sexta-feira, 24 de agosto de 2012

poema para albert nane

                          
                                foto de albert nane



quando está no campo [no espaço fotográfico], ali está,
capturado de uma vez por todas, como os insetos no âmbar (...)
                                                               philippe dubois  

                   
a imagem está parada
mas o tempo        não

a imagem está parada
mas os olhos nas órbitas
as pálpebras         não

a imagem está parada
mas não está parada
a respiração

a imagem está parada
mas não está parado
o coração


2.

o inseto no âmbar (voando)
vareja dentro,
sem qualquer
medida, o que é recesso ilimitável
de um único momento
e o restante
de nossas vidas.

o inseto-instante,
imóvel no âmbar,
está voando
em quem se deixa voar
por um inseto no âmbar.

o inseto no âmbar
está voando


* o latim das moscas (inédito)

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

você


eu que por pouco não sou transparente
apesar de minha solidez aflitiva
filho de todas as razias
eu que por mais um pouco seria invisível
que saio de casa para entrar no mundo
que enxergo, como henrika,
peixes nas poças de chuva

eu que sou um franciscano brutal
que alimento os pombos com parafusos
um relógio onde o tempo se estraga
que nunca superei as drogas
que nunca venci aquela paixão
que não posso ver uma mesa de cartas

eu que como papel entre
haustos de tinta
que tenho a chave para as praças da cidade

eu que bebo com os cavalos as águas estigiais
que oxido a lua de urina
que construí escadas que vão dar no teto – como
madame winchester 
que inventei janelas inacessíveis
construí casarões sem alicerces
na mudança meus fantasmas
e uma mitologia de cães cegos

eu que sou esta florescência de miasmas
cuja alegria é uma careta
cujo sangue é de auroras
cujos ossos são de tijolos e a alma
de querosene

meu sonho será
apodrecer exalando música

eu que guardo uma gaivota na traqueia
que tenho cabelos no coração
e rins de diamante

que saio pelas ruas, charanga de calúnias
que vadio as estrelas e o amor
que desconfio dos poderes sobrenaturais 
da linguagem
e ainda assim digo, grito desesperadamente as coisas
como arrastado por um desacampamento 
de ciganos, como se uma guerra 
começasse por minha causa
como se um mágico tirasse moedas 
de minha boca e as esferográficas guardassem
a velha herança das navalhas ruins
como se houvesse fios de alta-tensão
entre nossos corpos

eu que vivo o precário vaudeville dos instantes
que aprendi a dar cambalhotas
com os bobos
de shakespeare e os retardados
cujo bom-senso é o estopim da combustão
cujo reino é uma cratera
cuja coroa é o nariz do palhaço
e o assassinato, um ressuscitar-se

eu que sou, às 3:00 da manhã, a única janela acesa
que me intoxico de deus
que perdi a identidade, o ônibus, a graça
e os sisos e
o bilhete premiado e o fio de ariadne
a lembrança do inferno e do paraíso

eu que volto para casa sangrando
como quem assobiasse

que faço parelhas aos afogados
que sempre quis ser o poeta de troia
o poeta da boca de fumo, o poeta de porta de cadeia
o poeta dos obituários, o poeta oficial das alvoradas
o poeta oficial da vila hauer
e que, ao fim, não sou poeta oficial
nem de mim mesmo

eu que toco trombone 
dentro de uma piscina vazia
eu que tenho queimaduras de terceiro grau
por dentro
que cato os rebotalhos da cultura materialista
e reciclo
do jeito que dá e não dá
e junco de esperança todos
os impedimentos

eu, exilado do país infinito
que manipulo venenos, que enlouqueço sozinho
que subo a montanha
como um profeta que engolisse a língua
eu que escovo os dentes
com chuva e maçarico

eu, meu corpo
que tenho a espessura da vida
e o tamanho exato
de meu cadáver

eu 
coluna de fumaça
espelho quando mente
ferragem retorcida
rosto em branco (como um edifício ou um anjo
transitório)
minha cara inconfundível

uma palavra
(r
el
âm
pa
g
     o) que não acaba nunca
                 
           
           
(pássaro ruim, 2009)

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

aulas de solidão

         
A visão de uma carne infinita é a visão dos loucos, mas se eu cortar a carne em pedaços e distribuí-los pelos dias e pelas fomes  então ela não será mais a perdição e a loucura: será de novo a vida humanizada.

