sexta-feira, 23 de agosto de 2013

      
puxa vida, 
minha filhota nasceu!!


mi paraguayta: 2 meses de existenciazinha
                                        

terça-feira, 20 de agosto de 2013

as musas (poema encontrado no cesto de lixo)

                                                                  
     
                                                                  
conheço a vida
como a palma da minha morte, dirá
o poeta, hamlet de escrivaninha
segurando o peso de seu próprio crânio
com o punho erguido.

está aberta a temporada de caça
aos anjos, pensará.

mas o poema, no último estágio
de algum estranho alzheimer
lírico, como uma folha amassada
encarquilhado, esquecerá uma a uma
todas as palavras, os ritmos,
todos os hemistíquios e as rimas raras,
esquecerá os jogos e torneios e tiradas,
imagens avulsas girando
parafusos no nada,
melancolias e epifanias, solipsismos
e saudades.

mas esquecerá tudo mesmo?,
se pergunta, ator-
doado.

sim, tudo,
mesmo as chaves-de-ouro perdidas nas palhas douradas
da velha tarde futura
e imemoriável.

só então o poeta, enervando-se,
coçando a bunda ou
a calva, cansado
de ao menos 30 séculos
e um dia,
só então o poeta,
fechando as cortinas,
ligará a tevê ou o gás (que importa, nesta
altura do madrugada?)
e dormirá.

enquanto isso, noutro canto da cidade,
as musas

trânsfugas, confusas,
mas libertas
dos escaninhos de marfim, das gaiolas
de saliva e vaidade,
calarão 
 elas sempre calam... 

nos fugazes fins de tarde 
da eternidade, já fartas 
das quireras e quimeras das palavras, 
as musas empoleiradas 
em fios elétricos e invisíveis, ou  
suspensas nos raios de um sol elíptico, 
vão olhar e gargalhar, olhar 
e bocejar, empoleiradas.

com alguma sorte, meu 
irmão de tinta, acertarão em cheio 
a cabeça imensa do poeta 
que passa.
                                                                                 

domingo, 18 de agosto de 2013

wisława szymborska/ trad. regina przybycien

                                             
         

         
ALGUNS GOSTAM DE POESIA

 
Alguns –
ou seja nem todos.
Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.
Sem contar a escola onde é obrigatório
e os próprios poetas
seriam talvez uns dois em mil.

Gostam –
mas também se gosta de canja de galinha,
gosta-se de galanteios e da cor azul,
gosta-se de um xale velho,
gosta-se de fazer o que se tem vontade,
gosta-se de afagar um cão.

De poesia –
mas o que é isto, poesia.
Muita resposta vaga
já foi dada a essa pergunta.
Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso
como a uma tábua de salvação.

                     
 [Szymborska, Wisława. Poemas; seleção e tradução de Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.] 

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

margaret atwood/ trad. adriana lisboa II

             
O CANTOR DAS CORUJAS
 

O cantor das corujas seguiu errante para a escuridão.
Mais uma vez não ganhara um prêmio.
Era desse jeito, na escola.
Ele preferia os cantos escuros, camuflava-se
com os cabelos e orelhas dos outros,
e pensava em vogais longas, e fome,
e a amargura da neve funda.
Tais estados de ânimo não atraem resplendor.

O que há comigo? ele pergunta às sombras.
A essa altura eram sombras de árvores.
Por que desperdicei minha corda salva-vidas?
Abri-me aos seus silêncios.
Permiti que crueldade
e penas me possuíssem.
Engoli ratos.
Agora, quando estou no fim, e vazio
de palavras, e sem fôlego,
você não me ajudou.

Bem, disse a coruja, sem fazer um ruído.
Entre nós não existem preços.
Você cantou por necessidade,
como eu canto. Cantou para mim
e minha mata, minha lua, meu lago.
Nossa canção é noturna.
Poucos estão acordados.

       
[Atwood, Margaret. A porta - trad. Adriana Lisboa. Rio de janeiro: Rocco, 2013]

terça-feira, 13 de agosto de 2013

margaret atwood/ trad. adriana lisboa

       


               
OS POETAS AGUENTAM FIRME
                             

Os poetas aguentam firme.
É difícil livrar-se deles,
embora deus saiba que já se tentou.
Passamos por eles na estrada
de pé com suas tigelas mendicantes,
um hábito antigo.
Nada dentro delas agora
além de moscas secas e moedas falsas.
Eles olham reto em frente.
Estão mortos ou o quê?
Têm, contudo, a expressão irritante
dos que sabem mais do nós.

