sábado, 29 de setembro de 2012

notícias de são paulo

                                        
GERALDO DE BARROS, s/ título (1948)

    

QUERIDA E HORROROSA CIDADE


                                                 por ANTONIO PRATA


Às vezes acontece de criticarem um amigo e eu não poder discordar: é verdade, ele tem mesmo tais e tais defeitos. Nada do que disserem, contudo, mudará meus sentimentos ou a nossa relação. Afinal, laços de amizade não são criados a partir de uma planilha do Excel, onde analisamos os prós e os contras da pessoa para, então, decidir nos aproximar; nascem de acasos e necessidades mais difusas que, geralmente, já se perderam no passado. O sujeito pode ter mais falhas que a defesa do Íbis, mas há dez anos vocês jogam pôquer semanalmente, já passaram alguns Réveillons juntos e quando aquela "stronza" te deu um pé na bunda, na madrugada de uma remota terça-feira, ele apareceu no seu apartamento meia hora mais tarde, com uma garrafa de Seleta numa mão e um disco do Tom Waits na outra.
Tais ruminações me acompanham desde domingo, quando participei de um programa de rádio sobre o aniversário de SP e me dei conta de que viver aqui é como amar o amigo calhorda. Claro, a cidade tem muitas qualidades, que tentei enumerar no bate-papo, mas quanto mais falava em "programação cultural", "vida noturna" e "restaurantes", mais hipócrita me sentia: é impossível negar que nossos defeitos superam, em muito, nossas virtudes.
Uma Virada Cultural por ano não pode competir com um motoboy morto por dia e nem todos os impressionistas reunidos no Masp serviriam de tapume para nossa feiura. Aqui, a falência do urbanismo está tanto na pobreza  os mares de lajes batidas  quanto na riqueza  os espigões com colunas jônicas  homenagem ao glorioso império-românico-ultramarino que, como todos sabem, precedeu a chegada dos Tupis-Guaranis?
São Paulo é violenta, arisca, injusta. O único momento em que vislumbramos uma sociedade igualitária é na hora do rush: todo mundo parado, respirando o mesmo monóxido de carbono. A cidade não existe como um espaço comum: é a distância que nos separa, uma ausência ou, então, um obstáculo. No entanto, gostamos dela. Por quê?
Só entendi o óbvio ululante quando minha colega Barbara Gancia, que também participava do programa de rádio, tomou o microfone e, fugindo do meu clichê de "vida noturna & programação cultural", foi direto ao ponto: "São Paulo é onde estão as pessoas que eu amo: minha família, meus amigos, meus colegas de trabalho". Simples assim.
Falemos o que for sobre esta metrópole banguela, mas é aqui que nascemos ou para cá nos mudamos, aqui nos apaixonamos, levamos pés na bunda e somos consolados. É o contrário daquela piada em que Deus termina de fazer o Brasil, irretocável em suas belezas naturais, e diz: "Agora espera só pra ver o povinho que eu vou botar lá". Não somos o paraíso mal frequentado, mas um inferno cheio de pessoas queridas.
(...)
Feliz aniversário, minha querida e horrorosa cidade.

                                                                                                        
(Folha de S.Paulo, 25 de janeiro de 2012)         

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

joão cabral de melo neto

       
PIET MONDRIAN, composição C (no. III), 
com vermelho, amarelo e azul (1930)



NO CENTENÁRIO DE MONDRIAN

2 OU 1

Quando a alma se dispersa
em todas as mil coisas
do enredado e prolixo
do mundo à sua volta,

ou quando se dissolve
nas modorras da música,
no invertebrado vago,
sem ossos, de água em fuga,

ou quando se empantana
num alcalino demais
que adorne o ácido vivo
que rói porém que faz,

ou quando a alma borracha
tem os músculos lassos
e é incapaz de molas
para atirar-se ao faço:

então, só essa pintura
de que foste capaz,
de que excluíste até
o nada, por demais,

e onde só conservaste
o léxico conciso
de teus perfis quadrados
a fio, e também fios,

