terça-feira, 29 de março de 2011

Protágoras, santo padroeiro dos patéticos e mentirosos

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      O filósofo grego Protágoras de Abdera foi acusado, por conta de seu livro “Sobre os Deuses”, de impiedade, ateísmo e blasfêmia. Morreu na fuga de Atenas para a Sicília, num naufrágio, não se sabe bem em que ano do século V antes de Cristo. Antes e depois do fatídico, causou profundo impacto na nascente filosofia antropológica e, muitíssimo mais tarde, na filosofia humanística europeia. Protágoras, cujos escritos não nos chegaram, mas a quem foi dedicada farta doxografia, ajudou a encerrar de vez o período cosmológico e deslocar o eixo das perquirições filosóficas do arké (causa primeira, princípio fundamental – fogo, água, ar, ser...) para o homem e a vida em sociedade. Por oposição, também foi importante a todos os grandes filósofos que mais tarde lhe fizeram resistência. Afinal, foi o maior representante do movimento sofista, corrente filosófica que, entre outras coisas, propunha o relativismo da verdade, a ideia segundo a qual o conhecimento nunca está no objeto e sim no sujeito que o percebe, no homem que é “a medida de todas as coisas”. Além disso, sofistas eram utilitaristas e venais. Caixeiros-viajantes do conhecimento, faziam preleções focadas na arte da retórica e da persuasão. Atendiam aos interesses políticos imediatos de seus alunos, filhos de homens ricos que queriam ter participação decisiva na pólis democrática. 
      Hoje, sofista é sinônimo de impostura, de canalhice interesseira. Sócrates era menos unidimensional do que o senso-comum e o Aurélio Buarque de Holanda: oscilava entre a admiração e a indignação. Ao fim, porém, deu seu veredito: o pensamento sofista não é filosofia.
      Faço coro a um comentário de meu camarada Ivan Justen: a poesia também não é filosofia. Graças a Deus! Mas onde diabos quero chegar com isso? Ao contrário dos sofistas, o poeta em geral não quer persuadir ninguém nem segue a lógica utilitária do conhecimento. A verdade, na poesia, quando não é um substantivo concreto, é adjetivo capaz de ventar; a verdade é apenas um som enfático (ou inenfático) que ilumina um objeto em fuga. O principal objetivo do poeta consiste em, quem sabe, provocar uma pequena explosão interna: derrame patético, infarto fulminante no relógio da matriz, pequeno AVC – acidente cardioversicular.
      Mas, se o pensamento sofista não dá conta da realidade material do mundo (concordo com Max Planck: na ciência, por exemplo, a verdade não é inventada, mas descoberta, ela se nos impõe à razão) e se tem preocupações práticas e “precificáveis”, há algo nele de essencial que nos permite um paralelo com a poesia: o império da subjetividade. Lembro sofisticamente a sentença de um dos maiores sofistas do século XX, T.S. Eliot: “toda verdadeira poesia é uma visão de mundo”. Mais: o feroz efeito dessacralizante, quando mais não seja no que diz (des)respeito à religião. Por isso, é menos forçação de barra do que parece declarar Protágoras o Santo Padroeiro dos Poetas.
      (Daqui em diante, após preâmbulo tão cansativo e metido à besta, a quem de fato interessa: os poetas.)     
      Mesmo que levemos em conta que talvez a linguagem tenha surgido das canções de trabalho e dos rituais mágicos dos primeiros homens, no tempo primevo em que música e poesia não existiam autonomamente, ou em que as palavras nascituras, conforme Borges, eram todas metáforas – portanto carregadas de poeticidade que, apenas com o tempo imemorial das erosões cotidianas, desgastaram-se e se tornavam metáforas mortas –, ainda assim, eu não acreditaria que a poesia fosse sagrada ou demiúrgica. Eu, infeliz ou felizmente, não acredito na sacralidade de nada. Acredito, isto sim, na poesia e nos poetas.
      Quando digo que o poeta é um afiador de facas ou uma ex-chacrete, consoante o espírito de porco que às vezes me obseda, não me entendam mal; não quero me autoflagelar com um açoite de guizos. O que pretendo é dimensionar este ofício do verso nos dias de hoje. O poeta caiu, dessacralizado, de seu nicho. Nada da respeitosa desconfiança de Sócrates – obcecado pelo conhecimento em prejuízo do prazer estético; aliás, confundindo as duas coisas: sabedoria e beleza – nem do glorioso degredo que Platão reservou aos poetas, cuspidos fora da República mas coroados de louros. Versos já não têm nas sociedades o relevo que um dia tiveram. É especialmente verdadeiro para a poesia aquilo que se diz dos escritores em geral: hoje há mais poetas do que leitores de poesia. Talvez seja preciso vaguear 40 anos pelo deserto para encontrar um único leitor de poesia que não seja poeta.