Mais do quê?
O que é isso que alegam saber?
Desembuchem, falamos entre os dentes.
Digam de maneira direta!
Se você tenta obter uma resposta simples,
nesse momento eles se fingem de loucos,
ou então bêbados, ou então pobres.
Vestiram essas fantasias
faz algum tempo,
esses suéteres pretos, esses andrajos;
agora não conseguem mais tirar.
E estão tendo problemas com os dentes.
Esse é um de seus fardos.
Uma ida ao dentista não lhes faria mal.

Estão tendo problemas com as asas, também.
Não temos visto muita coisa de sua parte
no setor de voos, estes dias.
Não os vemos mais parando nos ares, radiantes,
acabaram-se as travessuras aéreas.
Por que diabos são pagos?
(Suponha que sejam pagos.)
Não conseguem sair do chão,
eles e suas penas enlameadas.
Se voam, é para baixo,
para dentro da terra úmida e cinzenta.

Vão embora, dizemos –
e levem sua aborrecida tristeza.
Não os queremos aqui.
Esqueceram-se de como nos dizer
que somos sublimes.
Que o amor é a resposta:
dessa nós sempre gostamos.
Esqueceram-se de como bajular.
Já não são sábios.
Perderam seu esplendor.

Mas os poetas aguentam firme.
São tenazes, acima de tudo.
Não sabem cantar, não sabem voar.
Só dão pulos e grasnidos
e se debatem contra o ar
como se enjaulados,
e contam ocasionais piadas cansadas.
Quando lhes fazem perguntas a respeito, dizem
que falam o que devem.
Cristo, como são pretensiosos.

Há algo que sabem, porém.
Há algo que sabem, sim.
Algo que estão sussurrando,
algo que não podemos ouvir muito bem.
É sobre sexo?
É sobre poeira?
É sobre o medo?

                                                                                                                          
[Atwood, Margaret. A porta - trad. Adriana Lisboa. Rio de janeiro: Rocco, 2013]

domingo, 11 de agosto de 2013

autoentrevista

                                                                                                                                          
- rodrigo madeira, o que é a poesia segundo o rodrigo madeira?
- uma segunda árvore respiratória. ahhhhhh...
mas esta, é claro, é uma resposta ajeitadinha, que talvez já não conte se repetirmos a pergunta... muitas vezes escrevo também, como dizia o lorca, "para que gostem de mim", só isso, ainda que eventualmente gostem apenas com despeito ou indiferença. a arte, sem alguém que dê ouvidos, é uma maneira de autismo. 

- rodrigo, você acredita na inspiração?
- claro. sem inspiração, eu sufocaria... mas nem penso nisso. pra todas as outras coisas da vida sou um pouco manco. sou gago, por exemplo. não um gago prosódico. sou um gago social. agora, quanto à inspiração, até que inspiro e expiro direitinho.

- e você já pensou em parar de escrever?
- não, nunca. já houve ocasiões em que ressenti escrever, ou então senti o desejo stalinista de obrigar as pessoas que admiro a gostarem das coisas que escrevo. mas parar de escrever, não, nunca.

- quem, na sua opinião, é o maior poeta de todos os tempos?
- o maiakóvski, com certeza. tinha quase dois metros e meio de altura. se tropeçasse, já cometia suicídio. maldade... mas ele foi o maior, com certeza. a verlaine, por outro lado, pertence o prêmio de mais careca; baudelaire ocupa um distante segundo lugar. na frança, é claro, porque no brasil o drummond é imbatível.   

- rodrigo, qual a sua maior qualidade?
- a poesia.

- e o seu maior defeito?
- a poesia

- deixe-me agora fazer uma pergunta mais esotérica (risinhos bestas), algo que pertence mais assim ao universo espiritualista...
- diga, santa!

- (risos) então... você acredita na vida além da morte? 
                                
                                                     [como dá pra notar, embora o entrevistado seja ridículo mas não de todo idiota, o entrevistador é um verdadeiro jumento batizado, mula de mãe e pai... faça a média!]
                                        
- quase isso, quase isso. acredito na morte além da vida.

