quinta-feira, 28 de abril de 2011

história real

                                                                                        
                                      p. fabio weintraub


ontem, quarta-feira
quando chegávamos eu
meus amigos escoteiros
à clínica psiquiátrica
ouvimos os gritos
da moça em surto:
jesus
ó pai, diga a eles o que
você fala comigo, tem
piedade, pai
vocês acreditam em jesus?
solta, mãe, não sou
louca, calma
que hoje tem balada
eu gosto mesmo é de dançar!

após a espera
duas voltas na chave
ao entrarmos pela recepção
o alvoroço branco
dos enfermeiros, familiares
no torvelinho do amor e da vergonha
a moça me viu
(porque visse talvez
discovery channel alta madrugada
a verdadeira face
de jesus)

e quando ela bradou
ó pai, é você? ó pai
me abençoa!
em verdade em verdade
eu lhe disse: não
sinto muito, eu não sou jesus

quarta-feira, 27 de abril de 2011

para tullio e augusto

                         
espantalho


                  mis mares interiores se quedaron sin playas.
                                                     federico garcía lorca


o vento cardíaco
carrega um homem sem voz
que não sabe se encostar
e morrer.
as ventoinhas, a caminho
de serem pedras,
tremem como espinhas de peixe
não tremem
e jazem malferidas
sem sofrer. ai!
só a respiração do trigo
é minha amiga.
o azul cerúleo, que transporta
homens e pássaros, a mim ameaça
  é quando não durmo.
sempre que gepetos à relha
mexem a terra,
conto os minutos
para a cova que me abrem.

essas coisas que vejo sem retinas
existem, não há dúvida.
meus olhos são os ossos da cegueira,
caminhos pelo escuro, moscardos cegos.
vou abandoná-los, de todo em todo
não me estiolaram.
serei mais lúcido que o sol ao meio-dia.

ó noite, por terrível que sejas,
no plástico preto
com que asfixias tudo
há furos de estrelas!

moro no plantio,
próximo ao galpão, à colheitadeira.
moram em mim de passagem
como num hotel barato.
fui feito para o terror
e não pude senão me assustar.
(não dou sombra ou frutos ou coroas,
não sou Dafne
em sua grande tristeza vegetal.)

dois corações se debatem
em meu peito:
uma maçã cheia de larvas,
mordidas, merda de gralha;
outro que é ninho e fuga e
salsugem do mar nunca visto.
penso através do susto, do mofo,
do amor, da inveja.
meu sorriso de barbante
é uma cicatriz perplexa.

o único movimento, às abelhas do sol,
é parar sempre,
estacado sem o céu e o chão.
e no entanto, caso não me traia
e me devolva a solidão,
migro como meus inquilinos.

tenho paina e feno nas carnes.
meu sangue é a água quando chove.

será que estou vivo?
minha voz dobrará horizontes?

deus, dai-me raízes!
um dia terei raízes como que asas 


* do livro "sol sem pálpebras" (imprensa oficial, 2007)

domingo, 24 de abril de 2011

fabio weintraub


                                                                                                                          
PROMETEU                                                                      

o fogo roubado
não é senão
a branquinha humilde:
brasa solitária
entre os carvões da vida

a ira divina
é pouco mais
que a recusa do garçom
em servir
a enésima dose
fiado

o castigo
este sim
tem a grandeza do mito:
a cirrose vulturina
com a família nas garras
da Previdência



* Fabio Weintraub (São Paulo, 1967) é poeta e editor. Publicou, entre outros, os livros "Novo Endereço" e "Baque".  
   Apresenta-se nesta terça-feira no "Vox Urbe" (Wonka Bar).  

quarta-feira, 20 de abril de 2011

serge gainsbourg



* o vídeo é ruim, mas a gravação está bem melhor



A CANÇÃO DE PRÉVERT 

Ah, eu queria tanto que você lembrasse
Esta canção lembra você
Era a sua preferida, eu acho
Que é de Kosma e Prévert
E cada vez as folhas mortas 
Não me permitem esquecer
Dia após dia os amores mortos
Não terminam de morrer

Claro que com outras eu me deito
Mas a canção delas é apenas tédio
O que fazer? Não tem jeito
Pouco a pouco me desinteresso
Pois cada vez As Folhas Mortas
Não me permitem esquecer
Dia após dia os amores mortos
Não terminam de morrer

