quinta-feira, 27 de junho de 2013

louva-a-deus

     

                               
derredor
tudo é uma única carne,
massa de sangue e manhãs,
um único crime e milagre;
nas contorções do ar,
a mesma espessura do minério.

piso folhas secas, manchadas
de outono e icterícia.
avanço, anjo carnívoro,
enfiando os dedos azuis nos
bolsos furados do existir, nas
alegrias de alto teor alcoólico, nos
instantes como sais de prata,
frutos, fósforos.
caibo inteiro em minha solidão.

não estou só.
um perfume gordurento do corpo
(nu sob as roupas) rói mucosas e 
epidermes e
me impele ao reino onde sou
bicho, outro, construção remedida
pelo arqui-
teto de estrelas. meu fedor
é uma chama! me depõe nova-
mente sobre as árvores.

eis que vejo: o louva-a-deus. 
olha-me como 
              se eu fora de fora, 
alienígena, um cão sobre a jangada.
olhamo-nos 
              circunspectos.

será que pensa, será que sofre
quando curva a cabeça, beato e fera?
remexe o espéculo de antenas
(não dirá palavra),
experimenta as asas,
mantídeo de entre folhagens.

penetro hipoteticamente
sua armadura
em verde-escarro,
ou por baixo
             seu espigão fracionado
e ausculto
a víscera espumando morte
e espanto.

existe nele um rancor que é meu,
uma alegria radiante.

louvamos ambos,
de espinhos armados,
o sol que brilha indiferente
sobre deus e o mundo.

                                           
(sol sem pálpebras, 2007)

terça-feira, 25 de junho de 2013

adriano scandolara

              
* A.S. apresenta-se hj (dia 25, terça-feira) no wonka bar. 

             

A paixão segundo A.S.


Roguei a teus olhos   perdão
ó, barata,
por uma epifania,
o sal primordial dos doces olhos
e a opressão da tarde
indolente
como a queda de dez andares
vista em vidro
fosco,
o chinelo te esmaga.


[Scandolara, Adriano. Lira de lixo. São Paulo: Editora Patuá, 2013.]

segunda-feira, 24 de junho de 2013

ferreira gullar

             
A ALEGRIA


O sofrimento não tem
nenhum valor,
não acende um halo
em volta de tua cabeça, não
ilumina trecho algum
de tua carne escura
(nem mesmo o que iluminaria
a lembrança ou a ilusão
de uma alegria).

Sofres tu, sofre
um cão ferido, um inseto
que o inseticida envenena.
Será maior a tua dor
que a daquele gato que viste
a espinha quebrada a pau
arrastando-se a berrar pela sarjeta
sem ao menos poder morrer?

A justiça é moral, a injustiça
não. A dor
te iguala a ratos e baratas
que também de dentro dos esgotos
espiam o sol
e no seu corpo nojento
de entrefezes
                     querem estar contentes.


[Gullar, Ferreira. Toda Poesia. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2008.]

terça-feira, 18 de junho de 2013

"orgasmo cívico"

   
foto de gustavo gantois (portal terra)
       


FILHOS DA ÉPOCA


Somos filhos da época
e a época é política.

Todas as tuas, nossas, vossas coisas
diurnas e noturnas,
são coisas políticas.

Querendo ou não querendo,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um aspecto político.

O que você diz tem ressonância,
o que silencia tem um eco
de um jeito ou de outro político.

Até caminhando e cantando a canção
você dá passos políticos
sobre um solo político.

Versos apolíticos também são políticos,
e no alto a lua ilumina
com um brilho já pouco lunar.
Ser ou não ser, eis a questão.
Qual questão, me dirão.
Uma questão política.         

(...)

            wisława szymborska 
            (trad. regina przybycien)
             

sábado, 15 de junho de 2013

                 
i. m. Cyrene de Mello Pozzo (1929-2013).

para meu amigo de infância, meu irmão
ricardo pozzo.

neste momento.
                

*
                                 
5

o último fósforo contorceu-se,
exausto.

a aurora respira
com dificuldade

como se arrastasse
um galeão no seco.

esta agulha atravessa
todos os dedais.