- fiquei sabendo também que você escreve um blog, "o blog às moscas", é verdade? por que este nome? conte-nos um pouco a respeito.
- é verdade, é verdade. você está muito bem informado. o blog literário é uma espécie de "obra aberta", né?! sabe aquele termo universitário usado como se fosse o pó do pirlimpimpim, aquele eco do Eco? o nome “blog às moscas” foi uma ironia que virou profecia e se autocumpre. mas, de modo geral, a blogosfera até que é um espaço bem democrático: ela promove uma espécie de reforma agrária virtual, embora a relevância individual seja ainda ditada pelo livre mercado, pela lei fisiocrática da oferta e da demanda e pela lei aristocrática do nome e sobrenome - além dos amigos e conhecidos que possam "curtir" e "curtir" nossas coisas, ou dizer aquela palavra sensualíssima e indecente que nos faz revirar os olhinhos: "genial, genial!"... o blog é a verdadeira “obra aberta”, em todos os sentidos: aberta, como disse o millôr, a todas as cismas, disparates, máximas, raciocínios, plácitos, despropósitos, ditos, escólios, insultos, necedades, miopias, gnomas, hidrofobias, sofismas e dizidelas... se eu quiser, posso até postar um vídeo pornô no meu blog. posso, não posso? o blog é aberto, mesmo que ninguém ou quase ninguém - as moscas de padaria, como eu afetuosamente nos defino -, mesmo que quase ninguém entre: aberto a revisões e revisões e revisões obsessivas, ao work in progress, aberto às patéticas autoentrevistas, aberto a "le silence éternel de ces espaces infinis", a comentários, réplicas e necas de pitibiriba...    

- sim, sim, hehe, entendo. uma última perguntinha, rodrigo, só mais uma... você não é exatamente um iniciante, por assim dizer... então, pra terminarmos, você gostaria de dizer algo aos iniciantes?... aqueles que... 
- não iniciem! mas, se iniciarem, saibam que isso nunca vai ter fim. e que provavelmente faltarão meios...

- então não vale a pena?...
- mas não se trata de valer a pena, piá! nunca se tratou disso. é como eu te perguntar se a vida vale a pena. tem sentido perguntar isso, minha santa? a vida vale a pena?
                                                                                             

quarta-feira, 31 de julho de 2013

poética #2

         
que meu poema não seja
água parada,
fervilhando horror
ou desespero
com a calma
perigosa dos vasos;
mesmo que esteja
em aparência estático,
seus ossos expostos
insinuem do esqueleto
duro e árido
um movimento.

que meu poema
não seja parado. jamais
como a ave embalsamada,
arremedo, lembrança de vida
na carne da morte,
mesmo que um pássaro
morra em minha voz:
que ele fique respirado
ainda
seu último suspiro
na eternidade precária
da página.

que não seja feito
uma catedral,
este navio encalhado
há séculos,
mesmo que haja
um quê de reza,
de enormidade, de infinitude.

que seja, ainda assim,
bar de beira de estrada,
vivo e à margem da vida,
onde ninguém dorme,
ninguém é sepultado,
onde se vai e se vem
e se confesse
tudo quanto for (extra, 
extra!)ordinário:

      a puta
              o bêbado
       o assassino
                             o argentário
                                    o louco
o tímido
            o mentiroso
            o incoerente.

que a chuva chova, extrínseca,
em meu poema, que o mar
invada as páginas
e salgue e enferruje
e adoeça as palavras,
que o tempo passe
dentro do poema
e o envelheça,
seus ramos e cabelos,
e amarele seus dentes
e vinque sua carne
e enfraqueça seu grito.

mas que ele seja
sempre
(até o fim de sempre),
mesmo que feio,
fétido,
carcomido,

um fato inequívoco
da primavera.


(pássaro ruim, 2009) 

terça-feira, 16 de julho de 2013

robert frost

                                               

                 
                             
JUNTANDO FOLHAS


As pás recolhem as folhas
Como a colher ou a mão,
E um saco cheio de folhas
É leve como um balão.

O dia todo eu farfalho
Fazendo um baita alarido,
Como uma lebre ou um cervo
Que pronto houvessem fugido.

