sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

minuto de sabedoria cínica (XVI)

                                       
Somos um nada que ama.

                                  LUIZ FELIPE PONDÉ
     
                                   

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

A Morte e o Beduíno

                                                            
       Não sou dos que veem no deserto um portal entre o céu e o homem, entre o inferno e o homem, embora ninguém duvide de que se trata do mais dramático e importante "teatro de religiões". A coisa me parece bem menos grandiosa; tenho fé em que seja bem mais simples e difícil e solitária: o deserto, imensa pátria baldia, é somente um portal entre o homem e sua morte.
    Seríamos deuses se não morrêssemos; não haveria necessidade de criá-los. (Afinal, como bem disse Amós Oz, Deus nunca acreditou em religiões.) Atravessaríamos o deserto como quem vai entre árvores frutíferas e jasmineiros.
      E se eu dissesse que o deserto é o mar que perdeu tudo, que perdeu rigorosamente tudo senão a fome feroz da existência, estaria falando de um outro deserto que é a alma humana. E estamos sempre falando de um outro deserto que é a alma humana. 
     Por isso, paupérrimos, mesquinhos, os desertos são de tal maneira luxuriantes. Não existe espaço alegórico melhor, melhor geografia afetiva para nossa condição banal e extrema: quem pisa o deserto é de imediato um moribundo – não há quem pise o deserto sem que caminhe, durma e ame à beira da morte, debaixo de um céu belíssimo e indiferente.
     Digo isso tudo para dizer o contrário: mas, quando imaginação e memória são sinônimos perfeitos, tudo pode ser rápida e incoerentemente, como que por ventos contra-alísios, posto do avesso. Um exemplo? Vejamos a antiquíssima fábula árabe que inventei agora:
     
   Tempo mítico, a areia emperrando o mecanismo do relógio, veio a Morte em missão ao deserto da Líbia. Buscava um certo beduíno, pouquíssimo visto, esquivo, imortal nos rumores. Por três anos e três noites (na medida arbitrária da eternidade), a Morte rastreou e farejou-o. Leu pegadas, deteve as caravanas, comeu carne de cobra e gafanhotos, bebeu água de cacto, cuspiu areia, espreitou semanas em oásis, chamou-o pelo nome...
     
     As crianças tuaregues cantavam nas travessias
                                                                                   
                                                                                    – a Morte te alcança
                                                                                       imortal beduíno
                                                                                       sob a luz da lua
                                                                                       sob o sol a pino –
                                                                                                         
                                                                                                               os versículos de um arpoador de estrelas.

        Jamais conseguiu alcançá-lo, nunca chegou a menos de duas ou três horas de distância. Ainda assim, seu olhar agudo viu-lhe rebrilhando, quilômetros à frente nos gigantescos bancos arenosos, o alfanje prateado. De tão longe e perto, a Morte, al-quebrada, às vezes tomou por vésper ou farol o brilho daquela lâmina. 
       A insolação por fim começou a enlouquecê-la. Dizem ainda que a areia é capaz de amontoar-se, frestas microscópicas adentro, na caixa craniana, na cava das órbitas, e parir um escorpião minúsculo que arruína a visão e empeçonha o juízo. A Morte, derrotada, sentou-se nas areias, sorriu idiota para a lua. Ficou ali, abandonada, agudamente viva, latejando. E agora passa os dias, entre as dunas do deserto, com uns modos ridículos de gaivota...
     
        
*

Em tempo. A imortalidade também tem lá suas caducidades. Suponho que a esta altura o tal beduíno já esteja morto; morte de outra qualidade, diga-se, debaixo do mesmo céu belíssimo e indiferente: arquetípica, encenada – um suicídio? –, de cujas minúcias e conclusão sabe-se apenas que não restam ossos.
Os mais exaltados, no entanto, juram que sempre fora e será o Vento. O vento vestido, sua carne mais fina que a cambraia mais fina. O vento. Túnica e turbante vazios flamulando no lombo de um cavalo.

                                 

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

desert blues (tinariwen)

                              
                                                                         
                                                   

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

robert frost (II)

                     

   
O CAMINHO NÃO TRILHADO


A estrada se partiu no bosque amarelado,
E lamentando não poder seguir por ambas
E ser apenas um, fiquei ali parado
E olhei uma das vias, o olhar alongado,
Até que ela fugisse na curva entre as ramas;

Então tomei a outra, boa escolha também,
E por ser ela talvez mais convidativa,
Porque clamava a grama pelos pés de alguém,
Ainda que, em se tratando disso, o vaivém
As tivesse desgastado em igual medida

E que houvesse – aquela manhã – nas duas vias
Folhas e mais folhas ainda por pisar.
Ah, deixei a primeira para um outro dia!
Mas sabendo que um caminho em outros daria,
Duvidei de que um dia eu pudesse voltar.

