quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Fragmentos

                                                 
                                           
black spot I (mancha preta I), wassily kandinsky



I
            
Só o ego de um psicopata é maior que o ego de um artista. 
No entanto, outro dia mesmo, vendo na TV um programa sobre a origem do universo, o poeta tomou mais uma de muitas porradas pedagógicas. Dizia Alex Filippenko, astrofísico da Universidade de Berkeley: Como é pequeno o pedaço da História que de fato ocupamos! Para simplificar isso, imagine comprimir 14 bilhões de anos de História do Universo em 14 anos. Nessa escala, a Terra teria existido somente nos últimos cinco anos. De maneira que, em 1/3 da História do Universo, as grandes criaturas teriam se desenvolvido há apenas sete meses. Nessa escala, os dinossauros teriam se extinguido há apenas três semanas. Toda a História registrada dos seres humanos teria começado há apenas três minutos. As sociedades industriais modernas, nos últimos seis segundos. 
Se é uma doída, mas saudabilíssima, paulada na mesquinha e autoatribuída importância da espécie, o que dizer de nosso infinitesimalmente mais mesquinho narcisismo individual? 
Como não lembrar os versinhos de Stephen Crane? A man said to the universe:/ “Sir I exist!”/ “However”, replied the universe,/ “The fact has not created in me/ A sense of obligation.”
                  
* (Algo como: Um homem falou para o universo:/ “Hei, eu existo!”/ “No entanto”, redarguiu o universo,/ “Este fato não provoca em mim/ o menor senso de responsabilidade.”) 
         
                                           
II
                           
E partindo desse pressuposto, partindo de que somos já de saída insignificantes, no entanto chegamos a extraordinários. 
Somos capazes de pensar a morte, não somos? De povoar a morte, de reinventar a vida. De viver eternidades. A alma, cheia de máculas e pesadelos, ao mesmo tempo rasgou-se no fundilho. Somos trágicos e banais, metafísicos e cotidianos, graves e ridículos. Diante do fim, talvez rebente-nos dos pulmões um soluço e uma apóstrofe: Vermes, deixem-me ser eterno! 
Como diz meu irmão Dom Pozzo: Tá branco, tá brancoA gente até que é saudável, mas sofre de humanidade. Pouco importa que desejemos medir e mentir, medir e manipulá-lo. 
Desde os sumérios, dividimos o Tempo em blocos de 12. Desde antes, o homem se divide em projeções e memórias afetivas. O homem encilha o tempo, doma o tempo em quadrantes, ampulhetas e poliuretanos. Cavalga o tempo.  
E cai do cavalo.

         
III
                             
Veja como são as coisas: escorrendo pelo Visconde de Nácar, pensei sem mais algo banal e inútil, incapaz sequer de desdobrar-se num poema ruinzinho.
Como aquilo me causou alegria e perplexidade gratuitas! (Sim, até a perplexidade pode ser gratuita.) Veja bem, não me fará diferença alguma. Muito menos a você, escassíssimo leitor. Algo que não nos levará a nada; levaria no máximo, de vento em vento, guardanapos, folhas secas, papéis de pão, uma sacola plástica...
(Desculpe, lá vou eu de novo, um vira-lata divagando. Voltemos à sarna que solicita as unhas...).
Escorrendo apressado pela Visconde de Nácar, pensei algo banal e inútil, e pensá-lo era sentir-me o dono de um cachorro sem dono, era ser de novo um menino, a imaginação esfolada. Às vezes pouco é melhor do que nada, às vezes pouco é melhor do que tudo. Pensei simplesmente, e a ideia, de dentro pra fora, ia refrescando meu rosto:
                                                                                                         
                                       o vento é uma máquina vazia 
                                                                                                                   
Pode crer! Mais gratuito do que jamais fui grave, pensar “o vento é uma máquina vazia” me fez, por alguns instantes, eterno entre. (Li esse baita achado num livro de poemas do Maurício Arruda Mendonça.) Entreterno. 
Depois, é claro, voltei a ser premeditado. Segui àquele lugar aonde eu ia: imprescindível, inadiável, respeitabilíssimo. Aquele lugar que eu já nem lembro.
                       
                             
IV
       
A eternidade, no presente, é uma sensação indivisível, flor que tem num só instante raízes neste, em todos, em nenhum momento; mero abre-e-fecha de parênteses (entre as tais coisas inadiáveis da vida), mas parênteses inesquecíveis... 
Ou será que já estou mentindo?  Talvez a eternidade no presente sequer exista. Quem sabe seja coisa de se conjugar somente no passado; mais precisamente, no pretérito imperfeito do subjetivo: a eternidade era um colibri bebendo o açúcar dos relógios.  
E mesmo assim, porque somos apaixonados e temperamentais, a coisa toda, o vívido vivido, parece suspenso fora do tempo pelos fios de meus e teus cabelos. 
Talvez por isso aquele menino com o rosto cheio de ranho e terra me dissesse: 
–  É assim mesmo, tio, matando o tempo eu consigo ser eterno! 
E há também o que dizia ao menino a mãe dentro da tarde chuvosa. Dizia-me, com um sabor poético tacanho e inesperado, que também fica eterno o que se esquece. Ela me disse: O que a gente esquece, meu filho, aumenta a memória de Deus!  