Mas me escapam ao enlace
O que em montes é disposto,
Transbordando de meus braços
E voando no meu rosto.

Se várias e várias vezes,
Até lotar um galpão,
Eu carrego e descarrego,
Que me resta disto então?

Quase nada têm de peso,
E sendo assim desbotadas
Do contato com a terra,
Têm por cor um quase nada.
                                     
Quase nada de proveito.
Mas a safra é safra feita,
E quem há de dizer onde
Vai parar esta colheita?

trad. r.m.


*

GATHERING LEAVES


Spades take up leaves
No better than spoons,
And bags full of leaves
Are light as balloons.

I make a great noise
Of rustling all day
Like rabbit and deer
Running away.

But the mountains I raise
Elude my embrace.
Flowing over my arms
And into my face.

I may load and unload
Again and again
Till I fill the whole shed,
And what have I then?

Next to nothing for weight,
And since they grew duller
From contact with earth,
Next to nothing for color.

Next to nothing for use.
But a crop is a crop,
And who's to say where
The harvest shall stop?
           

quinta-feira, 11 de julho de 2013

o espelho

     


                   
de camisa aberta
em frente a mim mesmo.

o espelho é a prisão profunda
de que somos vigias e presos,

condenados e carcereiros.
e no entanto o homem

é observado, triste alimária
de si mesmo. e no entanto

milhões de olhos o observam
atrás deste, de todos os espelhos.

e no entanto (otnatne on e)
nada há de mais solitário

que o homem (povo estranho e
ninguém) num espelho.


2

nu, já vai
vestido
em pesada couraça
de nudez: imagem

                 (inervação
                 do vidro)

linguagem
solidez permanente-
mente
líquida

apertar a visão:
homem
inseto
árvore

num espelho
quantos
estilhaços
               cabem?


3

a poesia é a última fronteira,
sempre inédita e a mesma.

ali, a loucura expatriou-se
na lucidez, pura e simples e suja e

     
      s  (sangue)    e
n        e
      m
                     t
o            i
                        d


4

o espelho de um narciso apóstata
reflete nos olhos suas costas.

o anonimato é a fundação
de meu espírito, arco árabe

de meu rosto. sou anônimo
como um cão vira-lata

condecorado com sarna, chagas,
laureado de moscas.

sou mais belo agora, cicatrizando
o tempo na carne a carne nas horas

do que quando fui belo bela criança
que se olhou no espelho de casa

como pássaro bebendo água (ingênuo
de imagem e essência) na poça.

superfície burra, sincera, óbvia,
ser é seres é sermos é: ?


RENÉ MAGRITTE, reprodução proibida 
(retrato de edward james), 1937


5

o espelho, coisa mágica do vazio,
feito a arte, inventa volumes:

minha imagem é feita de carne,
doce e arredia como perfume.


6

também reflito o espelho (eu, outro)
quando não há nada em sua frente.

o espelho, raso milhares de abismos,
fez-se a porta para a liberdade  

o espelho espelha a cidade,
o espelho raso como a página 

(vejo minhas víscera no espelho)
infinito afora, além, por dentro


(pássaro ruim, 2009)

segunda-feira, 8 de julho de 2013

carta aberta

                 
farei minha casa de árvore
no bonsai.

janeleira como olhos,
buliçosa,
a araucária cujos galhos
serão verdes cobras...

mas o veneno será todo meu.

vou contente,
saio sem nove horas.
vou lavar minhas únicas roupas
nos arroios da saliva,
quará-las à luz da lua.

farei minha casa de árvore
no bonsai.

amarelecida de fruta-cor e mijo,
a página,
a língua que lhe falta,
indaga-se:
– onde estás? onde estás,
tu que sangravas tanto?

escreva-me de mim o que
quiseres, página,
não me ouço mais!
assino-te em branco,
fundo tuas margens
num fio de catástrofe.
as palavras já são calhaus.

longe, fui colher insetos
                    através da noite

e afio minha faca no orvalho.
                         

(sol sem pálpebras, 2007)

sexta-feira, 5 de julho de 2013

*

     
(pelo ar que vibra)



a aranha invisível
escuta o canto incricrível
dos grilos da noite

r.m.


*


mesmo entre os insetos –
uns sabem cantar,
outros não.