Noutra parte, triste, hei de dar este relato;
Entre mim e o sucedido, a distância imensa:
A estrada se partiu no bosque amarelado 
Tomei dentre os caminhos o menos trilhado,
E isso justamente fez toda a diferença.
                    
tradução: rodrigo madeira


THE ROAD NOT TAKEN

Two roads diverged in a yellow wood
And sorry I could not travel both
And be one traveler, long I stood
And looked down one as far as I could
To where it bent in the undergrowth;

Then took the other, as just as fair,
And having perhaps the better claim,
Because it was grassy and wanted wear;
Though as for that the passing there
Had worn them really about the same,

And both that morning equally lay
In leaves no step had trodden black.
Oh, I kept the first for another day!
Yet knowing how way leads on to way,
I doubted if I should ever come back.

I shall be telling this with a sign
Somewhere ages and ages hence:
Two roads diverged in a wood, and I 
I took the one less traveled by,
And that has made all the difference.


(récita do próprio frost)
                                                            

domingo, 1 de janeiro de 2012

endomingados

                                                                                             
por que no domingo a água
tem outra velocidade
e é sempre feriado nacional
em nossas vísceras?
por que no domingo
o amor é mais lento, baldio,
vadiado
e os corpos pesam
10 gramas subtraídos?

por que há este insético zumbido
nas retinas?
por que este vazio grávido
de tudo – espera
do quê, meu deus?

por que nossas mãos ficam
quase cristalinas?
e a ordem natural pode ser
suspensa e de uma crisálida
irromper um pássaro?
por que as árvores cantam
um tom mais alto
e os cães latem noutra língua?

por que a vida respinga
das páginas que viramos
quando lemos
e o amor, ósseo, dói alegre como flor
nascendo
sobre o ombro esquerdo?

***

não há consolo necessário,
domingo não é preciso.

domingo não é um dia,
apenas mais um dia.

domingo é uma semana,
domingo é a vida inteira.

                  
                    LU CAÑETE & RODRIGO MADEIRA


(pássaro ruim, 2009)
                                                                                

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

vinicius de moraes (& baden powel)

                                                                                             
         
     


   

domingo, 25 de dezembro de 2011

passionata

                                       
o amor foi feito para
a imperfeição, para o silêncio
entojado de som e fúria
e gentilezas.
o amor foi feito para errar,
dar com os burros nágua,
perder a paz
e odiar de um ódio patético
e gago.

o amor é assim: uma bomba
de delicadeza e desejo
que arrebenta nossas manias,
nossas veias mais grossas,
nossos relógios e bibelôs,
nossas fotografias antigas,
estudos, trabalho, ócio,
o passatempo mesquinho,
a conversa fiada e o futebol.
(na hora do gol,
você pensa nela e olha além,
através do alambrado, buscando
a improbabilidade
do jasmim.)

as vacas, em sua mansuetude,
não amam.
mas os homens...
“um grave acontecimento
na vida de um sujeito ordinário
naquela tarde como qualquer outra.”

o amor nos emburrece,
nos embrutece (cavalos doentes,
anjos idiotas),
como se não tivéssemos nunca
amado
e desamado, amado
e desamado.

o amor remoça
e envelhece dramaticamente.
a mulher pode dormir virgem
e acordar na menopausa.
o homem pode acordar
analfabeto
e se deitar um poeta,
esbofeteado por asas.

no meio do sono,
equidistância perfeita
entre sonho e realidade,
o homem, a mulher
trazem abaixo
com uma serra de sândalo
as árvores genealógicas.

há quem defeque estrelas,
estupidificado de infinito.
há quem não consiga,
um trapezista interior, 
levantar o garfo até a boca
ou amarrar os cadarços.

quase tudo o que se viveu,
todas as lições e sobrevirtudes
esfarrapadas,
como se amadurecer
fosse a antevéspera do podre
e da semente.

o amor não se cura. fica incubado
esperando a primavera,
a próxima (sempre prima)
                                       MENTIRA!
ah como eu minto
pra você pra mim, meu amor...

o amor
o amor
a desaprendizagem

o amor
sem o qual a vida
seria uma verdade (como a morte).  


