quarta-feira, 30 de maio de 2012

terça-feira, 29 de maio de 2012

paul celan (II) / trad. claudia cavalcanti

       
SALMO        

Ninguém nos molda de novo com terra e barro,
ninguém evoca o nosso pó.
Ninguém.

Louvado sejas, Ninguém.
Por ti queremos
florescer.
Ao teu
encontro.

Um nada
éramos nós, somos, continuaremos
sendo, florescendo:
a rosa-do-nada, a
rosa-de-ninguém.

Com
o estilete claralma,
o estame alto-céu,
a coroa rubra
da palavra púrpura, que cantamos
sobre, oh, sobre
o espinho.

tradução: claudia cavalcanti



PSALM

Niemand knetet uns wieder aus Erde und Lehm,
niemand bespricht unsern Staub.
Niemand.

Gelobt seist du, Niemand.
Dir zulieb wollen
wir blühn.
Dir
entgegen.

Ein Nichts
waren wir, sind wir, werden
wir bleiben, blühend:
die Nichts-, die
Niemandsrose.

Mit
dem Griffel seelenhell,
dem Staubfaden himmelswüst,
der Krone rot
vom Purpurwort, das wir sangen
über, o über
dem Dorn.

sábado, 26 de maio de 2012

eliseo diego

       
* poema surrupiado (no original) de http://daniellagrego.blogspot.com.br/



TESTAMENTO

Havendo chegado ao tempo em que
a penumbra já não me consola
e me apequenam os presságios pequenos;

havendo chegado a este tempo;

e como a borra do café
súbito me abre agora
suas redondas bocas amargas;

havendo chegado a este tempo;

e já perdida toda esperança de
algum merecido ascenso, de
ver o sereno manar da sombra;

e eu sem possuir senão o tempo;

sem possuir mais, enfim,
que minha memória das noites e
sua vibrante delicadeza enorme;

sem possuir mais
entre o céu e a terra que
minha memória, que este tempo;

decido fazer meu testamento.

É este:
deixo-lhes 

o tempo, todo o tempo.

     
tradução: rodrigo madeira
         

sexta-feira, 25 de maio de 2012

                 
Caminhamos entre a infância (a eternidade) e a morte (a morte).  
        

quinta-feira, 24 de maio de 2012

vida

              
quando a morte abriu a porta da garagem,
anne, usando o velho casaco,
acelerou.
         

quarta-feira, 23 de maio de 2012

segunda-feira, 21 de maio de 2012

anne sexton

                                   
CORAGEM

É nas pequenas coisas que o vemos.
O primeiro passo da criança,
tão incrível como um terremoto.
A primeira vez que você andou de bicicleta,
desequilibrando-se pela calçada.
A primeira surra, quando seu coração
saiu sozinho em viagem.
Quando o chamaram de bebê chorão
ou pobre ou gordo ou maluco,
e o tornaram um completo estranho,
você bebeu aquele ácido
e o ocultou.

Mais tarde,
se você enfrentou a morte das balas e bombas,
não o fez com um estandarte,
mas apenas com um chapéu para
cobrir seu coração.
Você não afagou sua fraqueza
embora ela estivesse ali.
Sua coragem era um carvão
que você continuou engolindo.
Se seu camarada o salvou
e morreu fazendo-o,
então aquela coragem não era coragem,
mas amor; amor tão simples como espuma de barbear.

Mais tarde,
se suportou um grande desespero,
você o fez sozinho,
recebendo uma transfusão do fogo,
raspando as crostas de seu coração,
e então o arrancando feito uma meia.
Depois, meu irmão, você pulverizou sua pena,
fez-lhe uma massagem nas costas,
então a cobriu com uma manta
e, após haver dormido um pouco,
ela acordou para as asas das rosas
transformada.

Mais tarde,
quando tiver de encarar a velhice e a natural conclusão,
sua coragem ainda se mostrará nas pequenas coisas,
cada primavera será uma espada que você afiará,
aqueles que você ama viverão em febres de amor
e você barganhará com o calendário
e no último instante,
quando a morte abrir a porta dos fundos,
você vai calçar suas pantufas
e sair.

tradução: rodrigo madeira

poema em inglês

sexta-feira, 18 de maio de 2012

carlito azevedo

                                                         












                   
                 
AO RÉS DO CHÃO


I

Um menino passou na ventania,
um momento passou de epifanias.