                                                  CLARICE LISPECTOR (A paixão segundo G.H.)
                                                             

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

julio cortázar


Instruções para dar corda no relógio
              
     
Lá no fundo está a morte, mas não tenha medo. Agarre o relógio com uma das mãos, pegue com dois dedos o pino da corda, eleve-o suavemente. Agora se abre outro prazo, as árvores desprendem suas folhas, os barcos correm regatas, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.
Que mais você quer, que mais você quer? Prenda-o depressa no seu pulso, deixe-o bater com liberdade, imite-o ofegante. O medo enferruja as âncoras, cada coisa que se pôde alcançar e foi esquecida vai corroendo as veias do relógio, gangrenando o sangue frio de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a morte se não corremos e chegamos antes e compreendemos que já não importa.

***

Relógios
      
                                         
Um fama tinha um relógio de parede e todas as semanas lhe dava corda COM GRANDE CUIDADO. Um cronópio passou e ao vê-lo começou a rir, foi a sua casa e inventou o relógio-alcachofa ou alcachofra, que de uma e outra maneira se pode e se deve dizer.
O relógio alcachofra deste cronópio é uma alcachofra da grande espécie, preso pelo talo em um buraco da parede. As inumeráveis folhas da alcachofra marcam a hora presente e ademais todas as horas, de modo que o cronópio não faz mais que arrancar uma folha e já sabe uma hora. Como vai arrancando-as da esquerda para a direita, sempre a folha da hora exata, a cada dia o cronópio começa a arrancar uma nova sequência de folhas. Ao chegar ao coração, já não se pode medir o tempo, e na infinita rosa violeta do centro, o cronópio encontra uma grande satisfação, então ele a come com azeite, vinagre e sal, e põe outro relógio no buraco.        
                                                                                    
tradução: r.m. 
         
[CORTÁZAR, Julio. Historias de cronopios y de famas. Buenos Aires: Ed. punto de lectura, 2003. p. 29 e 134.]    

terça-feira, 14 de agosto de 2012

é hoje!

                                


QUANTO TEMPO DURA UM POEMA?

  
Quanto tempo dura um poema?

O tempo do olho
sobre a página?
O tempo do corpo
vida afora?
O tempo da pátina
na memória?
  
Quanto tempo dura um poema?
  
Este poema.
  
Este,
que você lê agora.

     
MARCELO SANDMANN 

[SANDMANN, Marcelo. Lírico Renitente. Rio de Janeiro: 7Letras, 2000.]

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Fragmentos

                                                 
                                           
black spot I (mancha preta I), wassily kandinsky



I
            
Só o ego de um psicopata é maior que o ego de um artista. 
No entanto, outro dia mesmo, vendo na TV um programa sobre a origem do universo, o poeta tomou mais uma de muitas porradas pedagógicas. Dizia Alex Filippenko, astrofísico da Universidade de Berkeley: Como é pequeno o pedaço da História que de fato ocupamos! Para simplificar isso, imagine comprimir 14 bilhões de anos de História do Universo em 14 anos. Nessa escala, a Terra teria existido somente nos últimos cinco anos. De maneira que, em 1/3 da História do Universo, as grandes criaturas teriam se desenvolvido há apenas sete meses. Nessa escala, os dinossauros teriam se extinguido há apenas três semanas. Toda a História registrada dos seres humanos teria começado há apenas três minutos. As sociedades industriais modernas, nos últimos seis segundos. 
Se é uma doída, mas saudabilíssima, paulada na mesquinha e autoatribuída importância da espécie, o que dizer de nosso infinitesimalmente mais mesquinho narcisismo individual? 
Como não lembrar os versinhos de Stephen Crane? A man said to the universe:/ “Sir I exist!”/ “However”, replied the universe,/ “The fact has not created in me/ A sense of obligation.”
                  
