terça-feira, 27 de março de 2012

Mano Veio

  
ferramentas para relojoeiros

        
     O relógio de pêndulo de minha avó badalava sempre, à meia-noite, a hora de nossa morte, amém. Deus me livre! Meu irmão foi dormir num dos quartos e me deixou sozinho na sala, eu e o relógio. Uma coisa é ouvir, acompanhado do irmão cinco anos mais velho, as 11 badaladas; outra, bem distinta, ouvir sozinho na sala as 12 badaladas do relógio de pêndulo. Sem irmão mais velho, in extremis, unhas que arpoavam a polpa dos dedos, o coraçãozinho um sapo pegajoso, mijei e mijei impotente como se sangrasse: como xxxiiiii xangraxxx... 
       No dia seguinte, meus primos em torno de mim feito moscardos, meus primos e irmãos varejando e zumbindo em torno de minha mancha amarela. A priminha mais nova olhava-a compenetrada, sugava a chupeta  Freud e seu charuto  como alguém que, abraçada ao seu paninho, contemplasse algo de sério e extraordinário – um girassol de Van Gogh, por exemplo. Mas ela era apenas uma, e minúscula, no meio das gigantescas varejeiras, daqueles índios apaches alcoolizados, dançando e gargalhando em círculos concêntricos. Minha mãe sorriu maldisposta, escorou o colchão contra o muro, meu medo arrostando o sol, secando ao mês de fevereiro. Lembrando agora era até bonito: a mancha, ela mesma, uma espécie de sol, sol medroso que despontou à meia-noite em ponto.
      Àquela época, as gargalhadas de meu irmão me humilhavam às lágrimas e ao rilhar de dentes. Como eu amava o filho-de-uma-puta! Amava e temia. E as duas coisas juntas me davam vontade de segui-lo, me davam vontade de chorar; de segui-lo chorando, amarrando os cadarços e correndo para alcançá-lo, sorrindo e limpando no antebraço meu nariz. Tião podia ser terrível! Era meu ídolo. Em certas ocasiões, ainda mais do que isso: devotei-me como ao Deus do Antigo Testamento. E como era engraçado, por que não uma espécie de Loki? Paguei-lhe oferenda em balas, risadas, cumplicidades e chicletes. 
     Nunca esqueço os momentos de tensa diversão nos serões melífluos da Eternidade: minha mãe, carolíssima, lendo a Bíblia ilustrada para os três filhos. Quando perguntou aos dois menores quem era aquele homem pendurado na cruz, meu irmão mais velho antecipou-se:
     – Deixa que essa eu sei! É o Sócrates, mãe, da seleção... Ai!... Depois que ele perdeu aquele pênalti!
      O tabefe de minha mãe, veloz como a ratoeira. Na verdade, sua mão espalmada e a língua de meu irmão pareciam fazer parte de um único e infalível mecanismo. Não havia como não rir. No entanto, assim que mamãe voltou a engatilhar a armadilha, eu e minha irmã dissolvemos o humor no amor maior de Cristo, em Cristo. Só então ela podia prosseguir, ofendidíssima, tentando novamente – em vão – adensar-nos auréolas sobre as cabecinhas. Ríspida feito um romano, chutara o traseiro do palhaço mirim por sobre todos os alambrados do México e do mundo, pra bem longe da Paixão de Cristo. (De minha parte, porco Pôncio Pilatos, eu fingia lavar as mãos antes da janta.) E lá fomos nós, pela milésima vez, crucificar o pobre do Nazareno.
      Tião foi um moleque maravilhoso. Aos seis anos de idade, sozinho em casa a tarde inteira, decidiu eviscerar um por um os relógios que ia encontrando. Argumentou com razões de estudioso: precisava entender como é que o tempo funciona. É ou não é um impressionante caso de precocidade tornar-se, aos seis anos, um relojoeiro metafísico?
    Seu espírito e voluntarismo sempre foram maiores do que o apego às coisas; brincar e brigar, mais importantes que qualquer brinquedo. Não lhe custou desapegar-se dos impecáveis carrinhos Matchbox comprados por meu pai, semana após semana, em Puerto Stroessner. É claro que gostava de sua coleção, luzente e bem-comportada nas prateleiras do quarto. Mesmo assim, nada o impediu, desafiado por um amigo, de jogá-los de uma vez no bueiro de nossa rua. Meu pai ficou doente, profundamente magoado. Que bem não me lembre, Tião, atônito, apenas comentou:
      – Puxa vida! Parece até que que o papai ia pro trabalho num daqueles carrinhos...
     Fazia dessas volta e meia. Era, como eu disse, voluntarioso. E bom de bola. Pouco importava que o Marcinho tivesse aulas de judô. O jogo ainda não acabou, não vai embora e ponto. O menino reclamou, bateu o pé, e foi se indo. Afinal, sou ou não sou faixa amarela? Pois meu irmão, enfurecido, depois de um Koka e um Yuko, aplicou-lhe um belo de um Ippon e o imobilizou. Marcinho bateu em suas costas e a partida prosseguiu com os dois times completos. Marcinho, coitado, apanhou em dobro. Um cabritinho que balia desorientado. Sua mãe, ao flagrá-lo jogando bola, pastoreou-o pela Rua do Angico com uma vara de marmelo.
    Sem contar a vez em que Tião e um amigo vestiram-se de super-homem e subiram ao telhado com o sério propósito de voar. O outro acreditou: naquela idade, um ano mais novo era outra geração. No um e dois e três e... JÁ! Meu irmão fez que foi, gesso de super-herói e supervilão, enquanto o japinha decolava para baixo enrolado em sua capa vermelha. Quebrou apenas uma perna, só por Deus!
     
