
cujo reino é uma cratera
cuja coroa é o nariz do palhaço
e o assassinato, um ressuscitar-se

eu que sou, às 3:00 da manhã, a única janela acesa
que me intoxico de deus
que perdi a identidade, o ônibus, a graça
e os sisos e
o bilhete premiado e o fio de ariadne
a lembrança do inferno e do paraíso

eu que volto para casa sangrando
como quem assobiasse

que faço parelhas aos afogados
que sempre quis ser o poeta de troia
o poeta da boca de fumo, o poeta de porta de cadeia
o poeta dos obituários, o poeta oficial das alvoradas
o poeta oficial da vila hauer
e que, ao fim, não sou poeta oficial
nem de mim mesmo

eu que toco trombone 
dentro de uma piscina vazia
eu que tenho queimaduras de terceiro grau
por dentro
que cato os rebotalhos da cultura materialista
e reciclo
do jeito que dá e não dá
e junco de esperança todos
os impedimentos

eu, exilado do país infinito
que manipulo venenos, que enlouqueço sozinho
que subo a montanha
como um profeta que engolisse a língua
eu que escovo os dentes
com chuva e maçarico

eu, meu corpo
que tenho a espessura da vida
e o tamanho exato
de meu cadáver

eu 
coluna de fumaça
espelho quando mente
ferragem retorcida
rosto em branco (como um edifício ou um anjo
transitório)
minha cara inconfundível

uma palavra
(r
el
âm
pa
g
     o) que não acaba nunca
                 
           
           
(pássaro ruim, 2009)

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