terça-feira, 24 de dezembro de 2013

drummond

       
                          
    
Hieronymus Bosch,
Tríptico da Epifania (ou Adoração dos Reis Magos), 1495.



VI NASCER UM DEUS


Em novembro chegaram os signos.
O céu nebuloso não filtrava
estrelas anunciantes
nem os bronzes de São José junto ao palácio Tiradentes
tangiam a Boa-Nova.
Eram outros os signos
e vinham na voz de iaras-propaganda
páginas inteiras de refrigerador e carro nacional
mas vinham.
O governo destinou só 210 mil dólares
à importação de artigos natalinos
avelãs figos castanhas ameixas amêndoas
sóis luas outonos cristalizados
orvalho de uísque em ramo de pinheiro
champagne extra-sec pour les connoisseurs
mas vinham
a fome sambava entre caçarolas desertas
e o amor dormia na entressafra
mas vinham
e petroleiros jatos caminhões nas BR televisores transistores
                                                                               [corretores
descobriram subitamente
Jesus.

(Quem adquire a big cesta de natal Tremendous
no ato de pagamento da primeira prestação
recebe prêmio garantido
e concorre
na última quarta-feira de cada mês
– números correspondentes aos da Loteria Federal –
a visões como um apartamento
                                             um jipe                             

                                             uma lambreta
                                                    um lunik
                                     um anjo eletrônico
e mais:
ajuda quinhentos velhinhos
a provar alegria
pois a Obra de Senectude Evangélica
tem comissão em cada cesta vendida.)

... na manjedoura?
no presépio?
no chão, diante do pórtico arruinado, como em Siena o pintou
                                                                   [Francesco Giorgio?
na capelinha torta de São Gonçalo do Rio Abaixo?
na big cesta de natal?

                                        ... repousa o Infante esperado.
As luzes em que o esculpiram tornam-lhe o corpo dourado. 

O Cristo é sempre novo, e na fraqueza deste menino
há um silencioso motor, uma confidência e um sino.

Nasce a cada dezembro e nasce de mil jeitos.
Temos de procurá-lo até na gruta de nossos defeitos.

Ministro deputados presidentes de sindicados
prosternam-se, estabelecendo os primeiros contatos.

Preside (mal) as assembleias de todas as sociedades
anônimas, anônimo ele próprio, nas inumerabilidades

de sua pobritude. E tenta renascer a cada hora
em que se distrai nossa polícia, assim como uma flora

sem jardineiro apendoa, e, sem húmus, no espaço
restaura o dinamismo das nuvens. Sua pureza arma um laço

à astúcia terrestre com que todos nos defendemos
da outra face do amor, a face dos extremos.

Inventou-se menino para ser ao menos contemplado,
senão querido (pois amamos a nosso modo limitado,

e de criança temos pena, porque submersos garotos
ainda fazem boiar em nós seus barcos rotos,

e a tristeza infantil, malva seca no catecismo, nunca se esquece).
Assim o Cristo vem numa cantiga sem rumo, não na prece

                  com pandeiros alegres tocando
                  com chapéus de palhinha amarela
                  companheiros alegres cantando.

Ó lapinha,

menino de barro,
deus de brinquedo,
areia branca de córrego,
musgo de penhasco,
Belém de papel,
primeira utopia,
primeira abordagem
de território místico,
primeiro tremor.
Vi nascer um deus.
Onde, pouco importa.
Como, pouco importa.
Vi nascer um deus
em plena calçada
entre camelôs;
na vitrina da boutique
sorria ou chorava,
não sei bem ao certo;
a luz da boate
mal lhe debuxava
o mínimo perfil.
Vi nascer um deus
entre embaixadores
entre publicanos
entre verdureiros
entre mensalistas,
no Maracanã
em Para-lá-do-mapa,
quando os gatos rondam
a espinha da noite
os mendigos espreitam
os inferninhos
e no museu acordam as telas
informais
e o homem esquece
metade da ciência atômica:
vi nascer um deus.
O mais pobre,
o mais simples.

                                        
[Andrade, Carlos Drummond. Lição de Coisas. São Paulo, Companhia das Letras, 2012.]

sábado, 7 de dezembro de 2013

madiba


 
foto por abigail hadeed
 
                                                                                                                             
deixando um pouco de lado as postagens pornossatíricas, também quero fazer minha homenagem a nelson mandela. madiba. o maior político e estadista da segunda metade do século XX. "o homem que ensinou a perdoar".

"invictus", este poema que tentei traduzir (mal, diga-se, a toque de caixa),  era o preferido de mandela. os versos de william ernest henley, poeta vitoriano pouco lembrado para além dos belíssimos versos em questão, foram uma espécie de companhia moral e espiritual durante o 27 anos de cárcere do líder sul-africano.
                         