KOBAYASHI ISSA
(a partir de versão em inglês de robert hass)

quinta-feira, 4 de julho de 2013

os gafanhotos de joão batista

                   
os chavelhos        curtos
estudam o espaço:
micromilimorte
dos grãos e          das folhas.

verde é seu estrídulo
verde como a alface.
canto: este amolar
de fêmures-faca

em nervuras de asas.
micromilimorte
do que em mim verdeja:

a tarde de suas
carnes tão azedas
corre nos meus lábios.


(pássaro ruim, 2009)

lêdo ivo

   
O INTERESSE
         

Um pássaro canta
na manhã irônica.
Ó pássaro escarninho,
não cantes para mim.
Leva para bem longe,
para um ninho distante,
a sombra funesta
de tua plumagem.
Recuso-me a escutar
o teu canto de fel.
Não quero partir
na negra viagem.
só me resta ouvir
entre folhas e frutos
o zumbido da vida,
essa abelha insistente
que espalha na manhã
de homens e bichos
uma lição de mel.


[Ivo, Lêdo. Plenilúnio. Rio de janeiro: Topbooks, 2004.]

terça-feira, 2 de julho de 2013

nuno ramos

     
nuno ramos, choro negro (2004)


           
Terei de cantar os gafanhotos 


como um profeta, pedir perdão às formigas
que matei
(milhares)
às asas dos besouro
que arranquei, às barbatanas
de tubarão que comi
terei de amar cada mariposa
e mesmo o creme adstringente
culinário que sai de dentro das baratas
espatifadas sob a sola das sandálias?
Sim, terá.
E ainda por cima
voltar vestido de duende
uma glande enorme, condão, tocando
o pelo dos bichos
dizendo alto o nome deles, em sua própria
língua? Elefante sou eu
dromedário, eis aqui o teu irmão?
Terei de voltar
voltar para sempre
apontando o dedo
enumerando o que já é real
sem mim, mas não propriamente
vivo sem mim? Por que amei
assim, se serei punido? Por que não me deixam ir
sem a sombra de um verso
sem abraçar a pele imunda
do que, jacaré, já morreu?
Porque toquei minha carneira com meu dedo
afundei a digital na cona dela
e vi o branco dos seus olhos
entre os cílios, sob a cúpula
cheia de uma luz pesada mas sempre
(sempre)
transparente, como o alto de uma ogiva
gótica
misturado ao interior viscoso de uma jabuticaba
terei de amar o que não é meu, matéria confusa, pelanca
física que tento cantar?
Sim, terá.


[Nuno Ramos, in: Jornal Cândido, n 12, julho 2012.]

quinta-feira, 27 de junho de 2013

louva-a-deus

     

                               
derredor
tudo é uma única carne,
massa de sangue e manhãs,
um único crime e milagre;
nas contorções do ar,
a mesma espessura do minério.

piso folhas secas, manchadas
de outono e icterícia.
avanço, anjo carnívoro,
enfiando os dedos azuis nos
bolsos furados do existir, nas
alegrias de alto teor alcoólico, nos
instantes como sais de prata,
frutos, fósforos.
caibo inteiro em minha solidão.

não estou só.
um perfume gordurento do corpo
(nu sob as roupas) rói mucosas e 
epidermes e
me impele ao reino onde sou
bicho, outro, construção remedida
pelo arqui-
teto de estrelas. meu fedor
é uma chama! me depõe nova-
mente sobre as árvores.

eis que vejo: o louva-a-deus. 
olha-me como 
              se eu fora de fora, 
alienígena, um cão sobre a jangada.
olhamo-nos 
              circunspectos.

será que pensa, será que sofre
quando curva a cabeça, beato e fera?
remexe o espéculo de antenas
(não dirá palavra),
experimenta as asas,
mantídeo de entre folhagens.

penetro hipoteticamente
sua armadura
em verde-escarro,
ou por baixo
             seu espigão fracionado
e ausculto
a víscera espumando morte
e espanto.

existe nele um rancor que é meu,
uma alegria radiante.

louvamos ambos,
de espinhos armados,
o sol que brilha indiferente
sobre deus e o mundo.

