(...) "Os 'Bichos' não eram bichos. Lygia assim os denominou, possivelmente, como no caso dos 'casulos', para expressar aquela reativação da superfície vazia e, sobretudo, no que se refere especificamente a eles, os 'Bichos', duas propriedades novas: eles tinham uma 'espinha dorsal' e mobilidade. E, além do mais, porque eles eram uma coisa sem nome. Não eram pintura e não eram escultura. Escapavam a toda classificação conhecida. (...) "Assim os casulos deslizam para o chão para se livrarem da visão frontal a que estão submissos os quadros. Sim, mas ainda aqui, no chão, se o espectador pode andar em volta da obra, apreendê-la mais amplamente, resta ainda um lado inacessível a ele: o que está voltado para o chão. Mas o não-objeto não quer ter avesso, portanto ele não pode ter uma base como a escultura tem. Ele não é uma escultura. Ele é o anti-quadro, a destruição do suporte material (...); ele é uma redescoberta do espaço real em consequência da destruição do espaço virtual. Por isso, os 'Bichos' não têm uma posição privilegiada, única, em que devem ser colocados. Não têm o lado de cima, o lado de baixo, o lado direito, o lado esquerdo, já que podem ser postos em qualquer posição. E além disso, não têm uma forma fixa, permanente: as suas placas, interligadas por dobradiças, movem-se e o 'Bicho' se transforma pela ação manual do observador. "Essa mobilidade subverte a relação espectador/obra de arte. O espectador já não merece esse nome porque ele agora não apenas vê a obra; ele age sobre ela: a sua ação a transforma, a completa, a desvela. O 'Bicho' está diante de ti; ele é uma oferta e uma solicitação, uma instigação. Ele se oferece ao teu olhar mas, ao mesmo tempo, não se entrega inteiramente a ele: exige a tua ação, a tua participação efetiva para se mostrar, se completar. "O 'Bicho' é um ser novo no universo da arte. (...)"
FERREIRA GULLAR, "Relâmpagos". (Dentre todos os artistas e obras comentadas neste livro, só os "Bichos" não contam com qualquer reprodução fotográfica.)
***
de modo que faço um mea-culpa em forma de
POEMA-NOTA:
não conheço os "bichos". nunca experimentei estas obras - que para serem vistas é preciso mais do que olhos. não conheço os "bichos". sei que suas reproduções em fotos são menos que taxidermia, menos que bichos embalsamados com fólios:
falta-lhes (falto-lhes meu corpo) a Vida, a inquietude deles e minha, de bicho; falta-lhes mais nas fotografias: falta-lhes a própria respiração de ser mais que qualquer razão de ser ou ter sido.
mesmo assim, inorgânicas, são belas as sombras - de algum jeito nas retinas o frio metal acende um braseiro; são belas as sombras - trazem algo do bicho, da fruta, da flor cabralina, algo difícil como origamis de algum ferrageiro.
(...)
ResponderExcluir"Os 'Bichos' não eram bichos. Lygia assim os denominou, possivelmente, como no caso dos 'casulos', para expressar aquela reativação da superfície vazia e, sobretudo, no que se refere especificamente a eles, os 'Bichos', duas propriedades novas: eles tinham uma 'espinha dorsal' e mobilidade. E, além do mais, porque eles eram uma coisa sem nome. Não eram pintura e não eram escultura. Escapavam a toda classificação conhecida.
(...)
"Assim os casulos deslizam para o chão para se livrarem da visão frontal a que estão submissos os quadros. Sim, mas ainda aqui, no chão, se o espectador pode andar em volta da obra, apreendê-la mais amplamente, resta ainda um lado inacessível a ele: o que está voltado para o chão. Mas o não-objeto não quer ter avesso, portanto ele não pode ter uma base como a escultura tem. Ele não é uma escultura. Ele é o anti-quadro, a destruição do suporte material (...); ele é uma redescoberta do espaço real em consequência da destruição do espaço virtual. Por isso, os 'Bichos' não têm uma posição privilegiada, única, em que devem ser colocados. Não têm o lado de cima, o lado de baixo, o lado direito, o lado esquerdo, já que podem ser postos em qualquer posição. E além disso, não têm uma forma fixa, permanente: as suas placas, interligadas por dobradiças, movem-se e o 'Bicho' se transforma pela ação manual do observador.
"Essa mobilidade subverte a relação espectador/obra de arte. O espectador já não merece esse nome porque ele agora não apenas vê a obra; ele age sobre ela: a sua ação a transforma, a completa, a desvela. O 'Bicho' está diante de ti; ele é uma oferta e uma solicitação, uma instigação. Ele se oferece ao teu olhar mas, ao mesmo tempo, não se entrega inteiramente a ele: exige a tua ação, a tua participação efetiva para se mostrar, se completar.
"O 'Bicho' é um ser novo no universo da arte. (...)"
FERREIRA GULLAR, "Relâmpagos".
(Dentre todos os artistas e obras comentadas neste livro, só os "Bichos" não contam com qualquer reprodução fotográfica.)
***
de modo que faço um mea-culpa em forma de
POEMA-NOTA:
não conheço os "bichos". nunca
experimentei estas obras - que para serem
vistas é preciso mais do que olhos.
não conheço os "bichos". sei que suas
reproduções em fotos
são menos que taxidermia, menos
que bichos embalsamados com fólios:
falta-lhes (falto-lhes meu corpo) a Vida,
a inquietude deles e minha,
de bicho; falta-lhes mais nas fotografias:
falta-lhes a própria respiração de ser
mais que qualquer razão de ser ou ter sido.
mesmo assim, inorgânicas, são belas
as sombras - de algum jeito
nas retinas o frio metal acende um braseiro;
são belas as sombras - trazem algo do bicho,
da fruta, da flor cabralina, algo difícil
como origamis de algum ferrageiro.