*
                   

INVICTUS


Do fundo desta noite que me veste,
Tal qual dum fosso o escuro indivisível,
Eu agradeço ao deus que ainda reste
Por este meu espírito invencível.
                                                                 
Da circunstância em garras afiadas,
Não me curvei nem foi lamúria ouvida.
Tomando dos acasos mil pancadas,
Minha cabeça sangra, mas erguida.
                                                                    
Além deste lugar de raiva e danos,
O Horror da sombra emerge desde cedo,
e ainda assim, feroz passar dos anos
me encontra e sempre encontrará sem medo.
                                                                           
Que seja a porta estreita quanto for,
Já não importa a dor do veredito;
Sou eu de meu destino meu senhor:
Eu sou o capitão de meu espírito.
 
                                     
trad. r.m.
    

*
                                                     
INVICTUS
 
 
Out of the night that covers me,
Black as the pit from pole to pole,
I thak whatever gods may be
For my unconquerable soul.
                                                   
In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.
                                                        
Beyond this place of wrath and tears
Looms but the horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds and shall find me unafraid.
                                                         
It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll,
I am the master of my fate:
I am the captain of my soul.
                                                                

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

VI – Iâmbicos curiosos

                                                                                                                                       
Eu sei que tens amor que dar, sincera,
e sei que a xana espera minha vara;
eu sei que “a rima é rica” – tu ponderas – ,
mas faz um outro encaixe rima rara.

Se deixas que eu te afague com as nozes   
e afogue o podre pulcro feio cisne
no cu, botão de flor que em fogos tisne,
ao dar-se assim desfazem-se as neuroses.

Por que o horror, se o cu já sabe de
prazeres que da mão e do bidê? 
Por quê, se a roda sempre acaba imunda?

Que o rabo aguente a merda como a tora,
que cagues para dentro e para fora:
ao vaso ou pau por trás, sorria a bunda.    
                         
                           
* um dos sete sonetos da seção "o xifópago aconselha".

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

bem no meio do cu da morte

                                                                                                                                                                                         
maria schneider e marlon brando na antológica cena
de "o último tango em paris" (bertolucci, 1972)
                                 

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

(shunga)

                
                                                                                      

        


                       










                                                           
alta primavera
cai uma flor amarela
de boca no arbusto





* descobri faz pouco, mais de um ano após ter escrito o haicai acima: "shunga", a arte pornográfica japonesa, quer dizer “imagem de primavera”, 春画. a primavera, mais até do que no ocidente poetas japoneses tendem a plasmar ou dissolver nas estações do ano suas almas e psiques (kigo) –, é uma metáfora para sexo e erotismo. que maravilha!
               

terça-feira, 26 de novembro de 2013

rapidinhas

              
(limeriques)

                 
Se cruza a avenida ao sinal
uma traseiro sensacional,
tudo no mundo estanca;
é só a bunda que avança;
e explode uma salva de paus.
     

*

             
Quase nunca dá seu anel
a patricinha do Batel.
Tesão é coisa cara!
Qual o status da vara?,
se indaga enxaguando em Chanel.

                   

(haicais de boca)


queria dizer
não com a língua de falar
(mas) a de lamber


*

feliz a menina
lambidelas no sorvete
que nunca termina

                             

(quadras idílicas)

       
Molhava-se a camponesa
num bucólico regato;
molhava-se com certeza:
na greta o falo era um fato.

  
     
Ama mesmo os passarinhos
a ecologista querida:
para aninhá-los – seu ninho,
para animá-los – comida.



(epigramas)


E mostra, tão vivida e ainda boa,
com quantos paus se faz uma coroa.


*

(sermão da cafetina)


Erguei, erguei vossos paus para os céus,
pois Deus abençoa a todos os créus.


          
* dois de quatro poemas de cada modalidade; da seção "peças de quatro" (xifópago & pistoleiras).                     