(...)

mas, exatamente onde falta
a permanência, (onde falta)
a eternidade, ainda resta

a ternura.
                     

quinta-feira, 13 de junho de 2013

leonard cohen

                                 
SUMMER HAIKU


Silence
And a deeper silence
When the crickets hesitate


                      LEONARD COHEN
   

*


HAICAI DE VERÃO


Silêncio
E um silêncio maior
Quando os grilos hesitam
         

quarta-feira, 12 de junho de 2013

margaret atwood/ trad. adriana lisboa

                             

arte de kristine paulus


GRILOS


Setembro. Ásper silvestre. Uvas rosadas,
pequeninas e amargas,
o gosto do índigo do inverno
já floresce dentro delas.

A casa é invadida por grilos,
entraram em busca do calor.
Esgueiram-se para dentro do forno
e para trás da geladeira,
armam investidas pelo chão
cantando uns para os outros:
Aqui, aqui, aqui, aqui. 
Pisamos neles por engano,
apanhamo-los, às dúzias,
dúzias de consciências negras contorcendo-se,
e jogamos porta afora.

Eles não têm o que comer,
não conosco. Não há mais colheitas ou celeiros,
só mesas e cadeiras.
Ficamos afluentes demais.
Dentro de casa, morreriam de fome.
Espere, espere, espere, espere, dizem. Temem
morrer congelados. Sob a vassoura
sua armadura negra estala.

A formiga e o gafanhoto têm
seu lugar em nossos bestiários:
a primeira acumula riquezas, o segundo
gasta. Ficamos no meio do caminho, aprovamos
a formiga (cabeça), adoramos
o (coração) gafanhoto,
emulamos a ambos: por que escolher?
Armazenamos e vadiamos.

Quanto aos grilos, foram
censurados. Não temos
grilos em nossas lareiras. Não temos lareiras.

Ainda assim, eles nos acordam
à fria meia-noite,
pequenas vozes tímidas que não podemos localizar,
pequenos relógios tiquetaqueando,
relógios baratos; pequenas lembranças de metal:
tarde, tarde, tarde, tarde,
em algum lugar em meio aos lençóis,
nas molas das camas, no ouvido,
as hordas dos mortos de fome
voltam como as batidas de nossos corações.


[Atwood, Margaret. A porta - trad. Adriana Lisboa. Rio de janeiro: Rocco, 2013]

segunda-feira, 10 de junho de 2013

drummond

                                                                                                                                                   
CAÇA NOTURNA


No escuro
o zumbido gigante do besouro
corrói os cristais do sono.
Que avião é esse, levando para Teerã
uma amizade um amor um bloco de oitenta indiferenças
que não acaba de passar e circunvoa
sobre a casa perdida na floresta
imobiliária?

Vai o ouvido apurando
na trama do rumor suas nervuras:
inseto múltiplo reunido
para compor o zanzineio surdo
circular opressivo
zunzin de mil zonzons zoando em meio
à pasta de calor
da noite em branco.

São as eletrobombas em serviço.
A música da seca.
Pickup que não para de girar.
Gato que não cansa de roncar.
Ah, como os conheço!
Fazem parte da vida esses possantes
motores de tocaia
na caça lunar de água, lebre esquiva
sugada
por um canal de desespero e insônia.

Que gemido grilado, apenas zi,
tímido se incorpora ao zon compacto?
Que vozinha medrosa mais suspira
do que zoa, no côncavo noturno?
O motorzinho do poeta,
pobre galgo da casa,
1/4 de HP, caçando em vão.


[Andrade, Carlos Drummond de. Lição de Coisas (1962). São Paulo: Companhia da Letras, 2012.]

sábado, 8 de junho de 2013

                                                                     
Se tivesse escrito
dom quixote (III / o esguio propósito)
de drummond

obra menor       (um poema com patas
                           que farelam nos dedos)

eu seria bem mais
que o entomologista
que não fui
eu seria 

um cuteleiro que apronta
os talhares dos grilos 

o cardiólogo da aurora
passarinheiro

                      de gafanhotos




















***


  
III / O esguio propósito

Caniço de pesca
fisgando o ar,
gafanhoto montado
em corcel magriz,
espectro de grilo
cingindo loriga,
fio de linha
à brisa torcido,
              relâmpago
              ingênuo
              furor
de solitárias horas indormidas
quando o projeto a noite obscura.
Esporeia
o cavalo,
esporeia
o sem-fim.

                       DRUMMOND


* os 21 poemas de drummond, escritos no início dos anos 70, baseavam-se nos 21 desenhos a lápis sobre cartão que cândido portinari produzira, em 1956, para ilustrar uma edição do dom quixote.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

epígrafe


       
one fly makes a summer

                      MARK TWAIN