terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

A primeira crônica a gente nunca deleta

                                                        foto: lu cañete

       Já comecei mal. O título é péssimo. Um trocadilho desenxabido a ponto de vexame. Mas e daí? O que não mata engorda. Abalofar um texto é mais fácil que rechear um peru e muito mais fácil que emagrecer no Passeio Público. Posso afastar com uma das mãos o enxame de pequenos e pontiagudos pudores e fechar porta e janela. O leitor que percebeu a tempo a roubada, já deu o fora; deve estar aliviado. Me merece só aquele – você – que não é de largar o osso: mesmo com as pulgas que cismam, atrás da orelha, irá até o fim.
      Minha primeira crônica... Primeiras crônicas são escritas desde antes da memória do mundo. Nada de novo sob o sol, ou à frente do difusor de luz e suas extraordinárias lâmpadas de cátodo frio. No entanto, primeiras crônicas são escritas sem que isso precise ser anunciado nas primeiras crônicas.
      Eis meu grande trunfo: escrever já de cara uma crônica sobre a total falta de assunto. Temas vacuifeitos fazem charme irresistível nos dígitos de todo cronista que se preze e menospreze. Mas o sujeito tem que ter cancha, honra ao mérito pela câmara dos vereadores, pequena sesmaria num jornal do interior, no mínimo. Ou, por meu turno, voluntarismo e vigarice.
       É pelo menos arbitrário dedicar a primeira crônica à incapacidade de escrever uma crônica. Como um aborto que dê à luz? Como matar um morto? Como preencher um furo com um buraco? Vai daí, leitor, a você o vislumbre de minha boa saúde crônica.     
      Preciso agora cozinhar o galo, ganhar tempo. Porque o tempo – a lenta ferrugem do tempo – é a maior inquietação da falta de assunto. Pensei em falar um pouco nas crônicas bíblicas, um dos trinta e nove livros do Antigo Testamento cristão. Fazer a lição de casa, pinçar algo misterioso, capaz de dar cem metros de profundidade a esta poça. Algo como: “Porque, tendo cinquenta e seis anos, (Tobias) perdeu a vista dos seus olhos e recobrou-a aos sessenta”. Não cabe. Seria uma traição ao vácuo. Seria uma guinada pseudoteológica que não só daria um sentido, como um sentido sobrenatural. A ausência temática não tem nada de sobrenatural. Tem todas as doenças da carne e do tempo, a fraqueza do doce e franqueza do podre que convoquem pequenas moscas e formigas infinitas para a última ceia.
      Talvez uma referência às Crônicas de Bob Dylan, a uma ou outra peça de Beckett, quem sabe àquela vertiginosa falta de assunto em A Day in the Life: vinte e quatro compassos vazios preenchidos por uma orquestra doente dos nervos; João que vê um filme, lê o jornal, oh boy... Paulo que entra no ônibus e acende um cigarro.
      Mas pra que tanto? A mediocridade é uma zona de conforto e os dois parágrafos ganhos distraíram-nos durante uma horinha morta no fastio do texto. Uma crônica que, sem ter almoçado nem saído pra trabalhar, passará rigorosamente o dia todo fazendo a sesta.       
      Com sua fidelidade vira-lata, o leitor, há um minuto, minuto e tanto, me acompanha. Só pode haver nele algo de franciscano, de lírico e andorinha capaz de beber água no fossado; ou melhor, de vira-lata mesmo, aquela fundíssima camaradagem incondicional, de quem nos quer e ama e segue entre o primeiro farol da Visconde de Nácar e a esquina com a Emiliano Perneta – e depois vai embora. Este leitor vira-lata que me olha fundo, mais fundo do que um irmão, como no belo poema de Alberto Martins. É graças a ele – ninguém: falta de assunto em pessoa? – que chego aonde chego, medindo com o olhar o terreno que me falta do nada a parte alguma.   
      Abalofei meu peru pra comê-lo aqui mesmo. Eu sei que a esta altura devo estar sozinho. As possibilidades de uma tarde gastas num shorts da seleção e chinelos de dedo, pretensiosamente. Mas tá valendo. Já é melhor que minha primeira missa no Ministério do Amor. De longe melhor que meu primeiro poema, coitado, lá se vão 17 anos, passarinho prematuro com cinco ossinhos quebrados pelo corpo. Aquele poema péssimo em que jogo até hoje a minha vida. Aquele poema que de alguma maneira me trouxe exatamente até aqui.            

* Rodrigo Madeira é crônico. Colabora quinzenalmente, às terças-feiras, em seu próprio blog. 

Um comentário:

  1. quer dizer que vc esteve me enrolando este tempo todo, a começar pelo título?

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