O filósofo grego Protágoras de Abdera foi acusado, por conta de seu livro “Sobre os Deuses”, de impiedade, ateísmo e blasfêmia. Morreu na fuga de Atenas para a Sicília, num naufrágio, não se sabe bem em que ano do século V antes de Cristo. Antes e depois do fatídico, causou profundo impacto na nascente filosofia antropológica e, muitíssimo mais tarde, na filosofia humanística europeia. Protágoras, cujos escritos não nos chegaram, mas a quem foi dedicada farta doxografia, ajudou a encerrar de vez o período cosmológico e deslocar o eixo das perquirições filosóficas do arké (causa primeira, princípio fundamental – fogo, água, ar, ser...) para o homem e a vida em sociedade. Por oposição, também foi importante a todos os grandes filósofos que mais tarde lhe fizeram resistência. Afinal, foi o maior representante do movimento sofista, corrente filosófica que, entre outras coisas, propunha o relativismo da verdade, a ideia segundo a qual o conhecimento nunca está no objeto e sim no sujeito que o percebe, no homem que é “a medida de todas as coisas”. Além disso, sofistas eram utilitaristas e venais. Caixeiros-viajantes do conhecimento, faziam preleções focadas na arte da retórica e da persuasão. Atendiam aos interesses políticos imediatos de seus alunos, filhos de homens ricos que queriam ter participação decisiva na pólis democrática.
Hoje, sofista é sinônimo de impostura, de canalhice interesseira. Sócrates era menos unidimensional do que o senso-comum e o Aurélio Buarque de Holanda: oscilava entre a admiração e a indignação. Ao fim, porém, deu seu veredito: o pensamento sofista não é filosofia.
Hoje, sofista é sinônimo de impostura, de canalhice interesseira. Sócrates era menos unidimensional do que o senso-comum e o Aurélio Buarque de Holanda: oscilava entre a admiração e a indignação. Ao fim, porém, deu seu veredito: o pensamento sofista não é filosofia.
Faço coro a um comentário de meu camarada Ivan Justen: a poesia também não é filosofia. Graças a Deus! Mas onde diabos quero chegar com isso? Ao contrário dos sofistas, o poeta em geral não quer persuadir ninguém nem segue a lógica utilitária do conhecimento. A verdade, na poesia, quando não é um substantivo concreto, é adjetivo capaz de ventar; a verdade é apenas um som enfático (ou inenfático) que ilumina um objeto em fuga. O principal objetivo do poeta consiste em, quem sabe, provocar uma pequena explosão interna: derrame patético, infarto fulminante no relógio da matriz, pequeno AVC – acidente cardioversicular.
Mas, se o pensamento sofista não dá conta da realidade material do mundo (concordo com Max Planck: na ciência, por exemplo, a verdade não é inventada, mas descoberta, ela se nos impõe à razão) e se tem preocupações práticas e “precificáveis”, há algo nele de essencial que nos permite um paralelo com a poesia: o império da subjetividade. Lembro sofisticamente a sentença de um dos maiores sofistas do século XX, T.S. Eliot: “toda verdadeira poesia é uma visão de mundo”. Mais: o feroz efeito dessacralizante, quando mais não seja no que diz (des)respeito à religião. Por isso, é menos forçação de barra do que parece declarar Protágoras o Santo Padroeiro dos Poetas.
(Daqui em diante, após preâmbulo tão cansativo e metido à besta, a quem de fato interessa: os poetas.)
Mesmo que levemos em conta que talvez a linguagem tenha surgido das canções de trabalho e dos rituais mágicos dos primeiros homens, no tempo primevo em que música e poesia não existiam autonomamente, ou em que as palavras nascituras, conforme Borges, eram todas metáforas – portanto carregadas de poeticidade que, apenas com o tempo imemorial das erosões cotidianas, desgastaram-se e se tornavam metáforas mortas –, ainda assim, eu não acreditaria que a poesia fosse sagrada ou demiúrgica. Eu, infeliz ou felizmente, não acredito na sacralidade de nada. Acredito, isto sim, na poesia e nos poetas.
Quando digo que o poeta é um afiador de facas ou uma ex-chacrete, consoante o espírito de porco que às vezes me obseda, não me entendam mal; não quero me autoflagelar com um açoite de guizos. O que pretendo é dimensionar este ofício do verso nos dias de hoje. O poeta caiu, dessacralizado, de seu nicho. Nada da respeitosa desconfiança de Sócrates – obcecado pelo conhecimento em prejuízo do prazer estético; aliás, confundindo as duas coisas: sabedoria e beleza – nem do glorioso degredo que Platão reservou aos poetas, cuspidos fora da República mas coroados de louros. Versos já não têm nas sociedades o relevo que um dia tiveram. É especialmente verdadeiro para a poesia aquilo que se diz dos escritores em geral: hoje há mais poetas do que leitores de poesia. Talvez seja preciso vaguear 40 anos pelo deserto para encontrar um único leitor de poesia que não seja poeta.