pois que, por bem cortados,
ficam cortantes ainda
e herdam a agudeza
dos fios que os confinam,

então, só essa pintura
de cores em voz alta,
cores em linha reta,
despidas, cores brasa,

só tua pintura clara,
de clara construção,
desse construir claro
feito a partir do não,

pintura em que ensinaste
a moral pela vista
(deixando o pulso manso
dar mais tensão à vida),

só essa pintura pode,
com sua explosão fria,
incitar a alma murcha,
de indiferença ou acídia,

e lançar ao fazer
a alma de mãos caídas,
e ao fazer-se, fazendo
coisas que a desafiam.


                           J. CABRAL

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

murilo mendes

                   
joan miró, arlequim (1925)  

JOAN MIRÓ


Soltas a sigla, o pássaro e o losango.
Também sabes deixar em liberdade
O roxo, qualquer azul e o vermelho.
Todas as cores podem aproximar-se
Quando um menino as conduz no sol
E cria fosforescência:
A ordem que se desintegra
Forma outra ordem ajuntada
Ao real – este obscuro mito.

             
                              MURILO MENDES

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

murilo mendes

             
picasso, touro - litogravura VI (1945)

           
PICASSO

Quem pega a vida à unha como tu?
Só mesmo Espanha, tua mãe e mestra.
Paris formou o espaço da tua técnica,
Mas Espanha te deu o estilo de contrastes,
O gosto de regressar ao centro do problema,
De investigar a matéria da vida
E atingir o osso:
Construindo e destruindo ao mesmo tempo.


                              MURILO MENDES

joão cabral de melo neto

                                                   
picasso, autorretrato (1907)


HOMENAGEM A PICASSO

O esquadro disfarça o eclipse
que os homens não querem ver.
Não há música aparentemente
nos violinos fechados.
Apenas os recortes dos jornais diários
acenam para mim como o juízo final.

                                     
                                  J. CABRAL

sábado, 22 de setembro de 2012

gertrude stein



pablo picasso, retrato de gertrude stein (1905-06)