Um dia saberemos onde começa
E quando termina a indiferença?
Passe o outono, venha o inverno
E que a canção de Prévert, imensa
Esta canção, Les Feuilles Mortes
Se apague e eu possa esquecer
Neste dia, meus amores mortos
Terão enfim deixado de morrer


trahison: rodrigo madeira


* LA CHANSON DE PRÉVERT  Oh je voudrais tant que tu te souviennes/Cette chanson était la tienne/C'était ta préférée, je crois/Qu'elle est de Prévert et Kosma/Et chaque fois les feuilles mortes/Te rappellent à mon souvenir/Jour après jour les amours mortes/N'en finissent pas de mourir//Avec d'autres bien sûr je m'abandonne/Mais leur chanson est monotone/Et peu à peu je m'indiffère/A cela il n'est rien à faire/Car chaque fois les feuilles mortes/Te rappellent à mon souvenir/Jour après jour les amours mortes/N'en finissent pas de mourir//Peut-on jamais savoir par où commence/Et quand finit l'indifférence/Passe l'automne vienne l'hiver/Et que la chanson de Prévert/Cette chanson, Les Feuilles Mortes/S'efface de mon souvenir/Et ce jour là, mes amours mortes/En auront fini de mourir

segunda-feira, 18 de abril de 2011

vicente huidobro


TRAGÉDIA


       Maria Olga é uma mulher encantadora. Especialmente a parte que se chama Olga.
      Casou-se com um rapaz grande e fornido, um pouco desajeitado, cheio de ideias honoríficas, ordenadas como árvores de passeio.
      Mas a parte que ela casou era sua parte chamada Maria. Sua parte Olga permanecia solteira e logo arrumou um amante que vivia em adoração diante de seus olhos.
      Ela não podia compreender por que seu marido se enfurecera e reprovara-lhe a infidelidade. Maria era fiel, perfeitamente fiel. O que tinha ele que ver com Olga? Ela não compreendia que ele não compreendesse. Maria cumpria com seu dever, a parte Olga adorava seu amante.
      Era culpada de ter um nome composto e das consequências que isto pode trazer?
      Assim, quando o marido sacou o revólver, ela abriu os olhos enormes, não assustados e sim cheios de assombro, por não poder entender um gesto tão absurdo.
      Mas aconteceu que o marido se equivocou e matou Maria, a parte dele, em lugar de matar a outra. Olga continuou vivendo nos braços de seu amante, e creio que ainda hoje é feliz, muito feliz, sentindo-se apenas um pouco canhota.     


tradução: rodrigo madeira
revisão: lu cañete


TRAGEDIA 

      María Olga es una mujer encantadora. Especialmente la parte que se llama Olga. 
      Se casó con un mocetón grande y fornido, un poco torpe, lleno de ideas honoríficas, reglamentadas como árboles de paseo.
      Pero la parte que ella casó era su parte que se llamaba María. Su parte Olga permanecía soltera y luego tomó un amante que vivía en adoración ante sus ojos.
      Ella no podía comprender que su marido se enfureciera y le reprochara infidelidad. María era fiel, perfectamente fiel. ¿Qué tenía él que meterse con Olga? Ella no comprendía que él no comprendiera. María cumplía con su deber, la parte Olga adoraba a su amante.
      ¿Era ella culpable de tener un nombre doble y de las consecuencias que esto puede traer consigo?
      Así, cuando el marido cogió el revólver, ella abrió los ojos enormes, no asustados sino llenos de asombro, por no poder entender un gesto tan absurdo.
      Pero sucedió que el marido se equivocó y mató a María, a la parte suya, en vez de matar a la otra. Olga continuó viviendo en brazos de su amante, y creo que aún sigue feliz, muy feliz, sintiendo sólo que es un poco zurda.


domingo, 17 de abril de 2011

da poesia

                                                   
Veja bem, a bala é falsa, mas o sangue é de verdade! 
                              

sexta-feira, 15 de abril de 2011

uma oração

                                                
           y no que esté mal si las cosas nos encuentran otra vez cada día
              y son las mismas.
                                 julio cortázar
                                                                              

dai-me a luz cruel e alegre
de uma manhã.

o sol iletrado
que aniquila a lua
como quem mastiga uma hóstia
com a boca aberta.

não o visionário, o místico,
o mediunato. apenas
o presente,
o presente lido nas entranhas.

dai-me assim
a poesia:
nascida à noite
e que vá aos poucos
amanhecendo...

ou de chofre,
tiro bem no olho
do agouro,
palavra-espantalho
que de terrível
afaste o Corvo,

sem preparação (mas surpresa),
como a catástrofe, a alegria,
por precisão
e fé na incerteza.

e não deixeis
neste dia,
pelo simples rebrilhar
na pupila de um verbo,
que as mesmas coisas
sejam as mesmas.