É a memória que quer, com seus acervos,
expor-se em luminosos néon-nervos?

É, doendo, o tempo, essa doença
da infância, a gerar velhos de nascença?

É que tudo, se passa, vira nada?
mesmo que anele ainda a alugada

e sexy roupa fátua do poema
(seu rol de rimas ricas, diadema

tremeluzente), e até as gotas finas,
que no ar denso, porém, abrem ravinas

vertiginosas e em revolução,
antes de explodirem ao rés do chão

(ciscos de água luzindo nos lancis),
relembrem, extraluzes, o céu gris?


II

A trama era tão simples, sob um céu
tão simples, sem visões e sem um véu

sobre os olhos... Num poderoso instante
um ponto se congela e, circundante,

tudo passa a fluir lento, arrastado,
e à volta desse círculo um mais largo

se abre onde prossegue normalmente
a vida e seu caudal; mais abrangente

há outro onde tudo é tão veloz
que nem o percebemos. Onde a foz

e onde a nascente é algo indecidível:
se tudo nasce quieto e até um nível

vertiginoso vai-se acelerando,
ou se, ao contrário, é justamente quando

chega ao seu fim que o fluxo se detém,
nascido acelerado e por ninguém?


III

A ideia é não ceder à tentação
de escrever o poema desse não-

lugar, desse círculo congelado
sem vasos comunicantes, fechado

em si, em sua pose, sua espera,
a ideia é alcançar a outra esfera,

não aquela onde tudo flui tão lento,
nem a outra, comum no movimento,

mas a última, a roda da vertigem
(esteja ela no fim ou na origem),

a ideia é pôr as duas mãos no centro
nervoso do delírio (aquele vento

na praça), para que a palavra ativa
congele a vida, como sói, mas viva

mesmo ferida da paralisia,
fluxo paralisado, a poesia.


IV

Quando a chuva passou (quando assentou-se
a ideia do dilúvio) e o que ela trouxe,

a memória encolheu-se como poça
de água limpa que em si mesma se empoça

e deixa de existir, sutil velame
na densa luz que se evapora à lâmina

d'água. Assentou-se o dilúvio, o presente
investiu todo espaço lentamente:

cada curva do espaço, cada canto
de curva, cada praia de amianto.

Assentou-se o dilúvio. Sob o acosso
da quietude, que é toda um alvoroço

(tal como é lisa a pele onde se roça
a superfície áspera e lenhosa

do gozo, que lacera o tempo), a hora
retomou seu fiapo de memória.

                                             
                          CARLITO AZEVEDO

terça-feira, 15 de maio de 2012

fabrício carpinejar

     
O livro é de 2045, escrito aos 72 anos.
Como posso ter morrido antes, decidi antecipar a velhice. 
(carpinejar)

*

DÉCIMA ELEGIA

Só na velhice o vento não ressuscita.
A água dos olhos entra na surdez da neve
e escuta a oração do estômago, dos rins, do pulmão.

O sono desce com a marcha dos ratos no assoalho.
Tudo foi julgado e devemos durar nas escolhas.

Só na velhice os grilos denunciam o meio-dia.
O exílio é na carne.

Esmorece o esforço de conciliar a verdade
com a realidade.
A neblina nos enterra vivos.

(...)

Só na velhice a forma está na força do sopro.
Respeito Lázaro, que a custo de um milagre
faleceu duas vezes.

O medo é de dormir na luz.
Lamento ter sido indiscreto
com minha dor e discreto com minha alegria.

Só na velhice a mesa fica repleta de ausências.
Chego ao fim, uma corda que aprende seu limite
após arrebentar-se em música.
Creio na cerração das manhãs.
Conforto-me em ser apenas homem.

Envelheci,
tenho muita infância pela frente.

                       
                         FABRÍCIO CARPINEJAR               

domingo, 13 de maio de 2012

t.s. eliot/ trad. rodolfo jaruga

               
* surrupiado do blog pó&teias.
para ler o poema na íntegra clique aqui.

