quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

breviário das moscas

               
monomaníacas,
lindas como os rouxinóis:

as moscas.

infatigáveis,
insuportáveis,

abertas às febres
todas, todos os modos (e cheiros, sabores)
de vida e morte.

benditas sejam
as moscas!

mais vivem do que
pousam,
mais vivem do que
voam.

a teimosia feroz, a algaravia,
as filigranas de saliva,
únicos filamentos
do brio.

voltar sempre, como
uma alma penada,
um cão com fome,

um homem,

atordoado inseto
em redor do sol.

um homem
que, afogando-se 
no ar, na baba espessa de enigmas, na
ígnea ignorância de amar,

quer porque quer

viver
por viver. 

                                     
(pássaro ruim, 2009)
* poema revisitado

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

uma oração (quase) franciscana

                 
             
IRMÃ MOSCA, depositai em minha
lírica, em minha boca, vossos
ovos (vossos ossos de
saliva)

IRMÃ MOSCA, que eles eclodam
mal e mal persistam

às alegrias
e alergias

à vontade
e à voragem

que multipliquem-me na
língua, entre as margens

monocordi-
                comovidas

                as canções de vossas e de minhas
brev
vvvvvvvvvvvvvvvvvvv
idades
                 

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

às moscas

                                               
                   
a avenida estava às moscas
numa cidade vazia.
nenhum carro circulava,
alma alguma vinha ou ia.

mesmo o sol estava às moscas,
quer raiasse ou se pusesse,
como uma poça de urina
que às moscas tanto apetece.

o mendigo estava às moscas
e da mosca se diria
que nervosa, pouso-e-voo,
os farrapos lhe cerzia.

mesmo o livro estava às moscas,
esquecido em prateleira,
como as frutas já passadas,
como um rio parado cheira.

e também a História às moscas,
sem desastre, troias, glória,
que, se um deus recordaria,
moscas não retêm memória.

poemas enfim às moscas,
prelibando o próprio Nada,
lambendo a palavra flor
na folha despetalada...

e as moscas cobriam não
o que morto era estragado;
elas não velavam mortes,
e sim um sono agitado:

poemas, História, livro,
mendigo, sol, avenida
despertaram já intranquilos,
moscas de fome renhida.

pois que um viscoso melaço
é como escorre-se o dia:
um nojo, um refestelar-se,
desperdícios, alegria.

porque assim se escorre a vida,
doce melaço de travos:
desprezivo que delícia,
raro e reles, fezes, favos.
                                   

sábado, 19 de janeiro de 2013

rancho das varejeiras

     
amor tão grande, nunca visto,
beijar sempre os lábios do lixo.
a enxaqueca canora, o vício
em restos sem qualquer espírito.
o despejado no esquecido:
xepas, trapos, cacos de vidro;
o descartado e sem amigo:
laranjas podres, corpos findos;
o desdentado e absurdo lírio
mais legumes envilecidos.

tipo assim, floreira de esquina,
desastre calmo, entardecido,
lhes oferta o monturo ainda
(que importa o minério da sílaba?)
herói, amada, estrela extinta:
sem nojo, o despojo de um livro.

suguem, moscas! ou melhor, libem
o caldo pouco da poesia.      
                                 
         
(o latim das moscas)