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Numa noite há muitas noites
mas de modo diferente
de como há dias
no dia
(especialmente nos bairros
onde a luz é pouca)
porque de noite
todos os fatos são pardos
e a natureza fecha
os olhos coloridos
guarda seus bichos
entre as pernas, põe as aves dentro dos frutos
e imobiliza todas as águas
embora fique urinando
escondido
em vários pontos da quinta
tão suave que ninguém ouve sob as folhas de tajá
E assim as muitas noites
parecem uma só
ou no máximo duas:
sendo a outra
a noite de dentro da casa
iluminada a luz elétrica
A noite adormece as galinhas
e põe a funcionar os cinemas
aciona
os programas de rádio, provoca
discussões à mesa do jantar, excessos
entre os jovens que se beijam e se esfregam
junto à cancela
no escuro
e quando o tesão é muito decidem casar
(menos, por exemplo,
Maria do Carmo
que entregava os peitos enormes
pros soldados chuparem
na avenida Silva Maia
sob os oitizeiros
e deixava que eles esporrassem
entre suas coxas quentes (sem
meter)
mas voltava para casa
com ódio do pai
e malsatisfeita da vida)
De noite, como
a luz é pouca,
a gente tem a impressão
de que o tempo não passa
ou pelo menos não escorre
como escorre de dia:
como se se desse uma interrupação
para o dr. Bacelar fazer uma palestra
no Grêmio Lítero-Recreativo Português
uma interrupção
para que os operários da fábrica Camboa
descansem um pouco
e se reproduzam nas redes
ou nas esteiras
se amando sem muito alarde
para não acordar os filhos que dormem no mesmo quarto
Como se o tempo
durante a noite
ficasse parado junto
com a escuridão e o cisco
debaixo dos móveis e
nos cantos da casa
(mesmo dentro
do guarda-roupa,
o tempo,
pendurado nos cabides)
E essa sensação
é ainda mais viva
quando a gente acorda tarde
e depara com tudo claro
e já funcionando: pássaros
árvores vendedores de legumes
Mas também
quando a gente acorda cedo e fica
deitado assuntando
o processo do amanhecer:
os primeiros passos nas ruas
os primeiros
ruídos na cozinha
até que de galo em galo
um galo
rente a nós
explode
(no quintal)
e a torneira do tanque de lavar roupas
desanda a jorrar manhã
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* trecho do Poema sujo (1975)
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