* do livro "pássaro ruim" (ed. medusa, 2009)
                

sexta-feira, 8 de abril de 2011

notícia de santos

                                                            
                                             
                                                ENTERROS NO CÉU


não há terra para o enterro
nem parasitas para roer
há frio que congela os corpos
e não os desintegra

é preciso fazê-los desaparecer

por não ter onde os pôr
os tibetanos os levam a uma alta pedra
e os repicam em pedaços
que as aves de rapina
possam bicar
e
                  
                   levar
                                    
                                     para
                                                       
                                                      o
                                                                       
                                                                      céu

***

PARTITURA VENEZIANA


no alto à distância
um helicóptero cruza perpendicularmente
as lâminas da partitura
e desaparece na moldura da janela
mais ao longe outras notas negras
nos urubus se movem entre
as linhas da veneziana
e abaixo no chão
pessoas transitam
compondo os últimos acordes do silêncio


                      ADEMIR DEMARCHI

quinta-feira, 7 de abril de 2011

faits divers


este mar me engole
de incompreensão, mas
dele falo (e calo)
pois o mar me mole

pois o mar me praia
pois o mar me enseada
o mar me arrecife
o mar me ressaca.

este mar me engole
de incompreensão, mas
suas turvas raízes

fundeiam-se no
mesmo diapasão
das marés do estômago.

                
                  praia do gonzaga, santos,
                       17/02/2007

quarta-feira, 6 de abril de 2011

são paulo

                                       
Por que, se não há neste
subarremedo de urbe re-
fugado, ou melhor, púbere-
caduco clone agreste

do urbano, algo que preste,
e embora, como em úbere
dum rato, aqui se incube re-
petidamente a peste,

chamo ainda, feito abutre
doentio que, sem cessar,
vomita mas se nutre do

seu vômito, apesar
de ser (ou porque é) pútrido,
São Paulo de meu lar?

                                     
               NELSON ASCHER
                            

terça-feira, 5 de abril de 2011

notícia de são paulo


excertos de:
A meditação sobre o Tietê  


Água do meu Tietê,
Onde me queres levar?
- Rio que entras pela terra
E que me afastas do mar...
(...)
Sarcástico rio que contradizes o curso das águas
E te afastas do mar e te adentras na terra dos homens,
Onde me queres levar?...
Por que me proíbes assim praias e mar, por que
Me impedes a fama das tempestades do Atlântico
E os lindos versos que falam em partir e nunca mais voltar?
Rio que fazes terra, húmus da terra, bicho da terra,
Me induzindo com a tua insistência turrona paulista
Para as tempestades humanas da vida, rio, meu rio!...
(...)
Nas tuas águas eu contemplo o Boi Paciência
Se afogando, que o peito das águas tudo soverteu.
Contágios, tradições, brancuras e notícias,
Mudo, esquivo, dentro da noite, o peito das águas,
fechado, mudo,
Mudo e vivo, no despeito estrídulo que me fustiga e devora.
Destino, predestinações... meu destino. Estas águas
Do meu Tietê são abjetas e barrentas,
Dão febre, dão morte decerto, e dão garças e antíteses.
Nem as ondas das suas praias cantam, e no fundo
Das manhãs elas dão gargalhadas frenéticas,
Silvos de tocaias e lamurientos jacarés.
Isto não são águas que se beba, conhecido, isto são
Águas do vício da terra. Os jabirus e os socós
Gargalham depois morrem. E as antas e os bandeirantes e os ingás,
Depois morrem. Sobra não. Nem siquer o Boi Paciência
Se muda não. Vai tudo ficar na mesma, mas vai!... e os corpos
Podres envenenam estas águas completas no bem e no mal.
(...)
                                               
                                            MÁRIO DE ANDRADE