quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Às margens do Han

                                           
                                          
     

      Quando assisti à “Poesia”, do diretor sul-coreano Lee Chang-Dong, fui ao mesmo tempo arrebatado pelas imagens e vertiginado pelo abismo existencial e moral em que mergulham os dois personagens centrais – a avô e seu neto, criado por ela. O adolescente participa de um crime covarde contra uma colega de escola, que se mata atirando-se de uma ponte do rio Han. Eis a primeira cena do filme: um corpo afogado fluindo rio abaixo.    
      No entanto, o que mais me impressionou não foi propriamente a abordagem realista (quase naturalista) da ruína pessoal, do tecido familiar mais e mais esgarçado, mas sim, encapsulados nesta mesma ruína, o desejo e a cisma da poesia, a vontade de finalmente descobrir o que é e como se faz essa tal poesia. Como escreve a avó, sentada no banco de um parque: “Som de pássaros cantando. O que eles estão cantando?” Impressionou-me o contraste entre o esfacelamento da normalidade cotidiana e a busca pessoal da poesia já no crepúsculo da vida.
      Mija (a atriz Yun Jiang-hie) decide voltar-se para um antiga vocação nunca realizada, nunca sequer explorada. “Tenho veia de poeta. É, gosto de flores e falo coisas esquisitas”, diz à sua filha. Para tanto, para se realizar poeta e escrever sua única obra (este é o objetivo de Mija: escrever um único poema), matricula-se em um oficina de criação poética. E nos dá, ao longo do filme, uma aula.
      Como agravante ao drama familiar, Mija, a poeta aprendiz, descobre que está nos estágios iniciais do Alzheimer. Tendo ao fundo camélias de plástico e uma janela que filtra o mundo, a médica assevera: “Por enquanto está esquecendo algumas palavras... Gradualmente, sua memória deverá piorar muito. No começo, não vai se lembrar de substantivos. Depois, não vai se lembrar dos verbos... Sabe, os verbos?” Ao que Mija responde: “Sim, claro que sei. Mas os substantivos são mais importantes.” E ri, gostosa e estoicamente.  
      Começa, portanto, uma contagem regressiva: será que ela escreverá, engolfada em problemas de toda ordem, esquecendo as palavras como quem esquece os sonhos banais da noite anterior, será que conseguirá escrever seu primeiro e último poema?
      De imediato, veio-me à mente o oposto daquele sonho de Quintana: uma poesia tão fundamental que fosse escrita apenas com substantivos; ou, exorbitando de qualquer viabilidade prática, uma linguagem composta a partir do silêncio dos lapsos, do silêncio de substantivos esquecidos, naquele vazio quente, vivo e angustioso como deve ser a linguagem das plantas e dos animais.
      Pois a poesia sempre me pareceu caminhar na wildiana corda-bamba de um paradoxo: poemas se fazem de palavras que fazem silêncio.
      Ou não é isso? Imediatamente após lermos um grande poema, não nos resta, diante e dentro de nós, apenas a materialidade de um silêncio mais ou menos incômodo? Como o grito súbito e agudo, próximo à surdez, que um tímpano experimenta após o estouro. Como o sotaque do silêncio.
      Quando leio um grande poema, quase sempre tenho a impressão de que pouco ou nada entendi; a mesma sensação que filmes como “Poesia” e “A Estrada da Vida”, de Fellini, me causaram (ou, semana passada mesmo, “Melancolia”, de Lars Von Trier, uma belíssima e perturbadora obra-prima). Tenho a impressão de que sequer é importante ENTENDER alguma coisa. Não porque seja hermético; pelo contrário: aquilo é menos uma informação ou conhecimento do que uma experiência. Conforme escreveu Clarice numa de suas clarividências (obscurividências) mais repisadas, viver ultrapassa o entendimento.
      O verdadeiro poema, para além de leitura, é uma vivência, ainda que ficcional ou especulativa. E exatamente aí, neste corpo nítido e sensível, mas inclassificável, cabe toda a dor e alegria do mundo, todas as flores e fezes, toda a beleza e miséria do mundo. Exatamente aí cabe o coração e a mente de Mija, o galope do Alzheimer e o lento e impreciso florescer de um único mas inevitável poema.
      No filme, os alunos da oficina de criação poética são instados pelo professor a relatar a lembrança que lhes seja a mais cara e bonita. Uma das alunas, uma mulher malferida de paixão, fala de seu caso extraconjugal com um colega de trabalho. De como não consegue esquecê-lo, mesmo que tenham feito amor uma única vez; e de como aquilo dói. Ela arremata: “Eu pareço uma louca, choro e dou risada. Mas... este sofrimento... está quase me matando... mas... até o sofrimento é bonito.”
      Mija também faz sua partilha. Relata a primeira das mais tenras lembranças, menininha de três ou quatro anos. Mal sabe ela que, naqueles poucos instantes, e assim como fizera em outros momentos do filme, novamente compõe diante de nós  “o primeiro e último poema”.
     
     Para encerrar, tomo a liberdade de versificar aquela fala singela e memorável. Ela também já faz parte de minhas mais belas lembranças... 

               
Minha mãe estava doente.
Minha irmã mais velha cuidava de mim.
Temos dois anos de diferença. Na sala de estar,
as cortinas vermelhas fechadas.
Através de uma pequena fresta, o sol
está entrando.
Posso ver metade do rosto de minha irmã.
A outra metade está escondida nas sombras.
Acho que ela me vestiu com roupas bonitas.

 – Mija, venha cá, venha cá! – ela me chama
batendo as mãos.
Vou cambaleando até ela.
     
Embora fosse pequena, eu sabia que
ela me amava. Ela me chamou
e aquilo foi bom. Foi uma coisa feliz.
“Estou tão bonita”, foi o que senti.

 – Mija, venha cá! Venha cá, Mija!  
                                                                         

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