       
SE EU LHE DISSESSE 

Um Retrato Acabado de Picasso 

 
Se eu lhe dissesse será que gostaria. Será que gostaria se eu lhe dissesse.
Será que ele gostaria será que Napoleão será que Napoleão será será que ele gostaria.
Se Napoleão se eu lhe dissesse se eu lhe dissesse se Napoleão. Será que gostaria se eu lhe dissesse se eu lhe dissesse se Napoleão. Será que gostaria se Napoleão se Napoleão se eu lhe dissesse. Se eu lhe dissesse se Napoleão se Napoleão se eu lhe dissesse. Se eu lhe dissese será que gostaria será que gostaria se eu lhe dissesse.
Agora.
Agora não.
E agora.
Agora.
Exatamente como como reis.
Sentindo tão totalmente.
Exatidão como reis.
Tanto que lhe implore tão totalmente.
Exatamente ou como reis.
Trincos fecham e abrem tanto quanto rainhas. Trincos fecham e trincos e tanto trincos fecham e trincos e tanto e tanto trincos e tanto trincos fecham e tanto trincos fecham e trincos e tanto. E tanto trinco fecham e tanto e também. E também e tanto e tanto e também.
Exata semelhança. À exata semelhança a exata semelhança tão exata quanto uma semelhança, exatamente semelhando, exatamente em semelhança exatamente uma semelhança, exatamente e semelhança. Pois é assim. Porque.
Agora repita tudo ativamente, agora repita tudo ativamente, agora repita tudo ativamente.
Tenha agarre e ouça, agora repita tudo ativamente.
Eu julgo juiz.
Como uma semelhança para ele.
Quem vem primeiro. Napoleão primeiro.
Quem vem também vindo vindo também, quem vai lá, assim como vão dão, quem dá tudo, tudo é como tudo como como ainda ou como ainda.
Agora para datar agora para datar. Agora e agora e datar e a data.
Quem veio primeiro Napoleão em primeiro. Quem veio primeiro Napoleão primeiro. Quem veio primeiro, Napoleão o primeiro.
Presentemente.
Exatamente como fazem.
Primeiro exatamente.
Exatamente como fazem também.
Primeiro exatamente.
E primeiro exatamente.
Exatamente como fazem.
E primeiro exatamente e exatamente.
E fazem eles fazem.
Em primeiro exatamente e primeiro exatamente e fazem eles fazem.
O primeiro exatamente.
Em primeiro exatamente.
Primeiro como exatamente.
Em primeiro como exatamente.
Presentemente.
Como presentemente.
Como como presentemente.  
Cá cá cá cá e cá e cá e e cá e cá e cá e e qual e qual cá e qual cá e cá. Cá é e qual é, e qual cá é e cá é, cá é e qual cá e cá e qual cá cá é e cá e cá e e cá e cá.
Podem novelos roubar podem novelos nomear, novelas.
Como presentemente.
Como Exatidão.
Como trens.
Toma trens.
Toma trens.
Como trens.
Como trens.
Presentemente.
Proporções.
Presentemente.
Como proporções como presentemente.
Pai e país.
Era o rei ou espaço.
Sertão e se.
Será que havia será que havia será que havia o que havia será que havia o que havia será que havia havia será que havia.
Se e lá.
Como até se diz.
Um.
Aterro.
Dois.
Aterro.
Três.
A terra.
Três.
A terra.
Três.
A terra.
Dois.
Aterro.
Dois.
Aterro.
Um.
Aterro.
Dois.
Aterro.
Como um assim.
Eles não notam.
Uma nota.
Eles não notam.
Uma rota.
Eles não notam.
Eles se voltam.
Deles como denotam.
Milagres se passam.
Passam bem.
Passar bem.
Um bem.
Também.
Como ou como presentemente.
Deixe-me narrar o que a história ensina. A história ensina.
 
                                         (1923)

tradicção: r.m.



                                             
PABLO PICASSO, les demoiselles d'avignon (1907)

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

carlito azevedo

                             
PAUL CÉZANNE, as cinco banhistas (1885-1887)  
             
                  
                                                                                                                                
AS BANHISTAS

I

a primeira  um
capricho de goya, alguém
diria – apodrece como um morango
cuspido ou ameixas sanguíneas: entre
as unhas uma efusão de manganês esboça a
única impressão de vida pois tenta romper
a membrana verde  a bolha de bile,
coágulo a óleo  que cobre o sexo
fugidio como uma lagartixa (sorri
para esta e deixa que em tuas mãos
uma palavra amarga se transforme
em lilases da estação passada)

(...)

VI

aproxima-te
agora desta última:
ela 
esta que não está na tela:
ela
aproxima-te e te detém longamente
deixa que isso leve toda a vida  também
cézanne levou toda a vida tentando
esboçando (obsedado em papel e tinta
e lápis e aquarela e tela e proto/tela)
estas banhistas fora d'água como peixes mortos na lagoa
ou na superfície banhada de tinta
 uma tela banhada é uma banhista hélas! e não usamos
                                                     mais modelos vivos
ou melhor
os nossos dois únicos modelos: a crítica e a língua
estão mortos
por isso
antes de partires daqui para a vida turva
torvelinho a turba
antes de te misturares ao vendaval das vendas
à ânsia de mercancia
cola o teu ouvido ao dela:
escutarás o ruído do mar
como eu neste instante
na ilha de paquetá
ou na ilha de ptyx?