domingo, 24 de novembro de 2013

BR-277

                        
E como ela chupasse a minha pica
à beira da BR, em um banheiro
imundo, e a luz na espécie de igrejica

filtrada pelo vidro, o abacateiro
roçando os basculantes gentilmente
ao vento então às rédeas do janeiro,

e como ela chupasse sem os dentes
que nem uma banguela muito avinda,
enquanto uma das mãos, ah!, aliciente,

lustrava minhas bolas na berlinda,
a pícara cigana que previa
o que há de vir da bica, água bem-vinda,
                     
e ao fundo aves em bando, a algaravia
mesclando-se ao barulho da chupeta,
o som que faz o ralo de uma pia,

e a mão desocupada na buceta,
porque também ficava enlouquecida,
um pasmo inseto em face de violetas,
                                             
e como ela chupasse, bem bandida,
entrefalando coisas cabeludas,
puxei, gentil, cabelos como bridas,

meti garganta adentro na tesuda
e fui ao mais sonhado por escribas,
mas burro, enceguecido e sem bermuda:

nel mezzo del cammin Foz-Curitiba,
a máquina do mundo arreganhada
na perva que não ama e sim me liba,
        
a coisa toda oferta e revelada,
que não requer sentido a puta vida
se a boca espera aberta uma golada.
                                                            
           

arte de pablo picasso
          

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

                                                                                                                         

                   
(versinhos para flauta doce)
             
Tocava a flauta doce, e a flauta é muda,
e eu fui a melodia na hora exata,
à meia-morte, à vida então desnuda,
a melodia tosca de um primata.
    

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

aforismo

                                                                                  


Tocar bronha, a arte universal de solistas vis e previsíveis. Nos conservatórios, nas catedrais das toilettes, até Mozart era um músico medíocre.


sábado, 16 de novembro de 2013

giuseppe ungaretti

                                    
ATTRITO

Locvizza il 23 settembre 1916


Con la mia fame di lupo                                                                          *
ammaino
il mio corpo di pecorella

Sono come
la misera barca
e come l'oceano libidinoso

*


ATRITO

Locvizza, 23 de setembro de 1916


Com minha fome de lobo
amaino
meu corpo de ovelhinha

Sou como
a mísera barca
e como o oceano libidinoso

                    
*imagem encontrada na parede de uma igreja medieval na dinamarca.                                                

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

gregório de matos

                                                                       
abaixo,
algumas estrofes do romance "definição do amor". trata-se de um dos mais impressionantes poemas cometidos por nosso taTARAvô espiritual, o jesuíta e momo maior

 DR. GREGÓRIO.


*
        
(...)

Isto, que o Amor se chama,
este, que vidas enterra,
este, que alvedrios prostra,
este, que em palácios entra:

Este, que o juízo tira,
este, que roubou a Helena,
este, que queimou a Troia,
e a Grã-Bretanha perdera:

Este, que a Sansão fez fraco,
este, que o ouro despreza,
faz liberal o avarento,
é assunto dos poetas:

Faz o sisudo andar louco,
faz pazes, ateia a guerra,
o frade andar desterrado,
endoidece a triste freira.

Largar a almofada a moça,
ir mil vezes à janela,
abrir portas de cem chaves
e mais que gata janeira.

Subir muros e telhados,
trepar chaminés e gretas,
chorar lágrimas de punhos,
gastar em escritos resmas.

(...)

É glória, que martiriza,
uma pena, que receia,
é um fel com mil doçuras,
favo com mil asperezas.

Um antídoto, que mata,
doce veneno, que enleia,
uma discrição sem siso,
uma loucura discreta.

Uma prisão toda livre,
uma liberade presa,
desvelo com mil descansos,
descanso com mil desvelos.

(...)

Enfim o Amor é um momo,
uma invenção, uma teima,
um melindre, uma carranca,
uma raiva, uma fineza.

Uma meiguice, um afago,
um arrufo, e uma guerra,
hoje volta, amanhã torna,
hoje solda, amanhã quebra.

Uma vara de esquivanças,
de ciúmes vara e meia,
um sim, que quer dizer não,
não, que por sim se interpreta.

(...)

O amor é finalmente
um embaraço de pernas,
uma união de barrigas,
um breve tremor de artérias.

Uma confusão de bocas,
uma batalha de veias,
um reboliço de ancas.
quem diz outra coisa, é besta.


                                        
[Matos, Gregório de. Poemas escolhidos; seleção e organização José Miguel Wisnik. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.]

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

mario benedetti

                         
UMA MULHER DESPIDA E NO ESCURO


Uma mulher despida e no escuro
tem uma claridade que ilumina
de modo que se há algum desconsolo
apagão, noite em que a lua não brilha
é de muito bom tom e de bom gosto
ter à mão uma mulher despida
 
Uma mulher despida e no escuro
gera um resplendor que dá confiança
no calendário então só há domingos
pelos cantos vibram fios de aranha
e os olhos felizes e felinos
olham e de olhar nunca se cansam.

Uma mulher despida e no escuro
para nossas mãos vocacionadas
para o coração é um desperdício
e é quase um destino para os lábios
uma mulher sem roupas é um enigma
e é sempre uma festa decifrá-lo.

