terça-feira, 31 de maio de 2011

minuto de cínica sabedoria (V)

                           
talvez alberto caeiro
enfim saiba,
agora que não sabe,
que não está sequer morto
(porque morto
é uma palavra
          uma ideia
          um medo
          um estado    que só diz
e conhece quem está vivo,
porque a morte só existe
enquanto houver pessoas
vivas que a pronunciem)
o que é uma coisa.

* trecho do poema a coisa ("pássaro ruim", 2009)

segunda-feira, 30 de maio de 2011

ademar moletta

                                         
                              incompetente para as lágrimas,
                              choro tinta


tua última imagem foi cor de púrpura,
ouvi dizer,
a aurora
no instante mais terrível.
nunca compreendemos o fim
das coisas.

o bom coração funcionava mal – é tudo.
imagino, em disparate, o músculo
parado, pairando (impossível!)
para observar estrelas extintas,
              a vida:
égua xucra, mal resolvida,
que passa sem cilha, sensível,
sem saber de onde a quê.

nem sei o que dizer!
escrevo no fervor do sangue,
no de repente das notícias trágicas,
como a morte que mata
sem cortes marciais, sem trombetas,
sem tiros de escopeta,
tribunais de apelação, revisões ortográficas,
sem ouvidos
para nosso grito na calada.

atuamos em campos diversos:
o mafioso (como me chamavas e já não te lembras)
e a autoridade.
mas estávamos encharcados da mesma
falta de deus, da mesma fé.
apanhei, odiei sem excetos tua raça
até despir-te o riso,
sem farda, nu de escárnio...
e xingávamos o juiz no brasil-argentina e
entre sussurros apertamos as mãos.

ao ver-te chorar,
pensei na montanha
onde o desespero acha um berço,
ou num escolho debruçado
sobre si mesmo
para aninhar um peixe que adoeceu.

a chuva lá fora tem gosto de ureia.
algo deu errado
e não se arrepende.

olhar teu corpo inerte
me revolta:
onde estão os olhos que brilhavam à noite
sob as pálpebras?
onde tua boina de lã, último presente
da mulher amada?
esta grande árvore tombada
apenas finge ser tua ausência.
o que fazer agora?
me ensina, coronel!

serás, talvez,
o último a quem bato continência


* da série poemas psiquiátricos ("sol sem pálpebras", 2007)

minuto de cínica sabedoria (IV)

                          
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?

                              FERNANDO PESSOA

sexta-feira, 27 de maio de 2011

ao meu assassino

         
há muito equívoco nesta
cidade
sobre a morte de paulo leminski.
morreu de bebida, de curitiba,
de harakiri e o diabo.

deixe-me dizer-lhe:
leminski está morto e fui eu
que o matei.
era tardinha, sete de junho
de 89, na esquina do stuart.
eu tinha apenas dez anos de idade.

abracei-o no golpe da faca
e só o largaria
depois que ele se largasse. olhou-me,
excepcionalmente, com olhos de
cachorro manso e disse: “quem é vivo
sempre desaparece.”
sorriu-me como se eu morresse.
nem perguntou
por quê. sabia que aquilo
era obra de um tigre...

hoje entendo a razão
de não ter cabido um “sinto muito,
poeta”.
é a ordem natural das coisas.
leminski também matou seu touro
e voltou pra casa de mãos novas.

comigo
acontecerá o mesmo.
não fiz nem 28 anos e já espero
o golpe de meu vingador.
tenho esta impressão
de que ele virá da direita,
sabendo que sou canhoto em tudo.

morro de medo do menino que
fala sozinho, possível poeta,
da menina que penteia os cabelos
no vento (será poeta?),
do adolescente no expresso
que lê a ilíada em pé.
morro de medo, morro de medo,
mas não há jeito, é certo como o sábado.

na esquina de casa,
na saída do barbeiro,
na volta da banca,
na fila do banco,
num estacionamento
de supermercado, ele estará
a minha espera.
inevitável que seja:
em algum lugar da cidade
meu assassino está nascendo.

escute daqui a alguns anos estas palavras:
“tudo bem,
cara, eu entendo! perdoe-se como me perdoei,
ou não escreverá sequer um verso.

apenas interceda em meu favor para que eu seja
enterrado em meu bar preferido.
só isso. os poetas merecem ser emparedados
em seu boteco eletivo, assim como as aves
devem ser sepultadas no ar.
o botequineiro saberá rezar minha missa.”

não há jeito,
é certo como o sábado:
tal quais as putas de outros tempos,
o poeta cora seu rosto com sangue.