               
       
GERONTION

Eis-me aqui, um velho em mês de seca
a quem um jovem lê, enquanto espera a chuva.
Jamais estive entre os umbrais ardentes,
nem combati sob a morna chuva,
nem afundei os meus joelhos
no sal do lodo, brandindo um sabre,
aferroado por mosquitos, combatido.
A minha casa é casa derruída.
E o judeu se achega ao parapeito da janela,
o proprietário,
parido num café qualquer lá de Antuérpia,
recheado de pústulas em Bruxelas,
retalhado e descascado em Londres.
O bode tosse à noite, acima, nas campinas;
rochas, musgos, flor-da-pedra, ferro, bostas.
A mulher cuida da cozinha, faz chá,
espirra de noitinha, tateando a goteira lamuriante.
Eu, um velho,
uma cabeça tola em lugar nenhum.
(...)

tradução: rodolfo jaruga



arte de alberto giacometti

quinta-feira, 10 de maio de 2012

a 4 patas (II)




              
para

crianças em extinção
& adultos bestas quadradas

  
             
Centopeia

A centopeia, depois de veia,
ficou coroca:

resolveu jogar as pernas fora
e virar uma minhoca.
       
***

Tráfego aéreo

A periquita esbravejava
de ave-autoridade pra ave-avoada:

– Vinha vindo na contramão...
Nem mais um piu, seu sanhaço!
Só mais uma infração
e perde o brevê de pássaro!

***

O cão

A cachorra falou pro cão:
– Uau-au, que gatão!!

E o cachorro indignado,
sem entender a azaração,
girou atrás do próprio rabo
pra dar ao gato uma lição.
       
***

Vaca

A vaca leiteira pensa
que é vegetariana...
Mal sabe a boboca
que ao abocanhar tanta grama
engole também
formiguinhas e minhocas.  
   
***

Joaninha

João era uma joaninha
que não queria ser João.
Ganhou então um belo dia
(Dia da Mãe Natureza)
as tão sonhadas pintinhas
na mesa de operação.
   
***

Peixes mortos

Perguntou um peixe morto
para outro peixe morto,
com olhos esbugalhados
de peixe e espanto:

– Como é que pode,
lavados de sal e água,
de correntes e ondas,
federmos tanto?
                 
***

Estrela-do-mar

A estrela-guia do mar,
escura, sozinha, quase enterrada,

guiava ao fundo de outro céu
uma barquinha naufragada.
       
***

O homem

O homem também é um bicho,
seja ele mau, seja ele bom:

o que faz de um homem
homem dentre os bichos
é só o instinto da invenção.
                                        
                LU CAÑETE E RODRIGO MADEIRA
  

* NOTA DOS CRIANÇAS:
brevê: autorização para pilotar aviões, helicópteros, pipas e passarinhos.
vegetarianos: pessoas e animas da família dos grilos e bichos-grilos.
               
** mais 8 poeminhas do livro de pano "A 4 Patas" (ed. Língua de Trapo/ tiragem: 1 cópia)

terça-feira, 8 de maio de 2012

         
ENCHAM-SE os forros da lembrança.
existam!
traia-se à maturidade
a verdura da infância.

a menina é arrancada do chão,
antes da escola,
da igreja, do trabalho,

dos carros e contas
e casamentos,

dos tribunais, asilos
e cemitérios,

como flor guardada
dentro de um livro
– enquanto a outra cresce,
adultescendo
pouco a pouco.

nunca mais a vi.

segurei-a nas palavras o que pude,
com minhas mãos
(as mesmas quando
de manhã na lâmina)
estropiadas
de ternura
            e espanto.

não é apenas saudade,
menina,

é infânsia.             


* trecho final do poema "as crianças #2" (pássaro ruim, 2009) 

domingo, 6 de maio de 2012

arthur rimbaud/ trad. ivo barroso

                               
rimbaud aos 12 anos (1866)
             
















       
OS POETAS DE SETE ANOS    

E então a Mãe, fechando o livro do dever,
Lá se ia, satisfeita e orgulhosa, sem ver
Em seus olhos azuis sob as protuberâncias
Da face, a alma do filho entregue a repugnâncias.