Uma mulher despida e no escuro
gera uma luz própria e nos acende
o forro do teto em céu converte-se
e é uma glória não ser inocente
uma mulher querida ou vislumbrada
desbarata ao menos uma vez a morte.

                                  
                                     MARIO BENEDETTI

versão: r.m. 
 

"una mujer desnuda y en lo oscuro", recitado pelo próprio poeta:
http://youtu.be/rfgJE0TUmwY
                        

domingo, 10 de novembro de 2013

o verão

                               
a luz do sol e das luas de cloro varou a escuridão de nossas roupas. parece até um crime. talvez dissesse algum menino olhando pela fresta: um assassinato. e somos mais ou menos delicados. e estamos felizes.
tu começas pelos lábios, carne sobre carne (a lânguida liquenografia da língua). os lábios são o fruto que se colhe com os lábios.
árvore de ossos, vento. esta macieira é o único livro que li na vida.
sou um lenhador implausível, comovido, de mãos nuas. (ou és tu, com a serra elétrica de hálito & sussuros, com teu machado de maciezas & calores & perfumes, a lenhadora que me derruba?)
teu corpo jazz na relva. meu corpo jazz na relva.
e cavo um bunker no domingo de tua virilha. e deixo minhas mãos pastarem como bois famintos.
as coxas cheiram a terra molhada. no pescoço és uma égua, haste doente. teus mamilos são despenhadeiros.
folheio o corão de teus cabelos. estou vivo, como quem autentica a própria morte no cartório das veias.
a vida é enorme, minha amiga, a vida nos acontece à queima-roupa.
deus existe por alguns instantes? é a palavra de silêncio, o grafite de néctar no muro das costas? a cama é um bosque onde o perfume lança âncoras de hera.
separar as pernas, abrir a caixinha de música de tuas súplicas. ah, a boceta! uma fogeira no centro do corpo, do quarto, da galáxia, dos séculos.
eu sei, sou um cego, um analfabeto. nosso esqueleto é um relâmpago.
subirei todas as escadas de tua nudez? sonhar, floração de tesouras. os óculos no chão. meu coração é um cavalo escoiceando a caixa torácica. uma ave que bate contra o vidro.
de repente, nem isso. resfolegante, calmo, um pouco triste (temos a idade de um crepúsculo). o cavalo exausto sobre o campo, o cavalo exausto na colina. um pássaro que lateja  – & a morte tem quase o tamanho da vida  –  sobre a réstia de sol que atravessa a cama.
                                                    

(poema revisitado: pássaro ruim, 2009)

sábado, 26 de outubro de 2013

minha amada express

               
um relâmpago e após a noite! – aérea beldade,
e cujo olhar me fez renascer de repente,
só te verei um dia e já na eternidade?
 
bem longe, tarde, além, jamais provavelmente!
 
                                      baudelaire, a uma passante


eu me lembro de você,
musa em trânsito,
feita de primavera
e pressa.

de suas axilas caíam flores,
seus cabelos cheiravam
                                a gasolina?
eu me lembro.

um barulho surdo,
de sangue nas veias,
entre os barulhos do dia.
um passo após o outro
na partitura
             do silêncio.

talvez fosse um spam
             da beleza (e um susto)
em meu sistema nervoso central,
no sistema nervoso
de toda a cidade.

(vasculho o riquíssimo lixo
urbano
de uma lembrança.)


2

você me beijou até abrir o sinal.
você me deixou,
amante e mãe,
sobre a calçada, para eu nascer
sozinho. largou-me no meio da casa
de minha infância. bebeu
minhas lágrimas
sobre uma alfombra
de vestígios e ruínas.
morreu de velhice
numa manhã de agosto.

você soltou minha mão
e disse:
              "hei, não exume seu cadáver
               sobre minha cama, não assine
               obituários de você mesmo
               em poemas delicados. porra, antes
de morrer, viva!

ouça a respiração das coisas.
dobre-se sobre elas
e as ouça (tudo: o corpo, a cidade, as fezes
e violetas) respirar."

e ainda assim, você apenas passou,
musa anônima
entre os carros,       (bye-bye, baby)
aparição de carne e carne,
sujeita à chuva
e à ferrugem
do esquecimento.

mas você poderia,
                               eu sei,
                      num golpe obsceno de silêncio,
                                          ali mesmo
                                          na faixa de pedestres,
                      despir-me o pijama da rotina,
                      virá-lo do avesso,
ou (sem vexame algum),
                                ao coral de buzinas,
    enquanto de sua buceta,                
    sob o restolhal cor-
                           de-ozônio desmaiado,
    escorresse um
                 óleo carburante,
                                             simular orgasmos com uma planta,
um poste de eletricidade, e ainda com martelos de plástico.*

                                    
                                                                                   *[de uma notícia online]

eu me lembro,
antes que a noite chegue,
antes que o mundo acabe,
                                               e eu nem sei o seu nome. 