(pássaro ruim, 2009) 
    

sábado, 24 de dezembro de 2011

paulo henriques britto (II)

                       
marc chagall (1887-1985)


SONETO INGLÊS
   
A surpresa do amor – quando já não se
espera do mundo nada em especial,
e a evidência de que os anos vão se
acumulando sem nenhum sinal
de sentido já não dói nem comove –
quando em matéria de felicidade
não se deseja mais que uns nove
metros quadrados de privacidade
para abrigar os prazeres amenos
do sexo fácil e da literatura
difícil – eis que então, sem mais nem menos,
como quem não quer nada, surge a cura –
definitiva, radical, imensa –
do que nem parecia mais doença.


                               P.H. BRITTO
                          

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

antonio cicero

                             
                 
CANÇÃO DO AMOR IMPOSSÍVEL


Como não te perderia
se te amei perdidamente
se em teus lábios sorvia
néctar quando sorrias
se quando estavas presente
era eu que não me achava
e quando tu não estavas
eu também ficava ausente
se eras minha fantasia
elevada a poesia
se nasceste em meu poente
como não te perderia?

                         ANTONIO CICERO


***

arrevesando essa beleza de poema, cheguei ao seguinte:


CANÇÃO DO AMOR POSSÍVEL


Como não te ganharia
se me ganhas mansamente
se em teu olhar que sorria
eu dentro de ti me via
se ao te fazeres presente
és sempre tu que me tens
e mesmo quando não vens
meu coração te pressente
se és esta minha alegria
e o meu sangrar que assobia
se te pões em meu nascente
como não te ganharia?

                                  r.m.
         

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

heptaphármakon

   
1. não se deve temer os deuses

2. não se deve temer a morte

3. o bem não é difícil de se alcançar

4. os males não são difíceis de suportar

5. a infelicidade faz parte da felicidade

6. só o humor liberta
      
7. haja sempre alguém que negaceie
com a flor incompreendida
                  

* segundo o discípulo diógenes de oenoanda, os quatro primeiros elementos sintetizam o receituário filosófico de epicuro.
       

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

                                                                                                     
                                                                               pássara

                                                                               quando a tônica migrar

                                                                               passará












migração

jacques prévert

                                                                 
lasar segall, menino com lagartixas (1924)



A Lagartixa                   


A lagartixa do amor
Fugiu mais uma vez
Deixando-me nos dedos
Sua cauda. Bem feito:
Eu queria prendê-la

(tradução: carlos drummond de andrade)


A lagartixa do amor
Fugiu mais uma vez
E me deixou o rabo entre os dedos
Bem feito
Eu quis guardá-la para mim

(tradução: antonio cicero)


Le Lézard

Le lézard de l'amour
S'est enfui encore une fois
Et m'a laissé sa queue entre les doigts
C'est bien fait
J'avais voulu le garder pour moi

             JACQUES PRÉVERT
                                                   

hanna schygulla (lili marlene/ r.w. fassbinder)

                    

        

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

três inscrições para uma noite

                    
1.

aramos nossos corpos
hasteamos a carne
naufragamos os ossos
afiamos a pele

jardinamos os pelos
vozeamos as unhas
rasuramos os lábios
semeamos os dentes

desfazemos em tempo
os nós de cada dedo
elastecemos os

tornozelos acróbatas
abrimos as gavetas
dos olhos e cabelos.


2.

quando eu a vejo
esparramada
na cama, rama
de musgo e líquen,

de perfil – por 
trás de seu ombro –,
também por dentro
de suas coxas,

desejo entrar
na eternidade,
mesmo sabendo

que a faz tão bela
exatamente
o fim das coisas.

  
3.

você paloma
se esbate cega
em minha pele,
luta e lençol.

lhe oferto um cravo
e nada mais.
nós morreremos?
meu endereço

é a minha carne.
mordemos drágeas
dos amanhãs

ou cianureto.
acordo, no(u)
mau hálito de amanhecer

(e foda-se o soneto), com
um soco de perfume.

       
(pássaro ruim, 2009)
         

sábado, 17 de dezembro de 2011

nu fechando a porta

               
teu corpo nu
sob a torneira
de tanto orvalho
teu corpo nu

é todo feito
de abertos lábios
navegações
em manhã clara

traduz o sol
para o alfabeto
das coisas líquidas

o mar vai sempre
arrebentar
em tuas costas

           
(sol sem pálpebras, 2007)
                

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

oleiro amoroso

                                              
de fazer-te estátua,
entre bruma e arpejos,
quebrei-te com gosto,
com presta destreza.
               
de atirar-te aos cacos
no charco, entre juras,
beijo de dois gumes,
sem dó atirei-me.
           
de colher os cacos
para rejuntá-los
com a lama mesma,
                
imunda, te amei,
com gosto e destreza,
sem dó, como nunca.