                 
V
                   
Tateando cego as paredes do meu espanto (e quem garante não ser a alça da gaveta o trinco de uma porta que eu abro?), cheguei por fim a uma sentença: a eternidade, também ela feita de tempo – e apenas tempo –, não é o bom e velho sempre; a eternidade é um jamais
Ah!, meu irmão, isso não dá o mesmo barato de pensar, enquanto sinto o vento em meu rosto, “o vento é uma máquina vazia”. A razão não funciona como o pensamento aleatório e vacuifeito. A razão me deixa mastigando esta bola de farinha difícil engolir. 
O vento é uma máquina vazia. A gente mesmo uma máquina vazia, uma cigarra vazia, oca, quando enfim se cantar inteira. (Lembra do Bashô?)
Mas e o tempo,
                                    o que é o que é?
           
                                                                                                                                                       
VI

Quando eu era moleque, ganhei um relógio despertador de uma tia distante. Fiquei curioso. Sempre quis entender o Tempo. E lá fui eu: abri o relógio e removi cada engrenagem, cada pecinha. Tirando-as uma a uma – e tirando também o invólucro do mecanismo – não sobrou nada. Absolutamente nada. Aquilo me deixou abismado. Hoje eu mais ou menos entendo que justamente esse nada que sobra é o Tempo. O mesmo nada que, sabe-se lá de onde, vem forjando e enferrujando a gente.
                                         
       
VII
                                                                                   
Chega de conversa fiada. Tá na hora de quebrar a esquina. Passei seis meses de bobeira, de teimoso, referindo o tempo. Minha incompreensão permanece intacta. Tudo o que faço – tudo o que os líricos fazemos – é brincar com a incompreensão e o espanto enquanto há tempo. Enquanto houver tempo.
Um pouco de personificação nunca fez mal à poesia. Por que então não dar ao Tempo um rosto e um par de pernas? De modo que, para terminar: pensemos no Tempo como num velho vigoroso e mal-educado descendo a rua XV. Imaginem, a título de exemplo apenas, Dalton Trevisan descendo a rua XV.
O que se dá quando nos topamos, quando o reconhecemos? Nada. O Tempo atravessa-nos como se fôssemos invisíveis. Passa por nós na rua, na casa, no bar, no trabalho, no amor, no sono e na insônia. Não responde a apelos e cumprimentos, não se detém sequer um instante, sequer um leve giro de cabeça a reconhecer-nos ou desprezar-nos.  
Entende o Tempo que estamos já mortos? Somos os tais cadáveres adiados, coçando-nos, amando, procriando? Será que foge de nós (Tempus fugit), seus fantasmas, com medo ou remorso?
Talvez, pelo contrário, seja que tenhamos todos o mesmo rosto, indistinguíveis, como para nós têm o mesmo rosto todas as moscas deste mundo, como para nós é a mesma suas biografias de três semanas. Pouco se lhe dá ver-nos, jovens ou velhos, gênios ou idiotas, nus ou vestidos, bonitos ou feios, com uma faca ou um ramo de flores na mão direita.
Ou é porque você marcha, ó Tempo, atarefado, pontualíssimo? É, você mesmo, Tempo! Marcha para encontrar-nos – dali a anos, amanhã logo cedo? Marcha para encontrar-nos definitivamente, uma faca ou um ramo de flores em sua mão direita, numa outra esquina?

4 comentários:

  1. ótima crônica, talvez a melhor que tenha lido de vossa mercê!

    rp

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  2. e nem é pela referência...rsrsrs


    mas pq me pareceu uma escrita mais solta, tocando o profundíssimo com leveza.


    rp

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  3. O suporte do Mysthério?

    [...E quando eu tiver saído
    Para fora do teu círculo
    Tempo tempo tempo tempo
    Não serei nem terás sido
    Tempo tempo tempo tempo...]

    trecho de Oração ao Tempo © Caetano Veloso


    rp

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  4. no primeiro dos quatro prefácios de tutameia, li ontem, guimarães rosa menciona um aforismo nonsense que definiria muito bem, a meu ver, o NADA de que é feito o tempo:
    "o nada é uma faca sem lâmina, da qual se tirou o cabo".

    por incrível que seja, uma faca sem lâmina e sem cabo, um nada desses, continua a ser uma faca... aliás, A FACA.

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