ÁPORO
Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.
Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?
Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:
em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.
*
trechos da análise do poema "o áporo" por davi arrigucci júnior ("coração partido", cosac naify, 2002):
Incluído num longo livro, "A Rosa do Povo", livro longo e difícil, o breve poema pode ser destacado como um ponto alto, não só pela qualidade em si, mas pelo caráter exemplar com relação ao conjunto da obra. É que contém, em máxima condensação, características básicas da lírica reflexiva e problemas centrais que o poeta enfrenta e supera com seu trabalho. Nele se vê como Drummond faz da dificuldade arte.
[...]
Tempos atrás, Décio Pignatari se deteve a estudá-lo. Ao descrevê-lo formalmente, fez uma série de observações esclarecedoras sobre aspectos parciais, mas importantes da construção do texto, deixando claro o método "indicativo" que inventou para sua leitura.
Em primeiro lugar, registra, transcrevendo verbetes de vários dicionários, desdobramentos semânticos da palavra "áporo": um problema sem saída, com solução difícil ou impossível (sinônimo de aporia); um gênero de plantas da família das orquídeas; um inseto himenóptero, da família dos cavadores (...)
Descreve, em seguida, a metamorfose do inseto em flor-poema. O percurso sonoro-semântico desse termo e de sua ação (cavar) se imprimiria, isomorficamente, na tessitura física dos signos, ao formar-se a orquídea e o poema, através de uma cadeia de aliterações verticais, completando-se o processo com a sílaba central do "inseto semiótico" em posição de libertar-se ("forma-se").
Comenta também o tratamento parodístico de miniaturização do "inseto-soneto": decassílabos tradicionais rasgados pelo meio em pentassílabos; glosa crítica de expressões pseudo-castiças ("Eis que", "Oh razão"); enlace entre ritmo e significado, a ponto de insinuar de repente, em compasso de valsa romântica, uma inflexão irônica sobre a própria forma do soneto. Sugere ainda, sem crer que com ela se possa acrescentar algo de essencial, uma abertura à interpretação, entendendo por isso alusões referenciais a certos fatos histórico-políticos da década de 40 a que fragmentos do texto poderiam se prestar (como "país bloqueado" , relacionado com o Estado Novo, ou "presto se desata", com a libertação de Luís Carlos Prestes...).
[...]
O áporo enquanto inseto nada tem a ver, certamente, com a orquídea, mas ambos, inseto e orquídea, se referem ao mesmo significante na origem, fazendo parte de uma mesma história desenvolvida no texto. Ao conectá-los, a historieta envolve de fato uma extrema dificuldade, pois deve superar a contradição que opõe os seres nela enredados, uma vez que se trata de seres completamente distintos em sua identidade de animal e flor. No entanto, o primeiro se converte no segundo, integrando a contradição: só no mito, e na metáfora poética, que é um mito em pequeno, como afirmou Vico, se abre a possibilidade de deslizamento da identidade, à maneira de "isso é aquilo", para lembrar termos de Drummond.
[...]
O significante inicial pode ter surgido de um achado casual de leitura, mas o poema, significante final, estabelece relações necessárias entre os termos que desdobram as denotações da palavra-chave numa nova estrutura, que é a do mini-soneto, no qual esses materiais aproveitados ressurgem, também eles, completamente mudados. O que permite a metamorfose interna do inseto em flor não é, obviamente, um processo da natureza, embora se faça à sua semelhança; é resultado de um esforço humano de mudança: a do trabalho do poeta com as palavras talvez achadas no dicionário.
[...]
Essa transformação dos materiais, que dá lugar à metamorfose interna do inseto em orquídea (...) decorre em parte da mobilização dos elementos linguísticos encontrados talvez ao acaso, mas depende sobretudo do trabalho do poeta e de como funcionou sua imaginação despertada pelo achado. (...) Essa mudança realmente radical consiste na "articulação" , antes inexistente, entre termos absolutamente divergentes entre si quanto à expressão e ao significado. Eles nada parecem ter em comum, a não ser seu passado de dicionário ligado ao signo "áporo" e, no entanto, vão formar, em novo contexto, um todo completo, um enredo (também chamado "mythos", na acepção aristotélica da "Poética").
Isso quer dizer que os materiais foram trabalhados numa direção que lhes deu coerência pela forma de organização: a da narrativa, e passaram a constituir a historieta do inseto cavador que se metamorfoseia, após um caminho difícil, de súbito e contra toda lógica, numa orquídea.