* (Algo como: Um homem falou para o universo:/ “Hei, eu existo!”/ “No entanto”, redarguiu o universo,/ “Este fato não provoca em mim/ o menor senso de responsabilidade.”) 
         
                                           
II
                           
E partindo desse pressuposto, partindo de que somos já de saída insignificantes, no entanto chegamos a extraordinários. 
Somos capazes de pensar a morte, não somos? De povoar a morte, de reinventar a vida. De viver eternidades. A alma, cheia de máculas e pesadelos, ao mesmo tempo rasgou-se no fundilho. Somos trágicos e banais, metafísicos e cotidianos, graves e ridículos. Diante do fim, talvez rebente-nos dos pulmões um soluço e uma apóstrofe: Vermes, deixem-me ser eterno! 
Como diz meu irmão Dom Pozzo: Tá branco, tá brancoA gente até que é saudável, mas sofre de humanidade. Pouco importa que desejemos medir e mentir, medir e manipulá-lo. 
Desde os sumérios, dividimos o Tempo em blocos de 12. Desde antes, o homem se divide em projeções e memórias afetivas. O homem encilha o tempo, doma o tempo em quadrantes, ampulhetas e poliuretanos. Cavalga o tempo.  
E cai do cavalo.

         
III
                             
Veja como são as coisas: escorrendo pelo Visconde de Nácar, pensei sem mais algo banal e inútil, incapaz sequer de desdobrar-se num poema ruinzinho.
Como aquilo me causou alegria e perplexidade gratuitas! (Sim, até a perplexidade pode ser gratuita.) Veja bem, não me fará diferença alguma. Muito menos a você, escassíssimo leitor. Algo que não nos levará a nada; levaria no máximo, de vento em vento, guardanapos, folhas secas, papéis de pão, uma sacola plástica...
(Desculpe, lá vou eu de novo, um vira-lata divagando. Voltemos à sarna que solicita as unhas...).
Escorrendo apressado pela Visconde de Nácar, pensei algo banal e inútil, e pensá-lo era sentir-me o dono de um cachorro sem dono, era ser de novo um menino, a imaginação esfolada. Às vezes pouco é melhor do que nada, às vezes pouco é melhor do que tudo. Pensei simplesmente, e a ideia, de dentro pra fora, ia refrescando meu rosto:
                                                                                                         
                                       o vento é uma máquina vazia 
                                                                                                                   
Pode crer! Mais gratuito do que jamais fui grave, pensar “o vento é uma máquina vazia” me fez, por alguns instantes, eterno entre. (Li esse baita achado num livro de poemas do Maurício Arruda Mendonça.) Entreterno. 
Depois, é claro, voltei a ser premeditado. Segui àquele lugar aonde eu ia: imprescindível, inadiável, respeitabilíssimo. Aquele lugar que eu já nem lembro.
                       
                             
IV
       
A eternidade, no presente, é uma sensação indivisível, flor que tem num só instante raízes neste, em todos, em nenhum momento; mero abre-e-fecha de parênteses (entre as tais coisas inadiáveis da vida), mas parênteses inesquecíveis... 
Ou será que já estou mentindo?  Talvez a eternidade no presente sequer exista. Quem sabe seja coisa de se conjugar somente no passado; mais precisamente, no pretérito imperfeito do subjetivo: a eternidade era um colibri bebendo o açúcar dos relógios.  
E mesmo assim, porque somos apaixonados e temperamentais, a coisa toda, o vívido vivido, parece suspenso fora do tempo pelos fios de meus e teus cabelos. 
Talvez por isso aquele menino com o rosto cheio de ranho e terra me dissesse: 
–  É assim mesmo, tio, matando o tempo eu consigo ser eterno! 
E há também o que dizia ao menino a mãe dentro da tarde chuvosa. Dizia-me, com um sabor poético tacanho e inesperado, que também fica eterno o que se esquece. Ela me disse: O que a gente esquece, meu filho, aumenta a memória de Deus!  

