quinta-feira, 27 de setembro de 2012

joão cabral de melo neto

       
PIET MONDRIAN, composição C (no. III), 
com vermelho, amarelo e azul (1930)



NO CENTENÁRIO DE MONDRIAN

2 OU 1

Quando a alma se dispersa
em todas as mil coisas
do enredado e prolixo
do mundo à sua volta,

ou quando se dissolve
nas modorras da música,
no invertebrado vago,
sem ossos, de água em fuga,

ou quando se empantana
num alcalino demais
que adorne o ácido vivo
que rói porém que faz,

ou quando a alma borracha
tem os músculos lassos
e é incapaz de molas
para atirar-se ao faço:

então, só essa pintura
de que foste capaz,
de que excluíste até
o nada, por demais,

e onde só conservaste
o léxico conciso
de teus perfis quadrados
a fio, e também fios,

pois que, por bem cortados,
ficam cortantes ainda
e herdam a agudeza
dos fios que os confinam,

então, só essa pintura
de cores em voz alta,
cores em linha reta,
despidas, cores brasa,

só tua pintura clara,
de clara construção,
desse construir claro
feito a partir do não,

pintura em que ensinaste
a moral pela vista
(deixando o pulso manso
dar mais tensão à vida),

só essa pintura pode,
com sua explosão fria,
incitar a alma murcha,
de indiferença ou acídia,

e lançar ao fazer
a alma de mãos caídas,
e ao fazer-se, fazendo
coisas que a desafiam.


                           J. CABRAL

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