quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

A Morte e o Beduíno

                                                            
       Não sou dos que veem no deserto um portal entre o céu e o homem, entre o inferno e o homem, embora ninguém duvide de que se trata do mais dramático e importante "teatro de religiões". A coisa me parece bem menos grandiosa; tenho fé em que seja bem mais simples e difícil e solitária: o deserto, imensa pátria baldia, é somente um portal entre o homem e sua morte.
    Seríamos deuses se não morrêssemos; não haveria necessidade de criá-los. (Afinal, como bem disse Amós Oz, Deus nunca acreditou em religiões.) Atravessaríamos o deserto como quem vai entre árvores frutíferas e jasmineiros.
      E se eu dissesse que o deserto é o mar que perdeu tudo, que perdeu rigorosamente tudo senão a fome feroz da existência, estaria falando de um outro deserto que é a alma humana. E estamos sempre falando de um outro deserto que é a alma humana. 
     Por isso, paupérrimos, mesquinhos, os desertos são de tal maneira luxuriantes. Não existe espaço alegórico melhor, melhor geografia afetiva para nossa condição banal e extrema: quem pisa o deserto é de imediato um moribundo – não há quem pise o deserto sem que caminhe, durma e ame à beira da morte, debaixo de um céu belíssimo e indiferente.
     Digo isso tudo para dizer o contrário: mas, quando imaginação e memória são sinônimos perfeitos, tudo pode ser rápida e incoerentemente, como que por ventos contra-alísios, posto do avesso. Um exemplo? Vejamos a antiquíssima fábula árabe que inventei agora:
     
   Tempo mítico, a areia emperrando o mecanismo do relógio, veio a Morte em missão ao deserto da Líbia. Buscava um certo beduíno, pouquíssimo visto, esquivo, imortal nos rumores. Por três anos e três noites (na medida arbitrária da eternidade), a Morte rastreou e farejou-o. Leu pegadas, deteve as caravanas, comeu carne de cobra e gafanhotos, bebeu água de cacto, cuspiu areia, espreitou semanas em oásis, chamou-o pelo nome...
     
     As crianças tuaregues cantavam nas travessias
                                                                                   
                                                                                    – a Morte te alcança
                                                                                       imortal beduíno
                                                                                       sob a luz da lua
                                                                                       sob o sol a pino –
                                                                                                         
                                                                                                               os versículos de um arpoador de estrelas.

        Jamais conseguiu alcançá-lo, nunca chegou a menos de duas ou três horas de distância. Ainda assim, seu olhar agudo viu-lhe rebrilhando, quilômetros à frente nos gigantescos bancos arenosos, o alfanje prateado. De tão longe e perto, a Morte, al-quebrada, às vezes tomou por vésper ou farol o brilho daquela lâmina. 
       A insolação por fim começou a enlouquecê-la. Dizem ainda que a areia é capaz de amontoar-se, frestas microscópicas adentro, na caixa craniana, na cava das órbitas, e parir um escorpião minúsculo que arruína a visão e empeçonha o juízo. A Morte, derrotada, sentou-se nas areias, sorriu idiota para a lua. Ficou ali, abandonada, agudamente viva, latejando. E agora passa os dias, entre as dunas do deserto, com uns modos ridículos de gaivota...
     
        
*

Em tempo. A imortalidade também tem lá suas caducidades. Suponho que a esta altura o tal beduíno já esteja morto; morte de outra qualidade, diga-se, debaixo do mesmo céu belíssimo e indiferente: arquetípica, encenada – um suicídio? –, de cujas minúcias e conclusão sabe-se apenas que não restam ossos.
Os mais exaltados, no entanto, juram que sempre fora e será o Vento. O vento vestido, sua carne mais fina que a cambraia mais fina. O vento. Túnica e turbante vazios flamulando no lombo de um cavalo.

                                 

Um comentário:

  1. [...o deserto é o mar que perdeu tudo...]

    ótimo texto, dom madeira!

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