                 
V
                   
Tateando cego as paredes do meu espanto (e quem garante não ser a alça da gaveta o trinco de uma porta que eu abro?), cheguei por fim a uma sentença: a eternidade, também ela feita de tempo – e apenas tempo –, não é o bom e velho sempre; a eternidade é um jamais
Ah!, meu irmão, isso não dá o mesmo barato de pensar, enquanto sinto o vento em meu rosto, “o vento é uma máquina vazia”. A razão não funciona como o pensamento aleatório e vacuifeito. A razão me deixa mastigando esta bola de farinha difícil engolir. 
O vento é uma máquina vazia. A gente mesmo uma máquina vazia, uma cigarra vazia, oca, quando enfim se cantar inteira. (Lembra do Bashô?)
Mas e o tempo,
                                    o que é o que é?
           
                                                                                                                                                       
VI

Quando eu era moleque, ganhei um relógio despertador de uma tia distante. Fiquei curioso. Sempre quis entender o Tempo. E lá fui eu: abri o relógio e removi cada engrenagem, cada pecinha. Tirando-as uma a uma – e tirando também o invólucro do mecanismo – não sobrou nada. Absolutamente nada. Aquilo me deixou abismado. Hoje eu mais ou menos entendo que justamente esse nada que sobra é o Tempo. O mesmo nada que, sabe-se lá de onde, vem forjando e enferrujando a gente.
                                         
       
VII
                                                                                   
Chega de conversa fiada. Tá na hora de quebrar a esquina. Passei seis meses de bobeira, de teimoso, referindo o tempo. Minha incompreensão permanece intacta. Tudo o que faço – tudo o que os líricos fazemos – é brincar com a incompreensão e o espanto enquanto há tempo. Enquanto houver tempo.
Um pouco de personificação nunca fez mal à poesia. Por que então não dar ao Tempo um rosto e um par de pernas? De modo que, para terminar: pensemos no Tempo como num velho vigoroso e mal-educado descendo a rua XV. Imaginem, a título de exemplo apenas, Dalton Trevisan descendo a rua XV.
O que se dá quando nos topamos, quando o reconhecemos? Nada. O Tempo atravessa-nos como se fôssemos invisíveis. Passa por nós na rua, na casa, no bar, no trabalho, no amor, no sono e na insônia. Não responde a apelos e cumprimentos, não se detém sequer um instante, sequer um leve giro de cabeça a reconhecer-nos ou desprezar-nos.  
Entende o Tempo que estamos já mortos? Somos os tais cadáveres adiados, coçando-nos, amando, procriando? Será que foge de nós (Tempus fugit), seus fantasmas, com medo ou remorso?
Talvez, pelo contrário, seja que tenhamos todos o mesmo rosto, indistinguíveis, como para nós têm o mesmo rosto todas as moscas deste mundo, como para nós é a mesma suas biografias de três semanas. Pouco se lhe dá ver-nos, jovens ou velhos, gênios ou idiotas, nus ou vestidos, bonitos ou feios, com uma faca ou um ramo de flores na mão direita.
Ou é porque você marcha, ó Tempo, atarefado, pontualíssimo? É, você mesmo, Tempo! Marcha para encontrar-nos – dali a anos, amanhã logo cedo? Marcha para encontrar-nos definitivamente, uma faca ou um ramo de flores em sua mão direita, numa outra esquina?

terça-feira, 7 de agosto de 2012

p. leminski


SINTONIA PARA PRESSA E PRESSÁGIO

                     
        Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
        na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
       Sôo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
       do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
      que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.
   
       Eis a voz, eis o deus, eis a fala,
eis que a luz se acendeu na casa
      e não cabe mais na sala.