*
trechos da análise do poema "o áporo" por davi arrigucci júnior ("coração partido", cosac naify, 2002):
Incluído num longo livro, "A Rosa do Povo", livro longo e difícil, o breve poema pode ser destacado como um ponto alto, não só pela qualidade em si, mas pelo caráter exemplar com relação ao conjunto da obra. É que contém, em máxima condensação, características básicas da lírica reflexiva e problemas centrais que o poeta enfrenta e supera com seu trabalho. Nele se vê como Drummond faz da dificuldade arte.
[...]
Tempos atrás, Décio Pignatari se deteve a estudá-lo. Ao descrevê-lo formalmente, fez uma série de observações esclarecedoras sobre aspectos parciais, mas importantes da construção do texto, deixando claro o método "indicativo" que inventou para sua leitura.
Em primeiro lugar, registra, transcrevendo verbetes de vários dicionários, desdobramentos semânticos da palavra "áporo": um problema sem saída, com solução difícil ou impossível (sinônimo de aporia); um gênero de plantas da família das orquídeas; um inseto himenóptero, da família dos cavadores (...)
Descreve, em seguida, a metamorfose do inseto em flor-poema. O percurso sonoro-semântico desse termo e de sua ação (cavar) se imprimiria, isomorficamente, na tessitura física dos signos, ao formar-se a orquídea e o poema, através de uma cadeia de aliterações verticais, completando-se o processo com a sílaba central do "inseto semiótico" em posição de libertar-se ("forma-se").
Comenta também o tratamento parodístico de miniaturização do "inseto-soneto": decassílabos tradicionais rasgados pelo meio em pentassílabos; glosa crítica de expressões pseudo-castiças ("Eis que", "Oh razão"); enlace entre ritmo e significado, a ponto de insinuar de repente, em compasso de valsa romântica, uma inflexão irônica sobre a própria forma do soneto. Sugere ainda, sem crer que com ela se possa acrescentar algo de essencial, uma abertura à interpretação, entendendo por isso alusões referenciais a certos fatos histórico-políticos da década de 40 a que fragmentos do texto poderiam se prestar (como "país bloqueado" , relacionado com o Estado Novo, ou "presto se desata", com a libertação de Luís Carlos Prestes...).
[...]
O áporo enquanto inseto nada tem a ver, certamente, com a orquídea, mas ambos, inseto e orquídea, se referem ao mesmo significante na origem, fazendo parte de uma mesma história desenvolvida no texto. Ao conectá-los, a historieta envolve de fato uma extrema dificuldade, pois deve superar a contradição que opõe os seres nela enredados, uma vez que se trata de seres completamente distintos em sua identidade de animal e flor. No entanto, o primeiro se converte no segundo, integrando a contradição: só no mito, e na metáfora poética, que é um mito em pequeno, como afirmou Vico, se abre a possibilidade de deslizamento da identidade, à maneira de "isso é aquilo", para lembrar termos de Drummond.
[...]
O significante inicial pode ter surgido de um achado casual de leitura, mas o poema, significante final, estabelece relações necessárias entre os termos que desdobram as denotações da palavra-chave numa nova estrutura, que é a do mini-soneto, no qual esses materiais aproveitados ressurgem, também eles, completamente mudados. O que permite a metamorfose interna do inseto em flor não é, obviamente, um processo da natureza, embora se faça à sua semelhança; é resultado de um esforço humano de mudança: a do trabalho do poeta com as palavras talvez achadas no dicionário.
[...]
Essa transformação dos materiais, que dá lugar à metamorfose interna do inseto em orquídea (...) decorre em parte da mobilização dos elementos linguísticos encontrados talvez ao acaso, mas depende sobretudo do trabalho do poeta e de como funcionou sua imaginação despertada pelo achado. (...) Essa mudança realmente radical consiste na "articulação" , antes inexistente, entre termos absolutamente divergentes entre si quanto à expressão e ao significado. Eles nada parecem ter em comum, a não ser seu passado de dicionário ligado ao signo "áporo" e, no entanto, vão formar, em novo contexto, um todo completo, um enredo (também chamado "mythos", na acepção aristotélica da "Poética").
Isso quer dizer que os materiais foram trabalhados numa direção que lhes deu coerência pela forma de organização: a da narrativa, e passaram a constituir a historieta do inseto cavador que se metamorfoseia, após um caminho difícil, de súbito e contra toda lógica, numa orquídea.
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