segunda-feira, 12 de março de 2012

octavio paz

         
O MESMO TEMPO
    
Não é o vento
não são os passos sonâmbulos da água
entre as casas petrificadas e as árvores
ao longo da noite vermelhiça
não é o mar subindo as escadas
Tudo está quieto
                         repousa o mundo natural
É a cidade em torno de sua sombra
buscando sempre buscando-se
perdida em sua própria imensidade
sem nunca se alcançar
                                 nem poder sair de si mesma
Fecho os olhos e vejo os carros passarem
se acendem e apagam e acendem
se apagam
                não sei aonde vão
Todos vamos morrer
                               o que mais sabemos?

Num banco um velho fala sozinho
Com quem falamos ao falarmos sozinhos?
Esqueceu seu passado
                                 não tocará o futuro
Não sabe quem é
está vivo no meio da noite
                                       fala para ouvir-se
Junto à grade se abraça um casal
ela ri e pergunta algo
sua pergunta sobe e se abre no alto
A esta hora o céu não tem sequer uma ruga
caem três folhas de uma árvore
alguém assobia na esquina
na casa em frente se acende uma janela
Que estranho perceber-se vivo!
Caminhar por entre a gente
com o íntimo segredo de estar vivo

Madrugadas sem ninguém no Zócalo
Apenas nosso delírio
                               e os bondes
Tacuba Tacubaya Xochimilco San Ángel Coyacán
Na praça maior do que a noite
acesos
          a postos para levar-nos
na vastidão da hora
                             ao fim do mundo
Listras negras
As varas erguidas dos troles
                                           contra o céu de pedra
e seu laço de faíscas sua lingueta de fogo
brasa que perfura a noite
                                      pássaro
voando assobiando voando
entre a sombra emaranhada dos freixos
desde San Pedro até Mixcoac em fila dupla
Abóbada verde-negra
                                 massa de úmido silêncio
sobre nossas cabeças em chamas
enquanto falávamos aos gritos
nos últimos bondes
atravessando os subúrbios
com um fragor de torres despedaçadas

Se estou vivo caminho ainda
por estas mesmas ruas empedradas
charcos lodos de junho a setembro
saguões tapumes altos hortas dormidas
velando apenas
                       branco roxo branco
o cheiro das flores
                            impalpáveis cachos
Na treva
             um farol quase vivo
contra a rígida parede
                                 Um cachorro ladra
perguntas à noite
                          Não é ninguém
o vento entrou pelo bosque
Nuvens nuvens gestação e ruína e mais nuvens
templos caídos novas dinastias
escolhos e desastres no céu
                                          Mar de cima
nuvens do altiplano, onde está o outro mar?

Mestras dos olhos
                            nuvens
arquitetas de silêncio
E súbito sem mais nem menos
chegava a palavra
                            alabastro
esbelta transparência não convocada
Disseste
            farei música com ela
castelos de sílabas
                            Não fizeste nada
Alabastro
              sem flor nem aroma
talho sem sangue nem seiva
brancura atormentada
                                 garganta apenas garganta
canto sem pé nem cabeça
Hoje estou vivo e não sinto saudade
a noite flui
               a cidade flui
eu escrevo sobre a página que flui
transcorro com as palavras que transcorrem
Comigo não começou o mundo
não há de acabar comigo
                                        Sou
uma batida no rio de batidas
Há vinte anos Vasconcelos me disse
“Dedique-se à filosofia
Não dá vida
                  defende da morte”
E Ortega e Gasset 
                            em um bar sobre o Ródano
“Aprenda alemão
e ponha-se a pensar
                              esqueça tudo o mais”

Eu não escrevo para matar o tempo
nem para revivê-lo
escrevo para que me viva e reviva
Hoje na tarde no poente
vi o sol entrar nas águas do rio
Tudo estava em chamas
ardiam as estátuas as casas os pórticos
Nos jardins cachos femininos
lingotes de luz líquida
frescor de vasilhas solares
Uma folhagem de faíscas a alameda
A água horizontal imóvel
sob os céus e os mundos incendiados
Cada gota de água
                             um olho fixo
o peso da enorme formosura
sobre cada pupila aberta
Realidade suspensa
                             no talo do tempo
a beleza não pesa
                             reflexo sossegado
tempo e beleza são o mesmo
                                            luz e água

Olhar que sustenta o belo
tempo que se embeleza no olhar
mundo sem peso
                          se o homem pesa
não basta o belo?
                                   Não sei nada
Sei o que sobra
                        não o que basta
A ignorância é árdua como a beleza
um dia saberei menos e abrirei os olhos
Talvez não passe o tempo
passam imagens de tempo
se não voltam as horas voltam as presenças
Nesta vida há outra vida
a figueira aquela voltará esta noite
esta noite regressam outras noites

Enquanto escrevo ouço passar o rio
Não este
             aquele que é este
Vaivém de momentos e visões
o melro está sobre a pedra acinzentada
num clarão de março
                               negro
centro de claridades
Não o maravilhoso pressentido
                                               o presente sentido
a presença sem mais
                               nada mais pleno farto
Não é a memória
                          nada pensado nem querido
Não são as mesmas horas
                                       outras
são outras sempre e são a mesma
entram e nos expulsam de nós mesmos
com nossos olhos veem o que não veem os olhos
Dentro do tempo há outro tempo
quieto
         sem horas nem peso nem sombra
sem passado ou futuro
                                  apenas vivo
como o velho no banco
em uníssono idêntico perpétuo
Nunca o vemos
                        É a transparência
    
tradução: rodrigo madeira
    
poema no original e récita de octavio paz   

2 comentários:

  1. ainda não li o original, mas tá lindo! que coisa mais bonito esse poema, eu escrevi ele também, sem escrever, sabe como? beijos esquimó

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