                               
              CARLITO AZEVEDO

       
poema na íntegra: germinaliteratura

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

david campbell (II)

                                                     
paul cézanne, mont sainte-victoire (1902-1904)  













                             
CÉZANNE

Filho de um banqueiro de província
Frequentava os saraus de Manet no café Guerbois
Em roupas imundas
             "Maître" limpando uma das mãos

Selvagem na tela sombrio nas calçadas
"Ele teria inventado o amor"
Mas viveu com Hortense Fiquet
                  pondo em risco sua mesada

Os críticos escarneciam Zola começou
L'Oeuvre do artista-suicida
                 Penosos ressentimentos
Fizeram-no se afastar até de Pissarro

Ao fim havia a natureza e Aix
"Num mesmo e único instante antecipei minha tela".
"Minha tela então firmou um pacto"
                 Tinha encontrado seu mestre

Mont Sainte-Victoire rezou por ele
Frutas e campos revelaram suas verdadeiras faces
Melões veneravam no clássico domo de sua cabeça

Camponeses jogavam cartas como a realeza
                    ignorando-o
A cidade zombava
                 Ao fim tudo era o mesmo
Seu jardineiro Vallier tornou-se a parede

Notório rico em farrapos tropeçava na tempestade
Com suas telas "inacabadas"
Que não vacilavam ainda que estivesse morto

Adubo e osso
Raízes da árvore de Paul Klee
                     cujos ramos abstratos
São etiquetados por escolas rivais.
           
tradução: r.m.                                                 
           
poema de campbell no original  

                                                                                 
paul cézanne, natureza-morta com crânio (1895-1900)













domingo, 16 de setembro de 2012

                  
henri matisse, nu sentado na poltrona (1926)

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

david campbell

                                                                                                                       
henri matisse, nu azul IV (1952)
                   
                                           
MATISSE

O líder das Bestas Selvagens queria
Que sua arte fosse uma poltrona
Aos cansados homens de negócio

Vozes da infância instavam
Rápido Rápido
À vida comum, uma voz bem estranha

Linhas que constituem uma espécie de escrita
A ideia do azul absoluto
Espaço mais amplo para além da intimidade

Havia a luz da janela
Os negros, as outras cores
E as sutilezas absorvidas do modelo

Duas guerras mundiais e o mestre
Pintava suas meninas tranquilas
"Criando coisas que estão além de mim."

Olhos azuis atrás dos óculos de dourada armação
"Todas as coisas que eu fiz
Eu fiz a partir da paixão."
        
tradução: rodrigo madeira


MATISSE

The leader of the Wild Beasts wished
His art to be an easy chair
For tired businessman

Voices from childhood urged
Hurry Hurry
A voice quite alien to normal life

Lines which constitute a sort of writing
The idea of absolute blue
A larger space beyond intimacy

There was the light from the window
The blacks and other colours
And the subtleties absorbed from the model

Two world wars and the master
Painted his cool girls
"Creating things that are beyond me."

Blue eyes behind gold rimmed glasses
"Everything I have done
I have done from passion."     
                 

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

akira kurosawa

                                                                   
Sonhos (1990) 

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

noite estrelada


                                       
VINCENT VAN GOGH, noite estrelada (1889) 

           
noite extraordinária

(mesmo em reprodução barata
na parede do quarto).

o céu que existe

para naufragarmos
e nos afogar;
corrente de (m)ar,
massa de água e óleo
e nuvem
que a qualquer momento,
há mais de um século,
vomitará peixes, homens
e gaivotas.

(eu vi o quadro em amsterdã
e vazava água
             da moldura.)
   

2.

a cor: c'est une vraie force
de la nature,
contra o desespero contido,
em voz baixa,
dos aquários e costumes;
leviatã, bicho
das profundezas
                           respirando.
olhá-lo é o drama 
de todo afogado,
luta vital entre afundar
e vir à tona.
     
é preciso pulmão encharcado
e apneia,
é preciso flutuação
e peso. 

[um céu que é um outro céu que é o mesmo]

por alguns instantes, é pânico, asfixiante, 
somos alérgicos 
                                  ao oxigênio. 

      
3.

o cipreste, embora comovido
de vento, brilha opaco como a lâmina
de um coral irredento,

quase nos rasga as mãos
e vaza nossos olhos.

a lua e as estrelas (fulgurações
de trigo cósmico)
são despojos 
de afogamentos;

e no entanto
menos se morre
que se enlouquece
desse caldo metafísico

(a alma das coisas,
a alma do pintor das coisas),

menos se morre
que se renasce
desse surto cromático.