          
(sol sem pápebras, 2007) 
                                 

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

não sei dançar #8

              
para ouvir, clique aqui: http://www.myspace.com/570488999


QUANDO APAGAR A LUZ
(rodrigo madeira)


Quando apagar a luz, meu bem
Acenda as lanternas de suas mãos
Quando abrir os olhos que não veem
Me ilumine a luz de um lampião

Me vele seu facho-rosto
E sue a cera de tanto ardor
Bem no centro de seu corpo
A fogueira queime este pecador

Quando nascer o sol, meu bem
Seja ainda noite de sono e breu
Quando acordarem os pássaros e o trem
Só olhe à frente o urgente orfeu

Escândalo em silêncio
O incenso indecente da flor
Que eu seja terra e talo
Onde floresça o seu amor
     

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

não sei dançar #7

                               
para ouvir, clique aqui: http://www.myspace.com/570488999
                                                         
                 
ACALANTO ÀS 2:00 DA TARDE
(rodrigo madeira)


Eu ligo o meu stereo
Me mudo pra cozinha
Será que eu compro um terno
Ou flerto com a vizinha?

Vou compra a prazo
Vou pedir as contas
Vou arrumar o quarto
Vou regar as minhas plantas

E tudo isso, este nada
E muito mais...

Esta conversa
Esta canção que eu canto
Este acalanto
Para boi dormir

Esta conversa
Este acalanto
Esta canção que eu canto
Para boi dormir

Eu saio do cinema
Meu tédio é um cão mofado
Mas nada tem problema
Eu fumo outro cigarro

Eu conto as formigas
Eu vendo um canivete
Eu mijo numa esquina
Eu masco outro chiclete

E tudo isso, este nada
E muito mais...

Esta conversa
Esta canção que eu canto
Este acalanto
Para boi dormir
                                       

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

não sei dançar #6

                                          
para ouvir, clique aqui ó: http://www.myspace.com/570488999

* participação de nice monteiro (além de sabiá, ela compõe que é uma beleza...)
valeu, nice!!


A GENTE NÃO PRESTA (rodrigo madeira)

                     
(MULHER)
Ele não vale nada
Mas no almoço gastamos seu vale
E não presta pra muito
Mas se peço me arruma emprestado

(HOMEM)
Ela vale bem pouco
Nos valemos de suas noitadas
E quem disse que presta?
Mas me empresta pro azar e o cigarro


(MULHER)
Eu não gosto dele
Ele não gosta de mim
Mas a gente dá samba
Mas a gente faz samba
Que fazer solidão é ruim
(HOMEM)
Eu não gosto dela
Ela não gosta de mim
Mas a gente dá samba
Mas a gente faz é samba
Que fazer solidão é ruim


(MULHER)
Ele não me completa
Mas completa o tanque do carro
Ele não me faz falta
Mas faz falta seu corpo enroscado

(HOMEM)
Ela não me faz falta
Mas faz falta seu corpo em meu corpo
Ela não me completa
Mas completa meu copo no Torto

REFRÃO
     

domingo, 4 de dezembro de 2011

dr. calcanha (in memoriam)

                 
                







           
talvez os pré-socráticos
já soubessem,
mas ninguém fez
tão pouco tão bem
quanto ele.

parecia tão simples.

nisto consistiu sua Poética:
transfigurar em arco e seta
o calcanhar-de-aquiles.
                   

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

não sei dançar #5

                   
para ouvir a canção, clique aqui:
http://www.myspace.com/570488999


                                   
VAI CHOVER SALIVA

                        (rodrigo madeira/ william carlos williams)


Venha me tocar em si
Menor
Venha me gastar, dália, doida, diva
Vamos penhorar este velho sol
Que hoje,  meu amor, vai chover
Saliva
Hoje, meu amor, vai chover saliva
Vai chover saliva

Como é da natureza das roseiras bravas
Rasgar a carne
Tenho avançado pelo meio delas
Fique longe das sarças, das garças, dos espinhos
Fique longe das sarças, dizem-nos (mas)
Não se pode viver e viver longe delas
Não se pode viver e viver longe delas*

Venha me tocar em si
Menor
Venha me gastar, dália, doida, diva
Vamos penhorar este velho sol
Que hoje, meu amor, vai chover
Saliva
Hoje, meu amor, vai chover saliva