3

nós também construímos
em curitiba (no mundo)
o inferno
com o diesel e a fumaça
do comércio diário.

por isso é que eu sopro a clarineta
de um escapamento
ou canto tossindo,
com a voz pulvero-
rápida, empretecida,
irritada.
os pulmões chiam
dentro do canto
por você,
misturando desejo
e dióxido.

quem diria que a visconde de nácar
tinha vocação (ou combustão,
                        ou congestão)
e fuligem de cegar
para tornar-se
meu caminho de damasco? e você, uma menina
(de 20 e poucos),
um susto da beleza, outra
qualquer, para ser
a epifania
com quadril e seios,
que converte
à única vida que há?

você tremia no ar,
bailarina paranoica,
pisava
      a cortina translúcida
dos gases sujos
                    e do calor,

você tremia no ar.


4

a contar de então,
venho sangrando
no corpo a manhã.
as vísceras da aurora
são anônimas.

o que sobrou de alma
               (o que não foi deixado, uma carcaça
pra feder
                      ao sol),
                                         encardiu-se
                                         no carbono das horas,
                                         viciou em oxigênio.

a vida a vida.
e por trás dela,
ainda a vida.
vida total, fiapo de vida,
vida desavinda,
no avesso de si mesma...

e no coração de tudo
o que vive ainda,
a morte, com dedos
de mercúrio,
inventa-se,
enrola os novelos do tempo.

ou fora de nós,
atrás dos muros e janelas,
dos batentes,
embaixo das pedras,
atrás dos livros
ou
do lampejo
e arquejo
de cada palavra,

nos observa.


5

parir-se é mais difícil
do que ser parido;
como o sol, nascer
todos os dias.

sinto o mundo latejando
em minhas carótidas. a vida,
desde meu estômago
                            (desde meu caralho),
incha, inflama, ameaça
rasgar a pele e as roupas,
arremessar meus olhos
no meio da rua,
explodir meu coração
        como um fogo de artifício.

um galo de lata
de coca-cola,
almuadem,
canta cinco vezes
                           ao dia.

caminho por nossas ruas.
uma araucária
na lapela, uma
araucária atravessada
na garganta.
o iguaçu brota,
poluído,
de minha saliva, lava-se
em minha infância
                
                 (talvez eu compre uma
                 arma,
                 talvez seja
                                  atropelado,
                 ou fume um
                 último cigarro,
                 ou siga um vira-lata
                 por toda a cidade)

e é em você que eu penso, minha amada,
antes que eu me esqueça,
antes

que eu

me esqueça.

                                
          
(pássaro ruim, 2009)

terça-feira, 22 de outubro de 2013

das biografias

  
também vou enfiar minha cunha. não direi nenhuma novidade. mas vou dizer mesmo assim, mesmo que aqui, de mim para mim, neste meu bloguezinho baldio.

creio que todos que admiram chico, gil e caetano (bem como a família ruiz/leminski) ficaram de cabelo em pé nos últimos dias. é inacreditável que homens quase sempre tão lúcidos (principalmente o caetano), além de tão censurados no passado recente de nossa história, agora advoguem pela censura -- pela manutenção dos famigerados artigos 20 e 21 do código civil, claramente inconstitucionais.

usar a palavra "censura" para qualificar a manutenção desses artigos  não é nenhum sensacionalismo marrom, apelação de uma imprensa linchadora, como tentaram insinuar alguns dos envolvidos. o termo é esse mesmo. censura, sim, ainda que com a roupagem de uma perífrase eufemística: "autorização prévia do biografado ou dos herdeiros."

fiquei sem entender como nossos ídolos-de-ontem-e-sempre decidiram se dar esse trabalho. como podem de repente, depois de tanta luta, ir na contramão do que cantaram ("é proibido proibir", "cálice"), de tudo o que sempre representaram e fizeram em favor da liberdade de expressão?

os argumentos da turma, após a detonação da polêmica, foram ainda mais ridículos e desencontrados. sério mesmo, chegou quase a dar pena! o primarismo e a debilidade das justificativas foram quase tão comoventes quanto uma criança assustada pega numa baita incoerência! seria isso, ou quase, não fosse o fato de não haver nada de inocente e inofensivo em se defender a censura prévia.