    E tantas outras as histórias... Por aí se iria, de inoxidável Caloicross, a Foz do Iguaçu.
     
      A aurora de minha vida, comparativamente, deu-se numa manhã mais ou menos nublada. É por isso que, na falta de assunto com que inventar minha infância, recorro furtivamente ao tesouro de meu irmão. Meus maiores predicados eram a delinquência maria-vai-com-as-outras e a mentira. Principalmente a mentira. Fui um menino tão mentiroso que meu pai me apelidou de Pantaleão. (Hoje me pergunto se não é exatamente assim, à falta de assunto e à mentira, que se apronta um "verdadeiro" poeta...)
     Dizia, recorro ao tesouro de meu irmão. Trago no pulso um dos relógios que ele eviscerou. Ah, Tião intemporal, Tião feito de tempo! Entro pela janela do seu quarto  o próprio Esquecimento há de sempre esquecê-la entreaberta e, com dedinhos ágeis e imundos, brinco com seus carrinhos Matchbox ainda nas estantes. Demoro-me ali. É preciso demorar-me. Antes que você, mano veio, Sebastião ão ão, menino impossível, atire-os novamente no bueiro.    
                             
* R.M. brinca de cronista. Desde os sete anos, desenha e escreve nas últimas folhas do caderno.

3 comentários:

  1. O tempo marca não a vastidão do espaço, marca o espaço limítrofe das frações acumuladas em nosso passo.O calendário ou relógio são delimitações utilitárias, provindas de um aparente pragmatismo social? as ampulhetas, cheias de seus milionésimos calcinados [areias, antes água de extintas clepsidras] demonstraram essa probabilidade? Não importa!tudo isso é tão hipotético como Deus nos números.
    Sou filho de um relojoeiro, e a aurora da minha infância, algumas vezes foi desperta com o tic-tac dessas máquinas tão límbicas quanto a condição de se ser humano. Certa manhã, despencou da parete um raro relógio pendular que meu turbulento pai consertava, com toda meticulosidade que lhe era característica, horas depois dele terminar o conserto, o maldito aparelho estava na sala de casa, próximo de onde eu dormia, acordei com o estrondo, e fiquei de canto a observar aquela cêna, ele veio até à sala, nervosíssimo, com o rosto vermelho, falou em italiano, palavras que não entendi..., pareciam-me um dialeto qualquer-mesmo não sendo,e me olhou e disse em tom admoestador, misturando os idiomas: ''-e tu !? soltanto (somente) fica a guardade (a olhar)?'' repliquei no alto dos meus dez anos de idade: --eu não olho as horas nesse relógio. Se temos no instante a revelação de que existimos, escolhemos o tempo de que somos o espaço; os ponteiros são a contrariedade do horizonte, no entanto o baixo-relevo onde os números e suas marcações se instalam, têm o espaço livre para qualquer invenção...um desenho, uma função extra e etc... e por isso há o horizonte também na inexorabilidade do relógio, a linha do horizonte é tão possível num círculo fechado, como a imprevisão mortal da vida possui a eternidade de termos o instante.
    Aludindo o que você diz... a porta da sala precisa estar sempre entreaberta, --não sei se para a expectação de um relógio intruso que despenca ou para que não se perca aqueles carrinhos Matchbox que você preserva na estante..., a porta entreaberta não deixa o horizonte esquecido no menino impossível que ainda insistimos ser, e assim continuamos possíveis desta eterna meninice.
    Fico por aqui, meu mano vindo...ou véio mano.

    T.S.
    (um outro véio mano que veio)

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  2. que bom que cê veio, mano veio.

    olha só:
    desde que voltou do reformatório, a língua portuguesa ainda tá meio traumatizada. Só vejo melhora, poeticamente falando, nas ambiguidades. duas delas, precisamente: "veio/véio/veio" e "pelo/pêlo".

    tullio, compra pra mim um desses relógios vagabundos aí da 25 de março, desses que ao terceiro dia só conseguem marcar a eternidade...

    abçs.

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  3. vou comprar, um daqueles cujo os ponteiros marcam como de costume o meio dia, mesmo sabendo que a hora tambem tem zero...

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