      Dito isso, pergunte para uma ex-chacrete (pergunte para mim) se é ou não fundamental ser uma chacrete, pergunte a mim se existe sobre a terra pessoa ou técnica que substitua e supere a mestria de um afiador de facas...  
      Notável também como os poetas de hoje, lambendo infinitamente sua ferida narcísica, muitas vezes gastamos mais tempo e energia vital com nosso impulso possessivo do que com o impulso criativo (aquelas noções de Bertrand Russel); ou seja,  uma parte vexaminosa de nós sonha ser proprietária exclusiva de algo que, se não nos põe em franca rivalidade, pode arremessar-nos ao pathos dos recorrentes ressentimentos e desconfianças. Percebam como alguns poetas agimos feito abutres, disputando com outros abutres uma carcaça reduzida à pedra do osso. É comovente e nauseabundo!                     
      Os modernos já desmistificaram à exaustão visões e “revisões” do poeta enquanto santo ou cortesão do diabo, invenção de românticos repetida por simbolistas e beats. Já meio caminho foi percorrido quando, num poema de Baudelaire, o poeta vê cair na rua sua auréola e tem de fazer uma escolha: reavê-la e ser atropelado pelos coches, ou seguir em frente e, atravessando desmistificado a rua, perder-se no interior da cidade e da vida. É, portanto, uma banalidade dizê-lo. Repiso não para repreender meus pares, senão para vencer na porrada e no cansaço – ou pela exposição à luz de meu ridículo – um certo heroísmo residual que mancha como alcatrão as paredes de meu quarto de poeta: não, ao contrário do que certa vez Leminski repercutiu, não há qualquer heroísmo.
      Talvez pensar que somos especiais e essenciais nos ajude a dormir certas noites, embriagados por um leve sentimento de superioridade. Obviamente, existe sim o tesão, a febre, o entusiasmo; mas não há, ataviando-nos a cabeça, qualquer nimbo de fumaça suja ou tiara de estrelas cariadas. O poeta não é uma espécie de monge secular desprendido, dominicano entre prostitutas, nem algum tipo de maluco iluminado. Alguns de nós são grandes autores mas pessoas medíocres ou apagadas; outros são até excelentes maus-caracteres e covardes. 
      A mim já não comove a imagem e autoimagem do poeta como um ser triste e solitário pescando à margem do Estige. Falo por experiência própria: fez muito mal a minha saúde física e espiritual algum dia haver acreditado nisso: masturbar-me com os dedos da morte, ser um desses caras que, nas palavras de Adélia Prado, “cheiram a suicídio e glória”.
      (Quer ver outro mito? O da hipersensibilidade. Como tantos outros que sentem eventualmente uma dor-de-corno, o poeta pode ser sensível. No entanto, para que alguém seja um bom poeta, a sensibilidade deverá ser sempre menor do que a “pesquisa e desenvolvimento”: comovida inteligência aplicada à linguagem.)   
      Protágoras queria ser pago – e bem – por sua cátedra itinerante. Nisso, entre poetas e sofistas, outra gritante diferença: se existem poetas argentários, ainda não conheci nenhum que acredite em que um dia poderá comprar o pão e pagar as contas com o dinheiro de seus poemas. A poesia há muitíssimo tempo é para o poeta um hobby de sobrevivência, um amadorismo vital que não tem valor de mercado, e sim de vísceras. (Entretanto o poeta – por supuesto, como no?! – até aceita ser pago em glória...)  
      Não sei se as sociedades vivem ou não sem seus vates. Se a vida só é possível reinventada, a poesia não é a única forma de fazê-lo. Talvez sejamos mesmo uns afiadores de facas... Não há aí nenhum derrotismo ou autoinfligido desterro. Embora artistas como outros (um ator da Globo, por exemplo), e por isso a necessidade de carinho e aplauso – e o sonho com o público um pouquinho maior –, certo mesmo só o fato de que: quem não vive sem o poeta é o poeta. Porque não nos basta respirar pelo nariz, nem tampouco é a poesia uma segunda peça de roupa ou um apartamento na praia pra variar. Pra quem tem esta cisma, poemas são a segunda árvore respiratória.
      Quem sabe você, aí na outra margem da página, numa das infinitas pontas da web, pense que tudo o que eu disse acima é somente um mal reprimido sonho de grandeza. Também. Mas quero crer que há menos megalomania enrustida do que – para sofrer menos e gozar mais – esforçado exercício de autodesmistificação; o que não me impede, fique claro, de comungar daquele sofismático desejo de Drummond: um belo dia um poema meu – ou, vá lá, de poeta que admire – impresso na primeira página de todos os jornais.     
            