chico buarque, por exemplo, vem de há pouco pedir desculpas a paulo césar de araújo, biógrafo, historiador e jornalista acusado de haver mentido sobre uma entrevista que, segundo artigo do compositor publicado em O Globo, nunca teria acontecido. a entrevista aconteceu. no dia 30 de março de 1992. está inclusive gravada. paula lavigne, ex-mulher de caetano e líder da "procure saber", usou esta mesma declaração equivocada de chico buarque para acusar, no programa televisivo "saia justa" (eu mesmo vi, chapado de sono, com minha filhinha no colo!), as mentiras do mefistofélico biógrafo de roberto carlos. resumo da ópera bufa: os dois, lavigne e chico, que dizem apenas defender os artistas brasileiros contra as supostas difamações de biógrafos oportunistas, difamaram o trabalho sério e devotado de um biógrafo censurado. fizeram exatamente o que disseram querer evitar. é ou não é, como diz o outro, "o fim do final"?      
     
só imagino o que diria o grande sérgio buarque de holanda, nosso maior historiador, a respeito de um ataque assim leviano ao acesso à informação e à construção de nossa memória coletiva...
não dá pra acreditar que chico & cia -- cujas obras e vidas acompanhamos com tanta atenção e carinho -- defendam a institucionalização das biografias chapa-branca e tentem reduzir à atuação varejeira de sórdidos paparazzi um gênero literário tão importante, na linha direta de plutarco.

biografia não é "contigo", cara! biografia não é fofoca! biografia é, sim, quando praticada por um mestre, literatura e história. e mesmo aquelas que versam sobre a vida e o trabalho de meros artistas. biografias como "o anjo pornográfico", de ruy castro, ou "baudelaire", de théophile gautier, são pequenas obras-primas, tanto pelo panorama histórico que traçam quanto por toda dimensão humana que prospectam. são livros de verdade. são, pra lembrar o que cantou um outro caetano (embora nessa mesma encarnação e biografia), "objetos transcendentes", antinarcísicos -- ou seja, com uma imenso poder de afeto e empatia --, que podemos amar do mesmo "amor táctil que votamos aos maços de cigarro".
ou não?

*

em tempo: simplesmente lamentável a censura praticada por alice ruiz e suas filhas contra os escritores domingos pellegrini e toninho vaz. os caras foram amigos do paulo, companheiros de trincheira. sempre falaram e falam dele com o maior respeito intelectual e carinho possíveis.
abaixo, um desabafo de toninho:

incluí uma passagem que dá voz a alguém que teve acesso às condições de suicídio do pedro. conversei com a ex-mulher do pedro ontem e ela está do meu lado. ela me disse: "você não precisa se explicar, elas não estão preocupadas com o pedro". eu sei que não ofendi à família do pedro. nós somos filhos da contracultura. hoje sou um avô, mas já fui um tremendo maconheiro, biriteiro... eu sei o que eu fui, o que nós fomos. mas há pessoas que não aceitam o passado e a realidade. e o que está no livro é a realidade.

**

hoje me deparei com a seguinte explicação para esse curto-circuito moral e intelectual de nossos mestres mpbistas. quem fala é o próprio paulo césar de araújo, biógrafo do rei(está nu)roberto carlos. acho que o cara matou a charada!