Como é da natureza das roseiras bravas
Rasgar a carne
Tenho avançado pelo meio delas
Fique longe das sarças, das garças, dos espinhos
Fique longe das sarças, dizem-nos (mas)
Não se pode viver e viver longe delas
Não se pode viver e viver longe delas

Por isso eu canto, por isso eu calo
Por isso eu surjo, por isso eu parto
Por isso eu sangro, por isso eu saro
Por isso eu morro, por isso eu mato

E por isso a flor e por isso o cardo
E por isso o espinho e por isso o nardo
E por isso o blues e por isso o fado

Por isso eu canto, por isso eu calo
Etc
          

* Como é da natureza das roseiras bravas/ rasgar a carne,/ tenho avançado/ pelo meio delas./ Fique longe/ das sarças,/ dizem-nos./ Não se pode viver/ e ficar longe das sarças. (A COROA DE HERA, william carlos williams, trad. josé paulo paes.)           

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

estudo mineral para um joia

                                 
                                                                                                                       
                                                    sabrina, amadeo modigliani
                                                      
                    
carbono elíptico.
único.
puríssimo (a sujeira toda da vida).

                               modo artificial de fabricação:

                               a) carvão
                               b) brasa
                               c) cinzas
        
                               d) o cheiro feroz nas roupas

* a última clivagem é restar,
                                do cheiro feroz,
uma lembrança


2.

in natura

a gema

(anterior às 58
facetas) não veio

das minas negras de angola
nem arfou nas mãos
de lapidários belgas.

não foi desentocada
meticulosamente das
entranhas da terra;
             
por cuspe de gêiser mais
que fundo de cava,
da entranha das entranhas
    
prorrompeu:
                    

                                                                      3.                             

verruga de
diamante, rastro de lesma,
pingente: lágrima quase invisível
no pescoço infinito
da mulher
                                                                

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

solidão

                                         



despedaçados, atropelados
cachorros mortos nas ruas
policiais vigiando
o sol batendo nas frutas
sangrando, ó meu amor
a solidão vai me matar de dor


* esta canção, na verdade, é um bolerão pop composto por gilberto gil e letrado por caetano veloso. do disco tropicália (1968).




na vida quem perde o telhado
em troca recebe as estrelas
pra queimar até se afogar
e de soluço em soluço esperar
o sol que sobe na cama 
e acende o lençol
só lhe chamando, solicitando
                                                                   

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

    
     jovem mulher atravessando a rua
          jean béraud (1849-1935)

      

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

a menina atravessa a rua

                             
                 eu te fecundaria com um simples pensamento de amor,
                                  ai de mim!
                                  mas ficarás com teu destino.
                        
                                vinicius de moraes

     
      
está gravado numa árvore,
ou leio em bula de remédio,
ou ignoro no aviso do veneno:
esta árvore sem asas, de pedra
faz nas pernas dela
seu ninho de carne indormida.

mas ela não me sabe.

é como se o sol
que súbito nascera em seu lábios
se pusesse agora em suas coxas.
como se a paisagem do fim de tarde
que no jogo teso
                   de tentativa e erro
antes de concluída a noite chegasse
ao lume preto de seus cabelos,
chegasse
também ao susto de seus peitos.
a menina atravessa a rua
como quem caminha para dentro
de sua própria nudez.

ela
pistilo de flor que deflora
mal-me-quer
arroxeado amor-perfeito
no fundo do peito
no canto da razão
no canteiro de pelos.

ela
a grife sem roupas
o arabesco
a tatuagem no osso
uma espécie de murro
outra mordida
               na maçã mordida.
ela,
com botas sete-léguas
atravessando a vida,
não sabe que me atravessa.
(tal o ônibus em que se vai dentro
e atravessa a noite?
tal a rua à noite que atravessa
a cidade em que se perde?)

ela passa, pássaro líquido,
e transborda ao que vejo,
sozinha no coração de tudo quanto vejo,
ela passa...

e se eu
do alento certo na tristeza,
do chão firme às quimeras
lhe dissesse como maiakóvski:
deixa-me ao menos
arrelvar numa última carícia
teu passo que se apressa?
           
mas nunca ouvirá
o que não lhe digo.

ela passa,
entre carros e gente,
ela passa, pássaro líquido,
contemporânea
                de si mesma.

está gravado numa árvore,
ou leio em bula de remédio,
ou ignoro no aviso do veneno
(no letreiro néon que já se acende
na avenida):

sua pressa, feito uma onda
de impacto,
faz da boca da noite
(solar como a urina)
esta ante-
                aurora
       
  
(sol sem pálpebras, 2007)