terça-feira, 10 de abril de 2012

antónio lobo antunes

         
        [...]
        Sempre que vou jantar a casa de meus pais saio de lá com a infância atravessada (...) A infância atravessada é pior que uma espinha: a gente engole bolas de pão e não passa. Talvez seja por isso que vou a Benfica uma vez por mês se tanto e que quando lá vou me sinto como um cão à procura de um osso que julga ter enterrado e afinal de contas não existia osso nenhum. Um osso que mesmo assim procuro até me arderem os olhos. Como me procuro nos álbuns de retratos. Como me procuro debaixo da minha cama
           (está lá, a minha cama)
        como me procuro no quintal, na figueira do quintal, no sítio em que havia o poço, em que havia a capoeira, de modo que depois do jantar fico no automóvel a ver o muro, o portão com um ananás de cada lado, as janelas trancadas, a copa escura da acácia porque é noite. Se calhar é sempre noite quando a gente cresce. Fico no automóvel à espera que a minha mãe me chame e sabendo que não me chama porque julga que me fui embora. Realmente fui-me embora. Para sempre.
         
* da crônica "António João Pedro Miguel Nuno Manuel" 
[Antunes, António Lobo. As coisas da vida: 60 crônicas/ António Lobo Antunes. - Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.]  

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