quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

machado de assis

              
A MOSCA AZUL

            
Era uma mosca azul, asas de ouro e granada,
            Filha da China ou do Indostão.
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada
            Em certa noite de verão.

E zumbia, e voava, e voava, e zumbia,
            Refulgindo ao clarão do sol
E da lua — melhor do que refulgiria
            Um brilhante do Grão-Mogol.

Um poleá que a viu, espantado e tristonho,
           Um poleá lhe perguntou:
— "Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,
           Dize, quem foi que te ensinou?"

Então ela, voando e revoando, disse:
           — "Eu sou a vida, eu sou a flor
Das graças, o padrão da eterna meninice,
          E mais a glória, e mais o amor".

E ele deixou-se estar a contemplá-la, mudo
          E tranqüilo, como um faquir,
Como alguém que ficou deslembrado de tudo,
          Sem comparar, nem refletir.

Entre as asas do inseto a voltear no espaço,
          Uma coisa me pareceu
Que surdia, com todo o resplendor de um paço,
          Eu vi um rosto que era o seu.

Era ele, era um rei, o rei de Cachemira,
         Que tinha sobre o colo nu
Um imenso colar de opala, e uma safira
         Tirada ao corpo de Vixnu.

Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas,
          Aos pés dele, no liso chão,
Espreguiçam sorrindo as suas graças finas,
          E todo o amor que têm lhe dão.

Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios,
          Com grandes leques de avestruz,
Refrescam-lhes de manso os aromados seios,
          Voluptuosamente nus.

Vinha a glória depois; — quatorze reis vencidos,
           E enfim as páreas triunfais
De trezentas nações, e os parabéns unidos
           Das coroas ocidentais.

Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto
           Das mulheres e dos varões,
Como em água que deixa o fundo descoberto,
           Via limpos os corações.

Então ele, estendendo a mão calosa e tosca,
           Afeita a só carpintejar,
Com um gesto pegou na fulgurante mosca,
           Curioso de a examinar.
                              
Quis vê-la, quis saber a causa do mistério.
           E, fechando-a na mão, sorriu
De contente, ao pensar que ali tinha um império,
           E para casa se partiu.

Alvoroçado chega, examina, e parece
          Que se houve nessa ocupação
Miudamente, como um homem que quisesse
          Dissecar a sua ilusão.

Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,
          Rota, baça, nojenta, vil
Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela
          Visão fantástica e sutil.

Hoje quando ele aí cai, de áloe e cardamomo
         Na cabeça, com ar taful,
Dizem que ensandeceu e que não sabe como
         Perdeu a sua mosca azul.
                         
(machado de assis)

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