                             
                        PAULO LEMINSKI

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

               
madalena penitente, caravaggio (1596)      


















Moça, dobre as mangas do tempo

                                              WANDO

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

jorge luis borges (II)

                                                                     

           
RELÓGIO DE AREIA


Tudo bem que se meça com a dura
Sombra que uma coluna em pleno estio
Projeta ou com as águas que há no rio
Em que Heráclito viu nossa loucura.

O tempo, já que ao tempo e à própria sorte
Se parecem os dois: a imponderável
Sombra que é diurna e o curso irrevogável
Das águas que se lançam em seu norte.

Tudo bem, mas o tempo nos desertos
Outra substância achou, pesada e vento,
Imaginada pra medir o tempo
Dos que já mortos não estão por perto.

Surge assim o alegórico instrumento
Dessas gravuras que há nos dicionários,
A peça que esses grises antiquários
Relegarão ao mundo então cinzento.

Do desemparelhado bispo, e a espada
Inerme, do confuso telescópio,
Do sândalo se o morde o incenso do ópio,
E da poeira, do azar, do próprio nada.

Quem não se demorou diante do hostil
E severo instrumento que acompanha
Na destra mão do deus uma gadanha,
E cujas linhas Dürer repetiu?

Por um ápice entreaberto o cone inverso
Deixa vazar a cautelosa areia,
O ouro que aos poucos vai deixando cheia
A âmbula de cristal, seu universo.

É agradável ficar olhando a arcana
Areia descendente que escorrega
E apinha-se já próxima da queda
Com sua pressa inteiramente humana.
          
É a mesma a areia em ciclos, impassível,
A história das areias é infinita;
Assim, haja alegrias ou desditas,
A eternidade abisma-se invencível.

Não se detém jamais sua descida;
Sou eu, não o cristal, que sangra. O rito
De decantar areias é infinito
E com a areia vai-se a nossa vida.

Nos minutos da areia eu acredito
Sentir o tempo cósmico, ou a história
Que enjaula em seus espelhos a memória
Ou que dissolve o Letes inaudito.

O pilar da fumaça e o do carvão,
Cartago e Roma na difícil guerra,
Simão, o Mago, os sete pés de terra
Que oferta ao norueguês o rei saxão,

A tudo arrasta e perde este incansável
Sutil e fino fio da areia muita.  
Não hei de me salvar, coisa gratuita,
De tempo, que é matéria degradável.


tradução: rodrigo madeira 

terça-feira, 31 de julho de 2012

é hoje!

                        
   
O TEMPO

O tempo só anda de ida.
A gente nasce, cresce, envelhece e morre.
Para não morrer eis a ciência da poesia:
Amarrar o Tempo no poste!
E respondo mais: dia que estiver com tédio de viver
é só desamarrar o Tempo do poste!

     
MANOEL DE BARROS

domingo, 29 de julho de 2012

ricardo reis

                                 
arte de costa pinheiro                        














Uns, com os olhos postos no passado,
Veem o que não veem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, veem
O que não pode ver-se.

Porque tão longe ir pôr o que está perto –
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.

                               
                          RICARDO REIS

quinta-feira, 26 de julho de 2012

santo agostinho

        
14. O conceito de tempo
                                                 
[...]
      
O que é realmente o tempo? Quem poderia explicá-lo de modo fácil e breve? Quem poderia captar o seu conceito, para exprimi-lo em palavras? No entanto, que assunto mais familiar e mais conhecido em nossas conversações? Sem dúvida, nós o compreendemos quando dele falamos, e compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. Por conseguinte, o que é o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; porém, se quero explicá-lo a quem me pergunta, então não sei. No entanto, posso dizer com segurança que não existiria um tempo passado, se nada passasse; e não existiria um tempo futuro, se nada devesse vir; e não haveria o tempo presente se nada existisse. De que modo existem esses dois tempos – passado e futuro , uma vez que o passado não mais existe e o futuro ainda não existe? E quanto ao presente, se permanecesse sempre presente e não se tornasse passado, não seria mais tempo, mas eternidade. Portanto se o presente, para ser tempo, deve tornar-se passado, como podemos dizer que existe, uma vez que a sua razão de ser é a mesma pela qual deixará de existir? Daí não podermos falar verdadeiramente da existência do tempo, senão enquanto tende a não existir.
   
