segunda-feira, 10 de outubro de 2011
paulo henriques britto
CREPUSCULAR
2.
Chegamos tarde, é claro. Como todos.
Chegamos tarde, e nosso tempo é pouco,
o tempo exato de dizer: é tarde.
Todas as sílabas imagináveis
soaram. Nada ficou por cantar,
nem mesmo o não-ter-mais-o-que-cantar,
o não-poder-cantar, já tão cantado
que se estiolou no infinito banal
de espelhos frente a frente a refletir-se,
restando da palavra só o resumo
da pálida intenção, indisfarçada,
de não dizer, dizendo, coisa alguma.
5.
Toda palavra já foi dita. Isso é
sabido. E há que ser dita outra vez.
E outra. E cada vez é outra. E a mesma.
Nenhum de nós vai reinventar a roda.
E no entanto cada um a re-
inventa, para si. E roda. E canta.
Chegamos muito tarde, e não provamos
o doce absinto e ópio dos começos.
E no entanto, chegada a nossa vez,
recomeçamos. Palavras tardias,
mas com vertiginosa lucidez –
o ácido saber de nossos dias.
6.
No fim de tudo, restam as palavras.
Na solidão do corpo, no saber-se
apenas pasto para o esquecimento,
há sempre a semente de alguma ilíada
mínima, promessa de permanência
no mármore etéreo de uma sílaba,
mesmo sendo mero sopro, captado
na frágil arquitetura do papel,
alvenaria de ar. Restará
a palavra que deixarmos no fim da
nossa história. Que a julguem os outros,
que chegarão depois. Mais tarde ainda.
* três das seis partes do poema CREPUSCULAR (BRITTO, paulo henriques. tarde. são paulo: companhia das letras, 2007).
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