o sangue de outros poetas


* poema do livro “sol sem pálpebras” (imprensa oficial, 2007)

terça-feira, 24 de maio de 2011

garcía lorca

  

lá fora
a lua
de granada
(ou madrid?
ou ny?)
é um
candeeiro
a óleo

lá fora
as cigarras
são mais
numerosas
que os homens

e tu
lleno
del lenguaje
de flores y
piedras
sentaste
dentro da casa
ou estúdio

tu e o fotógrafo
cúmplices
da tarde
desenrolando
sua língua hirsuta
lá fora

(a fotografia
das vozes
que ninguém tirou)

tu sentaste
o corpo
oblíquo
o lenço
de pensado
retorcido

o restolho
sobre os lábios
a espiga do milho
mal
granado

as sobrancelhas
de urticante
líquido

o cabelo
marulhado
mar
de gordura
e graúnas

olhas
e sorris
para além
do 17 de agosto
aquela madrugada
madrugada
em que te mataram
tua carne cheia
de sementes

tu
– a lâmpada estoura
a égua dispara –
e teu cadáver

que o fotógrafo
embalsamou
de luz


* do livro "sol sem pálpebras" (imprensa oficial, 2007)

domingo, 22 de maio de 2011

minuto de cínica sabedoria (III)

   
um raio sedutor, um título de esperança
          
UM MORTO
JÁ NÃO PODE
MORRER

 
                                                                                 ALBERTO PIMENTA

sábado, 21 de maio de 2011

minuto de cínica sabedoria (II)

                              
diante da morte somos todos recém-nascidos.

 *do poema a morte ("pássaro ruim", 2009) 

terça-feira, 17 de maio de 2011

tullio stefano

                         
Kadish
                
          a Diego Terry


Iria começar uma oração
me lembrar de um salmo
iria rezar o pai-nosso
ou um kadisch
volver meus olhos
distar o jamais
aproximar meu passado.

Iria começar uma oração
louvado seja!
Lembrei que
do oitavo andar em Niterói
deus é pedra
a mesma pedra
que iria pôr em sua cova.

Louvada seja
a mentira do sagrado
que
eu profano nesta hora.
Bendito seja o Nome
meu Nome
teu Nome (leitor)
e o Nome de quem nestas linhas
eu pranteio.

Louvado seja
quase me esqueci
do intérmino da face
subterrâneo vivo
onde começa o meu olhar.

Louvada seja
a Carne
- ossos lascados -
deus das alturas
vai
em queda livre
onde jaz
a carniça do vento.

Bendito seja o inferno
maldita bendição
porque malditos são
todos os alados
porque asas pesam
pesa
a juventude nossa de cada sonho.

Bendito, louvado e maldito
seja o céu...
Rasuro tua lápide
arremessando as letras
seladas
com o cuspe
do amanhã.
Santo é
o nome do Horror
inscrevo-lhe meu salmo
e rasuro tua lápide.

Maldito, louvado, bendito
seja o Nome da Carne
ossos que espatifam.

Perdoa-me, Pedra
que venhas tu
ao meu reino
que seja feita
em terra
a terra
nos extratos do jamais
e rezo aqui
o cimo daquela hora
no declive desta oração
Amém.

                              t.s.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

giuseppe ungaretti

                         
Italian troops at Isonzo river.jpg










VIGÍLIA

(Cume Quatro, 23 de dezembro de 1915)

Uma noite inteira
atirado junto
a um companheiro
massacrado
com a sua boca
arreganhada
na direção do plenilúnio
com a congestão
das suas mãos
penetrada
no meu silêncio
escrevi
cartas cheias de amor

Nunca estive
tão
ligado à vida   


tradução: rodrigo madeira


VEGLIA

(Cima Quattro il 23 dicembre 1915)

Un´intera nottata
buttato vicino
ad un compagno
massacrato
con la sua boca
digrignata
volta al plenilunio
con la congestione
delle sue mani
penetra
nel mio silenzio
ho scritto
lettere piene d´amore

Non sono mai stato
tanto
attaccato alla vita


* Do livro “L´allegria” (1931).  Poema escrito a lâmina de baioneta, fruto da experiência de Ungaretti na Primeira Guerra Mundial.

domingo, 15 de maio de 2011

minuto de cínica sabedoria

     
A morte é hereditária.

                           MILLÔR FERNANDES

quarta-feira, 11 de maio de 2011

                        
   Kazimir Malevich. Suprematist Composition: White on White. 1918
            Malevich, Quadrado branco sobre fundo branco, 1918
                                   

segunda-feira, 9 de maio de 2011

vicente huidobro (II)

                      
NO OUVIDO DO TEMPO

Tenho grandes sonhos que acumulam tesouros nas raízes das
                                                                                  [árvores
Tenho esse ofício que faz morrer o mar
Vou andando à semelhança de coisa alada
Às vezes canto porque as lágrimas se tornam muito grossas
O Universo vem ciscar em minhas mãos
Os que não sabem espantam-no estupidamente

Tenho muita ânsia e vergonha de tudo
Como uma hora que se detém para pedir pão
Como aquele que não pode dizer o que quer
Enterrado no fundo de sua raça