           
20. Só de maneira imprópria se fala de passado, presente e futuro


Agora está claro e evidente para mim que o futuro e o passado não existem, e que não é exato falar de três tempos  passado, presente e futuro. Seria talvez mais justo dizer que os tempos são três, isto é, o presente dos fatos passados, o presente dos fatos presentes, o presente dos fatos futuros. E estes três tempos estão na mente e não os vejo em outro lugar. O presente do passado é a memória. O presente do presente é a visão. O presente do futuro é a espera. Se me é permitido falar assim, direi que vejo e admito três tempos, e três tempos existem. Diga-se mesmo que há três tempos: passado, presente e futuro, conforme a expressão abusiva em uso. Admito que se diga assim. Não me importo, não me oponho nem critico tal uso, contanto que se entenda: o futuro não existe agora, nem o passado. Raramente se fala com exatidão. O mais das vezes falamos impropriamente, mas entende-se o que queremos dizer.
                                                                       
                                               
SANTO AGOSTINHO  
("Confissões"  trad. Maria Luiza Jardim Amarante.  São Paulo: Paulus, 1984.)

quarta-feira, 25 de julho de 2012

* surrupiado do blog acontecimentos
             
                                          
O mundo de Dante era finito e por isso pôde traçar a geografia do inferno, do purgatório e do paraíso. Mas esse mundo limitado era eterno: os homens estavam destinados a viver pelos séculos dos séculos e, depois do Juízo Final, sem experimentar mudança alguma. A eternidade dissipa o tempo e a sucessão. Seremos para sempre o que somos. Nisso consiste a diferença radical entre o mundo medieval e o moderno. O cristão medieval vivia num espaço finito e estava destinado à eternidade dos bem-aventurados ou dos réprobos; nós vivemos num universo infinito e estamos destinados a desaparecer para sempre. Nossa condição é trágica num sentido que nem os pagãos da Antiguidade nem os cristãos da Idade Média suspeitaram.  
                                                                                                               

                                                  OCTAVIO PAZ
                                                      
[PAZ, Octavio. "Poesía y modernidad". In:_____. La otra voz. Poesía y fin de siglo. Barcelona: Seix Barral, 1990.]

segunda-feira, 23 de julho de 2012

octavio paz (II)

              
QUARTO DE HOTEL


I

À luz cinzenta das reminiscências
que anelam redimir o já vivido,
é que arde o ontem fantasma. E então sou este
que dança aos pés das árvores, delira
com nuvens que são corpos que são ondas,
com corpos que são nuvens que são praias?
Eu sou alguém que toca e canta as águas,
a nuvem e voa, a árvore e sem folhas,
um corpo e se levanta e que contesta?
Arde o tempo fantasma:
o ontem arde, o hoje queima-se e o amanhã.
Aquilo que eu sonhei dura um minuto
e num minuto apenas, o vivido.
Que importam se são eras ou minutos?
Também o tempo de uma estrela é tempo,
gota de sangue ou fogos: piscar de olhos.


II

Lava o meu rosto com suas mãos frias
o rio do que passou, suas memórias
correm sob minhas pálpebras de pedra.
Não se detém jamais sua corrente
e eu, a partir de mim, sou eu que o verto.
É de mim que urge o passado?
Corro com ele e aquele que o verte
é apenas uma sombra, e me finge, oca?
Talvez ele nem corra: ao que eu me afasto,
sequer me segue, alheio, consumado.
E quem já fui estaca na ribeira.
Não se recorda nunca, não me busca,
não me contempla e nem de mim despede-se:
contempla, busca um outro fugitivo.
Um outro que no entanto não se lembra.