                                           
(sol sem pálpebras, 2007)

terça-feira, 25 de junho de 2013

adriano scandolara

              
* A.S. apresenta-se hj (dia 25, terça-feira) no wonka bar. 

             

A paixão segundo A.S.


Roguei a teus olhos   perdão
ó, barata,
por uma epifania,
o sal primordial dos doces olhos
e a opressão da tarde
indolente
como a queda de dez andares
vista em vidro
fosco,
o chinelo te esmaga.


[Scandolara, Adriano. Lira de lixo. São Paulo: Editora Patuá, 2013.]

segunda-feira, 24 de junho de 2013

ferreira gullar

             
A ALEGRIA


O sofrimento não tem
nenhum valor,
não acende um halo
em volta de tua cabeça, não
ilumina trecho algum
de tua carne escura
(nem mesmo o que iluminaria
a lembrança ou a ilusão
de uma alegria).

Sofres tu, sofre
um cão ferido, um inseto
que o inseticida envenena.
Será maior a tua dor
que a daquele gato que viste
a espinha quebrada a pau
arrastando-se a berrar pela sarjeta
sem ao menos poder morrer?

A justiça é moral, a injustiça
não. A dor
te iguala a ratos e baratas
que também de dentro dos esgotos
espiam o sol
e no seu corpo nojento
de entrefezes
                     querem estar contentes.


[Gullar, Ferreira. Toda Poesia. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2008.]

terça-feira, 18 de junho de 2013

"orgasmo cívico"

   
foto de gustavo gantois (portal terra)
       


FILHOS DA ÉPOCA


Somos filhos da época
e a época é política.

Todas as tuas, nossas, vossas coisas
diurnas e noturnas,
são coisas políticas.

Querendo ou não querendo,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um aspecto político.

O que você diz tem ressonância,
o que silencia tem um eco
de um jeito ou de outro político.

Até caminhando e cantando a canção
você dá passos políticos
sobre um solo político.

Versos apolíticos também são políticos,
e no alto a lua ilumina
com um brilho já pouco lunar.
Ser ou não ser, eis a questão.
Qual questão, me dirão.
Uma questão política.         

(...)

            wisława szymborska 
            (trad. regina przybycien)
             

sábado, 15 de junho de 2013

                 
i. m. Cyrene de Mello Pozzo (1929-2013).

para meu amigo de infância, meu irmão
ricardo pozzo.

neste momento.
                

*
                                 
5

o último fósforo contorceu-se,
exausto.

a aurora respira
com dificuldade

como se arrastasse
um galeão no seco.

esta agulha atravessa
todos os dedais.

(...)

mas, exatamente onde falta
a permanência, (onde falta)
a eternidade, ainda resta

a ternura.
                     

quinta-feira, 13 de junho de 2013

leonard cohen

                                 
SUMMER HAIKU


Silence
And a deeper silence
When the crickets hesitate


                      LEONARD COHEN
   

*


HAICAI DE VERÃO


Silêncio
E um silêncio maior
Quando os grilos hesitam
         

quarta-feira, 12 de junho de 2013

margaret atwood/ trad. adriana lisboa

                             

arte de kristine paulus


GRILOS


Setembro. Ásper silvestre. Uvas rosadas,
pequeninas e amargas,
o gosto do índigo do inverno
já floresce dentro delas.

A casa é invadida por grilos,
entraram em busca do calor.
Esgueiram-se para dentro do forno
e para trás da geladeira,
armam investidas pelo chão
cantando uns para os outros:
Aqui, aqui, aqui, aqui. 
Pisamos neles por engano,
apanhamo-los, às dúzias,
dúzias de consciências negras contorcendo-se,
e jogamos porta afora.

Eles não têm o que comer,
não conosco. Não há mais colheitas ou celeiros,
só mesas e cadeiras.
Ficamos afluentes demais.
Dentro de casa, morreriam de fome.
Espere, espere, espere, espere, dizem. Temem
morrer congelados. Sob a vassoura
sua armadura negra estala.

A formiga e o gafanhoto têm
seu lugar em nossos bestiários:
a primeira acumula riquezas, o segundo
gasta. Ficamos no meio do caminho, aprovamos
a formiga (cabeça), adoramos
o (coração) gafanhoto,
emulamos a ambos: por que escolher?
Armazenamos e vadiamos.

