sexta-feira, 18 de maio de 2012

carlito azevedo

                                                         












                   
                 
AO RÉS DO CHÃO


I

Um menino passou na ventania,
um momento passou de epifanias.

É a memória que quer, com seus acervos,
expor-se em luminosos néon-nervos?

É, doendo, o tempo, essa doença
da infância, a gerar velhos de nascença?

É que tudo, se passa, vira nada?
mesmo que anele ainda a alugada

e sexy roupa fátua do poema
(seu rol de rimas ricas, diadema

tremeluzente), e até as gotas finas,
que no ar denso, porém, abrem ravinas

vertiginosas e em revolução,
antes de explodirem ao rés do chão

(ciscos de água luzindo nos lancis),
relembrem, extraluzes, o céu gris?


II

A trama era tão simples, sob um céu
tão simples, sem visões e sem um véu

sobre os olhos... Num poderoso instante
um ponto se congela e, circundante,

tudo passa a fluir lento, arrastado,
e à volta desse círculo um mais largo

se abre onde prossegue normalmente
a vida e seu caudal; mais abrangente

há outro onde tudo é tão veloz
que nem o percebemos. Onde a foz

e onde a nascente é algo indecidível:
se tudo nasce quieto e até um nível

vertiginoso vai-se acelerando,
ou se, ao contrário, é justamente quando

chega ao seu fim que o fluxo se detém,
nascido acelerado e por ninguém?


III

A ideia é não ceder à tentação
de escrever o poema desse não-

lugar, desse círculo congelado
sem vasos comunicantes, fechado

em si, em sua pose, sua espera,
a ideia é alcançar a outra esfera,

não aquela onde tudo flui tão lento,
nem a outra, comum no movimento,

mas a última, a roda da vertigem
(esteja ela no fim ou na origem),

a ideia é pôr as duas mãos no centro
nervoso do delírio (aquele vento

na praça), para que a palavra ativa
congele a vida, como sói, mas viva

mesmo ferida da paralisia,
fluxo paralisado, a poesia.


IV

Quando a chuva passou (quando assentou-se
a ideia do dilúvio) e o que ela trouxe,

a memória encolheu-se como poça
de água limpa que em si mesma se empoça

e deixa de existir, sutil velame
na densa luz que se evapora à lâmina

d'água. Assentou-se o dilúvio, o presente
investiu todo espaço lentamente:

cada curva do espaço, cada canto
de curva, cada praia de amianto.

Assentou-se o dilúvio. Sob o acosso
da quietude, que é toda um alvoroço

(tal como é lisa a pele onde se roça
a superfície áspera e lenhosa

do gozo, que lacera o tempo), a hora
retomou seu fiapo de memória.

                                             
                          CARLITO AZEVEDO

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