III

Nem antes nem depois. O que eu vivi
será que ainda o estou vivendo agora?
O que eu vivi! E acaso eu fui? E flui:
o que eu vivi estou morrendo ainda.
O tempo não tem fim e finge lábios,
minutos, morte, céus, e finge infernos,
portas que dão no nada e ninguém cruza.
Não há fim, nem paraíso, nem domingo.
Não nos aguarda Deus finda a semana.
Dorme, não o despertam nossos gritos.
É apenas o silêncio que o desperta.
Quando tudo se cale e já não cantem
os sangues, os relógios, as estrelas,
Deus abrirá seus olhos
e ao reino de seu nada voltaremos.

            
tradução: rodrigo madeira
                                   
poema no original

sexta-feira, 20 de julho de 2012

               

















     
MORALIZA O POETA NOS
OCIDENTES DO SOL A INCONSTÂNCIA
DOS BENS DO MUNDO
                                                                                           
                         
Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.
                    
Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?
                
Mas no sol, e na luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.
                             
Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.


                            GREGÓRIO DE MATTOS GUERRA

terça-feira, 17 de julho de 2012

segunda-feira, 16 de julho de 2012

bowie

                
 NÃO COMPRE RELÓGIOS NOS EUA!/ OU DANE-SE 
LACTA!/ ETC (clique rápido no "x" do maldito anúncio)      



TIME MAY CHANGE ME
BUT I CAN´T TRACE TIME

domingo, 15 de julho de 2012

aulas de solidão (13)

*(dos poetas e seus leitores)
                        
     
Só o tempo, com o tempo, se o tempo quiser.
                   

quarta-feira, 11 de julho de 2012

reloj'aria



                                                                        arte de andy warhol
                       

3.

impressionante sua pressa
de eternidade: nada dura
tanto, a ponto (o que nasce ou cessa)
de eterno que paira e perdura.

o que fica respira e finda:
restar também é ser medido
(escoar-se, deixar de ser)
por vão, metódico, insensível,

ponte-safena no infinito,
relógio de parede que
(sob o solo ou sob o sol: EX

sob o solo ou sob o sol: VIDA),
mesmo ao que ainda irá viver,
cante a contagem regressiva.
           

terça-feira, 10 de julho de 2012

é hoje!
























Corroendo
As grandes escadas
Da minha alma.
Água. Como te chamas?
Tempo.

Vívida antes
Revestida de laca
Minha alma tosca
Se desfazendo.
Como te chamas?
Tempo.

Águas corroendo
Caras, coração
Todas as cordas do sentimento.
Como te chamas?
Tempo.

Irreconhecível
Me procuro lenta
Nos teus escuros.
Como te chamas, breu?
Tempo.

        
             HILDA HILST 
             (Da morte. "Odes mínimas". São Paulo: Globo, 2003.)

quinta-feira, 28 de junho de 2012

                    
uma perplexidade


vejo um relógio no espelho:
fecham-se na carne como
a tesoura, abrem-se como
tuas pernas os ponteiros.


*

uma dúvida      


a tudo atento o tempo
ouve e lembra, concha toda ouvidos
                  ?

ou esta concha (o tempo)
nos ouve apenas com seus olvidos
                  ?
                 

terça-feira, 26 de junho de 2012

guillaume apollinaire

     
                      
              
A gravata e o relógio

         
(a gravata)
       
A GRAVATA dolorosa que vestes e te orna ó civilizado arranca-a se quiseres respirar
             
                            
(a coroa do relógio)

COMO A GENTE SE DIVERTE!

(o relógio no sentido horário)  

as horas/ Meu coração/ os olhos/ a criança/ Agla*/ a mão/ Borboleta-loba/ semana/ o infinito esclarecido por um filósofo louco/ as Musas às portas de teu corpo/ a bela incógnita/ e o dantesco verso brilhante e cadavérico/ as horas
                                       
"Agla" é um acrônimo cabalístico: atah gibor le-olam adonai! (vós, deus, sois poderoso para sempre!)     