* Rodrigo Madeira é afiador de facas. Escreve atualmente no extinto Jornal do Brasil

6 comentários:

  1. Se Madeira afia facas,
    Ivan não lhas desafia:
    mais poesia há nessas facas
    que na "ivã" filosofia.

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  2. se é mesmo ivã filosofia
    entanto capaz de poesia
    com tanta mestria e beleza,
    perdoe este meu azedume
    que de afiada a faca sem gume
    afia a faca pelo avesso.

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  3. Se Madeira pelo avesso
    mas Rodrigo a faca afia,
    Ivan sente que nem vê, so-
    mente volta à vaca fria:

    "Sim, perdoo os azedumes
    (são sem gumes mas com lumes)
    e nos monto um mote em guia:
    filossofistipoesia."

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  4. rsrs.
    maravilha, ivan. eu fazendo minha respostinha
    cabralina, e vc me vem com redondilhas primorosas...
    puxa, que rima! "avesso/vê,so-", pra terminar
    em "mente" (viva protágoras!). filossofistipoetemos.

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  5. Para confundir ainda mais o meio de campo:

    Rodrigo, olha só, acho que o teu texto fala mais de poetas que da poesia. Não que uma coisa se dissocie da outra: pois no começo, na origem, nunca se dissociam a poesia e os poetas.

    Mas quando a poesia se separa do autor é que ela alcança a sua plenitude. O vôo da águia sem a águia. A queda da água sem a água. É quando acontece isso que a poesia redimensiona a língua, instalando-se nos alicerces do idioma: serve, então, de fundamento para nossas existências.

    Nesse movimento estranhíssimo, quando a poesia se dissocia de sua origem, é que ela adquire efetividade prática. É quando se esquece seu real sentido, que pode ela ter significado imediato. As palavras não são mais que isso: metáforas petrificadas. Leia-se de Paul Ricouer “a metáfora viva, a quem Borges houvera lido.

    Nesse sentido, é natural que a poesia - ao menos a minha concepção de poesia - tenha menos efetividade no presente, sobre a realidade presente, que outras “artes” ou “práticas”: a poesia - para mim - ela reorganiza o passado, que se sedimenta na linguagem, e prepara o futuro, abrindo possibilidades existenciais no próprio idioma.

    Não se trata de uma tarefa da poesia - isso de preparar o futuro -, mas de uma possibilidade (condição do poder) da própria linguagem. E tampouco se trata do único aspecto (recorte ôntico) importante dessa nobre arte: é que entendo que é o mais urgente. Por isso penso e falo sobre isso.

    A poesia, quando plena e distraidamente contemporânea, é o que prepara (obviamente que não apenas ela) o lar para as gerações vindouras. O lar é a língua.

    No mais, devo concordar com o essencial do que foi dito sobre os poetas, ainda que talvez discordasse de algum detalhe ou argumento por questões de estilo.

    Contudo, não me preocupa o lugar social do poeta. Não tenho ilusões nem pretensões institucionais para o poeta. Me preocupa, isso sim, a ingenuidade brutal daqueles que detraem a poesia enquanto arte (tradição) e possibilidade (prática). Me preocupa, ainda mais, o fato de talvez termos lançado ao esquecimento o poder da poesia (dos poetas?), o poder da arte de dispor as melhores palavras no melhor ritmo.

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  6. bacana, rodolfo. vc diz algumas coisas interessantes, embora eu discorde bastante, no conteúdo e no estilo.

    primeiramente, devo dizer que esta crônica charlatã é também uma forma de exorcismo. lembra do tetrapharmakon da ética epicurista? (não temer os deuses, não temer a morte, ter em mente a facilidade do prazer, ter em mente que não há dor que não passe). pois então. acrescento à fómula mais dois elementos: a infelicidade faz parte da felicidade e o que nos redime é o senso de humor. como aquilo que escreveu cortázar: quem me salvará de ser sério?
    o texto é sobre a poesia e os poetas, mas vc tem razão qd diz que o foco está sobre os últimos; o texto dá uma escarafunchadinha bem humorada em nossa ferida narcísica e, principalmente, busca desmistificar a figura do poeta.
    sua visão é bem mais sisuda e respeitável do que a minha. no entanto, não acredito qd vc diz não se importar com a função social do poeta. seu texto no final mostra o contrário. todos sofremos de humanidade, rodolfo. e todos - do poeta à pedicure - precisamos de um mínimo de carinho e aplauso. negá-lo é autoengano. ninguém escapa. mesmo o poeta é capaz de mediocridades, banalidades, egoísmos, inseguranças e carências...

    o poeta perdeu muito de sua relevância. isto é fato. nenhum autor terá o impacto de dante, camões ou mesmo dos grandes "fazendeiros do ar" de nosso século XX. nenhum poeta será capaz de coser a alma de um povo, como fizeram homero, virgílio ou shakespeare.
    a poesia é fundamental mas, parafraseando o homem, o mundo é bem maior do que nossos coraçõezinhos.
    mesmo que tire o azedume humorístico da frente - pra que fique claro o que penso -, não vejo que a poesia ainda seja capaz de "redimensionar a língua, instalando-se nos alicerces do idioma" - não, ao menos, em nível coletivo. acho patético - ridículo e comovente - que se acredite em algo assim!
    mas concordo quando vc diz que a poesia - em nível individual - "abre possibilidades existenciais no idioma". e ainda: abre possibilidades existenciais POR MEIO DO idioma. a poesia de fato já me salvou a vida. de mais a mais, sendo ela a comovida inteligência aplicada à linguagem, quem sabe possa transtornar e transformar uma pessoa aqui ou ali - uma aqui, outra a 1000 km; uma hoje, outra daqui a 100 anos...

    pra encerrar (e encerar) minha respostinha, devo dizer que, por se tratar de crônica escrita por um clown, creio 100% em apenas 25% - e apenas 25% dos 100% - daquilo que escrevi. sacou?

    abraços.

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