       
4.

no fundo de tudo,
de toda beleza indizível,
uma igreja submarina onde 
Deus,
                      através de vitrais,
talvez assista 
ao fim do mundo

 e é apenas mais 
um começo de noite. 


5.

e no fundo do quadro (do quarto),
um vilarejo
para onde voltou
(e voltará sempre)
van gogh
(uma vez mais redimido).

ao passo que nos lares,
alheios a tudo, alheios
à lama azul do dilúvio, 
ao apocalipse 
e ao recomeço,
vivem os homens daquele tempo: 

noite qualquer.

        
(pássaro ruim, 2009)

sábado, 8 de setembro de 2012

paulo neves

 
    vincent (1866)


VAN GOGH
                                                                                                 
Seus olhos azuis fulminados.
O amarelo, a luz contorcida.
Corvo, cipreste, girassol.
E aquela vontade agressiva
de raspar, arrancar à unha
a pele podre da vida
e pintar, pintar, pintar
a espessura do que ele via.

                         
                           PAULO NEVES

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

ferreira gullar

         
ARCÂNGELO IANELLI: NO LIMITE DO VER

         
Não é mais mostrar as formas do mundo
ou do sonho,
da natureza ou da imaginação.
Não é mais figurar, descrever, representar, narrar, aludir.
Não há alusão.
Nem tampouco ênfase, orquestração
das dissonâncias,
dos conflitos de formas e cores.
Não há conflitos.
Pintar, para Arcângelo Ianelli agora é
suscitar o surgimento da cor.
Fazer silêncio e deixar que ela (a cor) imerja
nele  do cerne dele  densa, luminosa.
Vinda do fundo da sombra, a cor
trêmula tênue
como frágil aparição
que fosse se apagar em seguida
Mas não: essa fragilidade é parte essencial
da aparição
como a chama que bruxuleia  por ser chama 
mas se mantém viva e ardente.
Pintar para Ianelli agora é mostrar a cor como pura duração.

E os grandes quadros
parecem feitos
para que neles
o pintor, você e eu,
nos apaguemos
fundidos em azul
em violeta
em rosa
em cinza
em luz


                 FERREIRA GULLAR   

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

ceci est la couleur de mon sang

                                                                  
ARCÂNGELO IANELLI, vibrações em vermelho (1991)
          
                                                                                                                               
joan miró, photo: esta é a cor dos meus sonhos (1925)
                                                           

terça-feira, 4 de setembro de 2012

señor P.



                             
cada qual carrega sua cruz machado (foto: ricardo pozzo)


jogo de xadrez  (por rp)


psicografia (foto por rp)
           

domingo, 2 de setembro de 2012

monsieur G., señor P.

                                                                                                           
palhaço no arame (por ricardo pozzo)

perros callejeros (por rp)

o menino e o tempo (por rp)


"A multidão é o seu universo, como o ar é dos pássaros, como a água, o dos peixes.  Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito  flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio, no infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo (...) Assim o apaixonado pela vida universal  entra na multidão como se isso lhe aparecesse como um reservatório de eletricidade. Pode-se igualmente compará-lo a um espelho tão imenso quanto essa multidão; a um caleidoscópio dotado de consciência, que, a cada um de seus movimentos, representa a vida múltipla e o encanto cambiante  de todos os elementos da vida. É um eu insaciável do não-eu, que a cada instante o revela e o exprime em imagens mais vivas do que a própria vida, sempre instável e fugidia. "Todo homem", dizia G. um dia, numa dessas conversas que ele ilumina com um olhar intenso e um gesto evocativo, "todo homem que não é atormentado por uma dessas tristezas de natureza demasiado concreta que absorvem todas as faculdades, e que se entedia no seio da multidão, é um imbecil! Um imbecil! e desprezo-o!"
                                      
[BAUDELAIRE, Charles. Sobre a Modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.]