(segunda volta)

A beleza da vida excede a dor de morrer 

(ponteiros)

Faltam cinco minutos enfim/ E tudo chegará ao fim
                                   
                 
tradução descaligramizada: r.m.

domingo, 24 de junho de 2012

                                     

(laerte)
                                                                            
        
O mais feroz dos animais domésticos é o relógio de parede. Conheço um que já devorou três gerações da minha família. (mário quintana)

quinta-feira, 21 de junho de 2012

frank o'hara/ trad. rodrigo garcia lopes

                     


* poema surrupiado do blog estúdio realidade

  
RELATO VERDADEIRO DE UMA CONVERSA COM O SOL EM FIRE ISLAND
    

O Sol me acordou esta manhã em alto
E bom som, "Ei! Há quinze minutos
estou tentando te acordar.
Não seja grosso, você é só o segundo poeta
Que escolhi pra falar tão pessoalmente
então
por que você não é mais atencioso? Se eu pudesse
te queimar pela janela eu te faria
levantar. Não posso ficar na área
O dia todo".
"Desculpa, sol, fiquei
acordado até tarde falando com Hal".

"Quando acordei o Maiakóvski ele foi
bem mais pontual", disse o Sol
com petulância. "A maioria das pessoas
já acordam querendo ver se vou
dar o ar da minha graça".
Tentei
me desculpar "Senti sua falta, ontem".
"Ah, está melhorando", o Sol falou. "Achei
que você não viria aqui fora" "Você deve
estar pensando porque cheguei juntinho assim"?
"É", eu disse, já começando a ficar todo quente
pensando se ele não estaria metendo fogo em mim
no fim das contas.
"Sendo franco, ô cara, queria dizer que
gosto da sua poesia. Vejo um monte
de coisas por aí e você até que não é mal. Pode não ser
a coisa mais importante sobre a terra, mas
você é diferente. Agora, já ouvi as pessoas dizerem
que você é maluco, eles sendo excessivamente
tranqüilos pro meu gosto, e outros poetas loucos te acham
um chato reaça. Eu não.
Continue mandando ver.

Faça como eu e não dê bola. Você vai perceber
que as pessoas sempre reclamam
do clima, sempre está quente ou frio
demais, escuro ou claro demais, dias
curtos ou longos demais.
Se você fica sem aparecer um dia
já acham que você é preguiçoso ou já morreu.
Continue nesse pique, eu curto.

E não se preocupe com sua linhagem
poética ou natural. O Sol brilha sobre
a selva, tá ligado?, sobre a tundra,
o mar, o gueto. Onde estivesse você
eu já sabia e via você se movendo. Estava te esperando
pra começar a trabalhar.

E agora que você
está tirando os dias pra si, digamos,
mesmo que ninguém te leia a não ser eu,
não precisa ficar deprimido. Nem todo mundo
é capaz de olhar pra cima, nem mesmo pra mim. Machuca
Os olhos deles".
"Ai ai, Sol, estou tão agradecido!"
"Não há de quê e lembre-se que estou de olho. Pra mim é
mais fácil conversar daqui de
fora. Não sou obrigado a deslizar entre os prédios
até seu ouvido.
Sei do seu amor por Manhattan, mas
você devia olhar pra mim mais vezes.
E
sempre abrace as coisas, pessoas a terra céu
estrelas, como eu, livremente e com
um conveniente senso de espaço. Essa é sua
inclinação, conhecida no céu
e que você seguiria até o inferno, se
preciso, o que eu duvido.

Talvez nos falemos
na África, que eu também gosto
especialmente. Agora volte e durma,
Frank, e que eu possa deixar de despedida
um poeminha nessa sua cabeça".

"Sol, não vai não!", eu acordei
enfim. "Não, preciso ir, eles estão
me chamando".
"Eles quem?"
O Sol se ergueu e disse "Um

dia desses você vai saber. Estão te chamando
também". Sombrio, o sol se levantou, e adormeci.
       
                  
tradução: rodrigo garcia lopes