Quanto aos grilos, foram
censurados. Não temos
grilos em nossas lareiras. Não temos lareiras.

Ainda assim, eles nos acordam
à fria meia-noite,
pequenas vozes tímidas que não podemos localizar,
pequenos relógios tiquetaqueando,
relógios baratos; pequenas lembranças de metal:
tarde, tarde, tarde, tarde,
em algum lugar em meio aos lençóis,
nas molas das camas, no ouvido,
as hordas dos mortos de fome
voltam como as batidas de nossos corações.


[Atwood, Margaret. A porta - trad. Adriana Lisboa. Rio de janeiro: Rocco, 2013]

segunda-feira, 10 de junho de 2013

drummond

                                                                                                                                                   
CAÇA NOTURNA


No escuro
o zumbido gigante do besouro
corrói os cristais do sono.
Que avião é esse, levando para Teerã
uma amizade um amor um bloco de oitenta indiferenças
que não acaba de passar e circunvoa
sobre a casa perdida na floresta
imobiliária?

Vai o ouvido apurando
na trama do rumor suas nervuras:
inseto múltiplo reunido
para compor o zanzineio surdo
circular opressivo
zunzin de mil zonzons zoando em meio
à pasta de calor
da noite em branco.

São as eletrobombas em serviço.
A música da seca.
Pickup que não para de girar.
Gato que não cansa de roncar.
Ah, como os conheço!
Fazem parte da vida esses possantes
motores de tocaia
na caça lunar de água, lebre esquiva
sugada
por um canal de desespero e insônia.

Que gemido grilado, apenas zi,
tímido se incorpora ao zon compacto?
Que vozinha medrosa mais suspira
do que zoa, no côncavo noturno?
O motorzinho do poeta,
pobre galgo da casa,
1/4 de HP, caçando em vão.


[Andrade, Carlos Drummond de. Lição de Coisas (1962). São Paulo: Companhia da Letras, 2012.]

sábado, 8 de junho de 2013

                                                                     
Se tivesse escrito
dom quixote (III / o esguio propósito)
de drummond

obra menor       (um poema com patas
                           que farelam nos dedos)

eu seria bem mais
que o entomologista
que não fui
eu seria 

um cuteleiro que apronta
os talhares dos grilos 

o cardiólogo da aurora
passarinheiro

                      de gafanhotos




















***


  
III / O esguio propósito

Caniço de pesca
fisgando o ar,
gafanhoto montado
em corcel magriz,
espectro de grilo
cingindo loriga,
fio de linha
à brisa torcido,
              relâmpago
              ingênuo
              furor
de solitárias horas indormidas
quando o projeto a noite obscura.
Esporeia
o cavalo,
esporeia
o sem-fim.

                       DRUMMOND


* os 21 poemas de drummond, escritos no início dos anos 70, baseavam-se nos 21 desenhos a lápis sobre cartão que cândido portinari produzira, em 1956, para ilustrar uma edição do dom quixote.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

epígrafe


       
one fly makes a summer

                      MARK TWAIN
         

sexta-feira, 31 de maio de 2013

o inseto

                                         
                              PA-
                        LARVA
        
                           ferreira gullar


o soneto 
fechou-se à 
verborreia,
fez careta

ao discurso.
tem agora
o hemistíquio
dos insetos

dissecados.
e entreabriu-se
aos desvãos,

por mais mínimos,
como quem 
se abre ao mar.


2

o inseto de
palarva e tinta,
multiplicado
por suas asas,

despega da
margem esquerda.
magro e comprido,
no afã de ser

fero e revivo,
deixará a página
(conta se morre

pouco depois?)
pelas paredes
sem transcendência.


3

antes de pousar
de uma vez por todas
o sonetinseto
revela-se inteiro

à sanha suctória
nas dermes da vida:
imos, méis e conas.
morto, vai feder

quase impercebido:
mínimos abismos.
seu registro no 

papel será como
a abelha esmagada
correndo no vidro.


4

ou a fibrólise:
carne do susto,
e não do sono,
mil florações.

duma crisálida
renascerá:
sangue de tinta,
asas-sulfite,

a carnadura 
de gosma e de âmbar.
para queimar

no ar e nas veias,
como um veneno,
como o verão.

          
(pássaro ruim, 2009)