Dito isso, pergunte para uma ex-chacrete (pergunte para mim) se é ou não fundamental ser uma chacrete, pergunte a mim se existe sobre a terra pessoa ou técnica que substitua e supere a mestria de um afiador de facas...
Notável também como os poetas de hoje, lambendo infinitamente sua ferida narcísica, muitas vezes gastamos mais tempo e energia vital com nosso impulso possessivo do que com o impulso criativo (aquelas noções de Bertrand Russel); ou seja, uma parte vexaminosa de nós sonha ser proprietária exclusiva de algo que, se não nos põe em franca rivalidade, pode arremessar-nos ao pathos dos recorrentes ressentimentos e desconfianças. Percebam como alguns poetas agimos feito abutres, disputando com outros abutres uma carcaça reduzida à pedra do osso. É comovente e nauseabundo!
Os modernos já desmistificaram à exaustão visões e “revisões” do poeta enquanto santo ou cortesão do diabo, invenção de românticos repetida por simbolistas e beats. Já meio caminho foi percorrido quando, num poema de Baudelaire, o poeta vê cair na rua sua auréola e tem de fazer uma escolha: reavê-la e ser atropelado pelos coches, ou seguir em frente e, atravessando desmistificado a rua, perder-se no interior da cidade e da vida. É, portanto, uma banalidade dizê-lo. Repiso não para repreender meus pares, senão para vencer na porrada e no cansaço – ou pela exposição à luz de meu ridículo – um certo heroísmo residual que mancha como alcatrão as paredes de meu quarto de poeta: não, ao contrário do que certa vez Leminski repercutiu, não há qualquer heroísmo.
Talvez pensar que somos especiais e essenciais nos ajude a dormir certas noites, embriagados por um leve sentimento de superioridade. Obviamente, existe sim o tesão, a febre, o entusiasmo; mas não há, ataviando-nos a cabeça, qualquer nimbo de fumaça suja ou tiara de estrelas cariadas. O poeta não é uma espécie de monge secular desprendido, dominicano entre prostitutas, nem algum tipo de maluco iluminado. Alguns de nós são grandes autores mas pessoas medíocres ou apagadas; outros são até excelentes maus-caracteres e covardes.
A mim já não comove a imagem e autoimagem do poeta como um ser triste e solitário pescando à margem do Estige. Falo por experiência própria: fez muito mal a minha saúde física e espiritual algum dia haver acreditado nisso: masturbar-me com os dedos da morte, ser um desses caras que, nas palavras de Adélia Prado, “cheiram a suicídio e glória”.
(Quer ver outro mito? O da hipersensibilidade. Como tantos outros que sentem eventualmente uma dor-de-corno, o poeta pode ser sensível. No entanto, para que alguém seja um bom poeta, a sensibilidade deverá ser sempre menor do que a “pesquisa e desenvolvimento”: comovida inteligência aplicada à linguagem.)
Protágoras queria ser pago – e bem – por sua cátedra itinerante. Nisso, entre poetas e sofistas, outra gritante diferença: se existem poetas argentários, ainda não conheci nenhum que acredite em que um dia poderá comprar o pão e pagar as contas com o dinheiro de seus poemas. A poesia há muitíssimo tempo é para o poeta um hobby de sobrevivência, um amadorismo vital que não tem valor de mercado, e sim de vísceras. (Entretanto o poeta – por supuesto, como no?! – até aceita ser pago em glória...)
Não sei se as sociedades vivem ou não sem seus vates. Se a vida só é possível reinventada, a poesia não é a única forma de fazê-lo. Talvez sejamos mesmo uns afiadores de facas... Não há aí nenhum derrotismo ou autoinfligido desterro. Embora artistas como outros (um ator da Globo, por exemplo), e por isso a necessidade de carinho e aplauso – e o sonho com o público um pouquinho maior –, certo mesmo só o fato de que: quem não vive sem o poeta é o poeta. Porque não nos basta respirar pelo nariz, nem tampouco é a poesia uma segunda peça de roupa ou um apartamento na praia pra variar. Pra quem tem esta cisma, poemas são a segunda árvore respiratória.
Quem sabe você, aí na outra margem da página, numa das infinitas pontas da web, pense que tudo o que eu disse acima é somente um mal reprimido sonho de grandeza. Também. Mas quero crer que há menos megalomania enrustida do que – para sofrer menos e gozar mais – esforçado exercício de autodesmistificação; o que não me impede, fique claro, de comungar daquele sofismático desejo de Drummond: um belo dia um poema meu – ou, vá lá, de poeta que admire – impresso na primeira página de todos os jornais.
* Rodrigo Madeira é afiador de facas. Escreve atualmente no extinto Jornal do Brasil.