A 'compensação' do Procure Saber


Em entrevista ao GLOBO nesta quarta-feira, Paulo Cesar de Araújo especula que um acordo entre Roberto Carlos e o Procure Saber seria a justificativa para que os grandes nomes da MPB estivessem defendendo a necessidade de autorização para a realização de biografias.
- Por que eles entraram nessa briga? Essa é a pergunta que não quer calar - diz o historiador. - Me parece que houve ali uma espécie de compensação. Roberto iria apoiar a agenda do grupo no caso do Ecad (que pedia, entre outras coisas, a fiscalização do órgão) e, em contrapartida, eles apoiariam a causa contra as biografias não autorizadas. Eles próprios falaram que foi Roberto que trouxe essa questão para o grupo, que curiosamente nasceu pedindo transparência, acusando o Ecad de ser uma caixa-preta. Mas isso é só uma hipótese, uma tentativa de entender o que levaria esses artistas a se posicionar dessa forma.
Araújo nota que a tese do Procure Saber tem seus pilares nos processos que Roberto Carlos moveu contra ele e que levaram à proibição da biografia "Roberto Carlos em detalhes".
- Roberto não está se pronunciando agora porque fez isso em 2007, em seus processos contra mim. Quando vi os argumentos do Procure Saber me dei conta de que já tinha lido aquilo em algum lugar. Claro, tinha lido nos meus processos. As duas teses estão lá, a privacidade e o fato de estarem ganhando dinheiro em nome do artista. E o Procure Saber encampa exatamente as duas teses, não há nenhuma originalidade, eles não criaram nada. Agora eles estão tendo dificuldade para defender essa tese estapafúrdia.
Para Araújo, em seus artigos sobre o tema, Chico, Djavan, Gil e Caetano parecem "amarrados":
- Eles tinham que escolher defender ou a privacidade ou o dinheiro. Há uma dificuldade de defender a proibição de biografias não autorizadas para pessoas que sabem o valor do livro, que além de leitores, são autores. Você vê que Caetano é de partir para cima, de surfar em cima de um assunto. Não foi assim nesse caso. Sinto eles amarrados. Porque eles estão defendendo uma tese que no fundo não acreditam. Roberto nesse sentido foi sincero, porque ele acredita nisso. Ele vive num outro mundo, do mercado imobiliário, do cartão de crédito, o mundo do dinheiro. Não tem maiores intimidades com a literatura. Você até entende ele querer queimar um livro. Mas não os outros.
O historiador chama atenção para outra diferença entre Roberto e os artistas do Procure Saber.
- Eles falam como se estivessem sufocados por biografias não autorizadas. O artigo de Djavan é como se fosse um basta aos milhares de livros escritos sobre eles. E não existe nenhuma! Nenhum deles tem. A do Milton é autorizada, a do Gil é autorizada, o Chico tem perfis autorizados... O único que enfrentou essa situação de ter uma biografia não autorizada de fôlego sobre ele foi Roberto.
Araújo demonstra desânimo na voz ao comentar o fato de ter recebido acusações diretas vindas de Roberto Carlos (que num dos processos pediu sua prisão) e de Chico Buarque (que diz que o historiador mentiu), dois artistas que admira:
- Encarar duas instituições nacionais, o príncipe da MPB de um lado e o Rei da música brasileira do outro, não é fácil. Só os fortes sobrevivem.


[http://oglobo.globo.com/cultura/exclusivo-video-mostra-entrevista-de-chico-buarque-autor-de-biografia-de-roberto-carlos-10394660#ixzz2iMwm5Mvf ]

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

dois olhares comovidos

                

*
trecho da série "bach, o mestre da música" (1985), uma coprodução hungria/alemanha oriental, dirigida por lothar bellag. o cara que assiste à excecução é um tal de leopoldo, príncipe de anhalt-köthen, o maior dentre todos os admiradores e patrocinadores de joão sebastião bach (como dizia, "abrasileirando", vinicius de moraes). ulrich thein está soberbo na pele do compositor. o dvd da série, com quase 6 horas de duração, foi lançado há coisa de um ano pela versátil. vale muito a pena assistir.      



*
imagens do programa chico & caetano (1987, rede globo).
nem o chico estava preparado pra ouvir essas modulações...
                                                

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

      
puxa vida, 
minha filhota nasceu!!


mi paraguayta: 2 meses de existenciazinha
                                        

terça-feira, 20 de agosto de 2013

as musas (poema encontrado no cesto de lixo)

                                                                  
     
                                                                  
conheço a vida
como a palma da minha morte, dirá
o poeta, hamlet de escrivaninha
segurando o peso de seu próprio crânio
com o punho erguido.

está aberta a temporada de caça
aos anjos, pensará.

mas o poema, no último estágio
de algum estranho alzheimer
lírico, como uma folha amassada
encarquilhado, esquecerá uma a uma
todas as palavras, os ritmos,
todos os hemistíquios e as rimas raras,
esquecerá os jogos e torneios e tiradas,
imagens avulsas girando
parafusos no nada,
melancolias e epifanias, solipsismos
e saudades.

mas esquecerá tudo mesmo?,
se pergunta, ator-
doado.

sim, tudo,
mesmo as chaves-de-ouro perdidas nas palhas douradas
da velha tarde futura
e imemoriável.

só então o poeta, enervando-se,
coçando a bunda ou
a calva, cansado
de ao menos 30 séculos
e um dia,
só então o poeta,
fechando as cortinas,
ligará a tevê ou o gás (que importa, nesta
altura do madrugada?)
e dormirá.

enquanto isso, noutro canto da cidade,
as musas

trânsfugas, confusas,
mas libertas
dos escaninhos de marfim, das gaiolas
de saliva e vaidade,
calarão 
 elas sempre calam... 

nos fugazes fins de tarde 
da eternidade, já fartas 
das quireras e quimeras das palavras, 
as musas empoleiradas 
em fios elétricos e invisíveis, ou  
suspensas nos raios de um sol elíptico, 
vão olhar e gargalhar, olhar 
e bocejar, empoleiradas.

com alguma sorte, meu 
irmão de tinta, acertarão em cheio 
a cabeça imensa do poeta 
que passa.
                                                                                 

domingo, 18 de agosto de 2013

wisława szymborska/ trad. regina przybycien

                                             
         

         
ALGUNS GOSTAM DE POESIA

 
Alguns –
ou seja nem todos.
Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.
Sem contar a escola onde é obrigatório
e os próprios poetas
seriam talvez uns dois em mil.