Contemplo de tão alto que tudo vira ar
Contemplo o olho enorme da terra
Que fazer que fazer
a lua insone passa docemente
Um rio sem vontade se extasia em silêncio
A
luz empapada em seus lampiões de portos angustiados
Também não sabe o que dizer
Nem o farol que ilumina as vitrinas do mar

O rio tem pena
e uma quantidade tal de olhos extasiados
Que a noite poderia equivocar-se
Que as árvores poderiam virar andarilhas
Logo tudo vai embora
E eu olho a terra e suas distâncias desesperadas
Quando as ondas falam entre si

Não há formas não há cores
Não há seres ao fim dessa luz sem luz
Desaparece a criação e seus augúrios
Seus pensamentos suas sensações e também suas imagens
E até seus sonhos de substâncias prisioneiras
O nada luminoso
Nem luminoso nem obscuro
A harmonia do nada sem harmonia
O nada e o tudo sem todo
Para ver isso é preciso ressuscitar duas vezes
Para senti-lo é preciso morrer primeiro


tradução: lu cañete e rodrigo madeira


AL OÍDO DEL TIEMPO

Tengo grandes sueños que acumulan tesoros en las raíces de
                                                                     [los árboles
Tengo ese oficio que hace morir el mar
Voy andando en semejanza de cosa alada
A veces canto porque las lágrimas se hacen demasiado gruesas
El Universo viene a picotear en mis manos
Los que no saben lo espantan torpemente

Tengo grandes ansias y vergüenza de todo
Como una hora que se detiene a pedir pan
Como aquel que no puede decir lo que quiere
Enterrado al fondo de su raza

Contemplo de tan alto que todo se hace aire
Contemplo el ojo enorme de la tierra
Qué hacer qué hacer
la luna insomne pasa dulcemente
Un río sin voluntad se extasía en silencio
La luz empapada en sus faroles de puertos angustiados
No sabe tampoco que decir
Ni el faro que ilumina las vitrinas del mar

El río tiene pena
y una cantidad de ojos extasiados
Que la noche podría equivocarse
Que los árboles podrían hacerse vagabundos
Luego todo se va
Y yo miro la tierra y sus distancias desesperadas
Cuando las olas se hablan entre sí

No hay formas no hay colores
No hay seres al fin de esta luz sin luz
Desaparece la creación y sus augurios
Sus pensamientos sus sensaciones y también sus imágenes
Y hasta sus sueños de sustancias prisioneras
La nada luminosa
Ni luminosa ni obscura
La armonía de la nada sin armonía
La nada y el todo sin todo
Para ver esto hay que resucitar dos veces
Para sentirlo hay que morir primero

domingo, 8 de maio de 2011

joão cabral de melo neto

                                                                          
CONTAM DE CLARICE LISPECTOR

Um dia, Clarice Lispector
intercambiava com amigos
dez mil anedotas de morte,
e do que tem de sério e circo.

Nisso, chegam outros amigos,
vindos do último futebol,
comentando o jogo, recontando-o,
refazendo-o, de gol a gol.

Quando o futebol esmorece,
abre a boca um silêncio enorme
e ouve-se a voz de Clarice:
Vamos voltar a falar na morte?

                                         j.c.m.n.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

reflexões do espelho (II)

                                              
Caminhávamos num parque quando ela me alertou: um passarinho enfrentando "outro passarinho" no espelho lateral de um carro. O que me trouxe a esta pergunta  mezzo grave, mezzo idiota capaz de estilingar a graça dos passarinhos de domingo:
– Será que é isso, Lu, que nos faz humanos? a natureza do espelho? a experiência física e metafísica, real e irreal de nosso rosto no espelho?     

reflexões do espelho

              
E no canto esquerdo do córner...

Tenho que me defender. E contra-atacar. Direita, esquerda. Jabs, uppercuts, diretos, ganchos. Cuidar da linha da cintura e levantar a guarda. Antes que o fígado colapse e o supercilho aberto me lave em sangue.
Meu cartel tem mais derrotas que vitórias, mas eu sou osso-duro, carne-de-pescoço. Não posso fazer feio, ou não me agendam mais nada, penduro as luvas amanhã mesmo.   
É bem provável que ninguém esteja me vendo, assistindo a esta luta. Muito provável que ninguém esteja sequer me socando. 
Eu só preciso ficar de pé, eu só preciso ficar de pé.
              

domingo, 1 de maio de 2011

luiz felipe leprevost

         
Certamente que o teatro será para sempre um bicho estranho (e eu acho bom que seja assim). O ornitorrinco é um bicho estranho e nem assim deixa de ser algo de nosso mundo. Além do mais, se é tão incompreensível, por que minha vizinha, que nem sequer ouviu um dia falar em arte, tem um bicho desses dentro do apartamento dela?                                                   
                                                                         l.f.l.