Gostam –
mas também se gosta de canja de galinha,
gosta-se de galanteios e da cor azul,
gosta-se de um xale velho,
gosta-se de fazer o que se tem vontade,
gosta-se de afagar um cão.

De poesia –
mas o que é isto, poesia.
Muita resposta vaga
já foi dada a essa pergunta.
Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso
como a uma tábua de salvação.

                     
 [Szymborska, Wisława. Poemas; seleção e tradução de Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.] 

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

margaret atwood/ trad. adriana lisboa II

             
O CANTOR DAS CORUJAS
 

O cantor das corujas seguiu errante para a escuridão.
Mais uma vez não ganhara um prêmio.
Era desse jeito, na escola.
Ele preferia os cantos escuros, camuflava-se
com os cabelos e orelhas dos outros,
e pensava em vogais longas, e fome,
e a amargura da neve funda.
Tais estados de ânimo não atraem resplendor.

O que há comigo? ele pergunta às sombras.
A essa altura eram sombras de árvores.
Por que desperdicei minha corda salva-vidas?
Abri-me aos seus silêncios.
Permiti que crueldade
e penas me possuíssem.
Engoli ratos.
Agora, quando estou no fim, e vazio
de palavras, e sem fôlego,
você não me ajudou.

Bem, disse a coruja, sem fazer um ruído.
Entre nós não existem preços.
Você cantou por necessidade,
como eu canto. Cantou para mim
e minha mata, minha lua, meu lago.
Nossa canção é noturna.
Poucos estão acordados.

       
[Atwood, Margaret. A porta - trad. Adriana Lisboa. Rio de janeiro: Rocco, 2013]

terça-feira, 13 de agosto de 2013

margaret atwood/ trad. adriana lisboa

       


               
OS POETAS AGUENTAM FIRME
                             

Os poetas aguentam firme.
É difícil livrar-se deles,
embora deus saiba que já se tentou.
Passamos por eles na estrada
de pé com suas tigelas mendicantes,
um hábito antigo.
Nada dentro delas agora
além de moscas secas e moedas falsas.
Eles olham reto em frente.
Estão mortos ou o quê?
Têm, contudo, a expressão irritante
dos que sabem mais do nós.

Mais do quê?
O que é isso que alegam saber?
Desembuchem, falamos entre os dentes.
Digam de maneira direta!
Se você tenta obter uma resposta simples,
nesse momento eles se fingem de loucos,
ou então bêbados, ou então pobres.
Vestiram essas fantasias
faz algum tempo,
esses suéteres pretos, esses andrajos;
agora não conseguem mais tirar.
E estão tendo problemas com os dentes.
Esse é um de seus fardos.
Uma ida ao dentista não lhes faria mal.

Estão tendo problemas com as asas, também.
Não temos visto muita coisa de sua parte
no setor de voos, estes dias.
Não os vemos mais parando nos ares, radiantes,
acabaram-se as travessuras aéreas.
Por que diabos são pagos?
(Suponha que sejam pagos.)
Não conseguem sair do chão,
eles e suas penas enlameadas.
Se voam, é para baixo,
para dentro da terra úmida e cinzenta.

Vão embora, dizemos –
e levem sua aborrecida tristeza.
Não os queremos aqui.
Esqueceram-se de como nos dizer
que somos sublimes.
Que o amor é a resposta:
dessa nós sempre gostamos.
Esqueceram-se de como bajular.
Já não são sábios.
Perderam seu esplendor.

Mas os poetas aguentam firme.
São tenazes, acima de tudo.
Não sabem cantar, não sabem voar.
Só dão pulos e grasnidos
e se debatem contra o ar
como se enjaulados,
e contam ocasionais piadas cansadas.
Quando lhes fazem perguntas a respeito, dizem
que falam o que devem.
Cristo, como são pretensiosos.

Há algo que sabem, porém.
Há algo que sabem, sim.
Algo que estão sussurrando,
algo que não podemos ouvir muito bem.
É sobre sexo?
É sobre poeira?
É sobre o medo?

                                                                                                                          
[Atwood, Margaret. A porta - trad. Adriana Lisboa. Rio de janeiro: Rocco, 2013]