O dia inteiro ele suou de obediência; que
Inteligente! E entanto, uns tiques maus, um quê
Já demonstravam nele acres hipocrisias.
No escuro corredor, junto às tapeçarias
Mofadas, estirava a língua, os punhos fundos
Nos bolsos e, fechando os olhos, via mundos.
Sobre a noite uma porta abria-se: na rampa da
Escada, a resmungar, o viam, sob a lâmpada,
Como um golfo de luz a pender do teto. E no
Verão, abatido, ar estúpido, o menino
Teimava em se trancar no frescor das latrinas
Para pensar em paz arejando as narinas.

Quando o jardim de trás de casa se lavava
Dos odores do dia e, no inverno, enluarava,
Jazendo ao pé do muro, enterrado na argila,
Para atrair visões esfregava a pupila
E ouvia o esturricar das plantas nas treliças.
Pobre! para brincar só com crianças enfermiças
De fronte nua, olhar vazio que lhes erra
Pela face, escondendo as mãos sujas de terra
Nas roupas a cheirar a fezes, todas rotas,
Falando com essa voz melosa dos idiotas!
E quando o surpreendia em práticas imundas,
A mãe se horrorizava; o menino, profundas
Carícias lhe fazia, a apaziguar-lhe a mente.
Era bom. Ela tinha o olhar azul,  que mente!

Aos sete anos compunha histórias sobre a vida
No deserto, onde esplende a Liberdade haurida,
Florestas, rios, sóis, savanas! Recorria
A revistas nas quais, encabulado, via
Italianas a rir e espanholas bonitas.
Quando vinha, olhos maus, louca, em saias de chita,
A filha - oito anos já  do operário ao lado,
A pirralha infernal, que após lhe haver pulado
Às costas, de algum canto, a sacudir as roupas,
Ele por baixo então lhe mordiscava as popas,
Porquanto ela jamais andava de calcinha.
 Cheio de pontapés e socos, ele vinha
Trazendo esse sabor de carne para o quarto.

Da viuvez infernal dos domingos já farto,
Junto à mesa de mogno, empomadado, a ter de
Recitar a bíblia encadernada em verde
E a sofrer a opressão dos sonhos maus em que arde,
Já não amava Deus; mas os homens que, à tarde,
Via, sujos, chegando em suas casas baixas,
A ler seus editais entre risos e pragas.
– Sonhava a vastidão de prados onde as vagas
De luz, perfumes bons, douradas lactescências
Se movem calmamente e evolam como essências.

E como saboreava antes de tudo arcanas
Coisas, se punha, após baixar as persianas,
A ler no quarto azul, que cheirava a mofado,
Seu romance sem cessa em sonhos meditado,
Cheio de plúmbeos céus, florestas, pantanais,
Flores de carne viva em bosques siderais,
Vertigens, comoções, derrotas, falcatruas!
 Enquanto progredia a agitação nas ruas
Embaixo,  só, deitado entre peças de tela
De lona, a pressentir intensamente a vela!

tradução: ivo barroso

quinta-feira, 3 de maio de 2012

saraghina

A primeira vez de um menino
         
                               
Às vezes tenho a impressão de que tudo, absolutamente tudo em minha infância é inventado.
                                 

quarta-feira, 2 de maio de 2012

e.e. cummings (II)


                              
 paul klee, balão vermelho (1922)

                   
[na Já-]
           
na Já-
primavera        quando o mundo é lama-
licioso o pequeno
perneta
vendedor de balões

apita         longe     e pipi

e eddieebill vêm
correndo das bolinhas de gude e
piratarias e é
primavera

quando o mundo é lamaravilhoso

o esquisito
velho homemdosbalões apita
longe          e        piipii
e bettyeisbel vêm dançando

de pular corda e amarelinha e

é 
primavera
e

      o

           Homem-balão

pé-de-cabrito         apita
longe
e
piiipiii

                                 
treason: rodrigo madeira


[in Just-]

in Just-
spring         when the world is mud-
luscious the little
lame balloonman

whistles      far     and wee

and eddieandbill come
running from marbles and
piracies and it´s
spring

when the world is puddle-wonderful

the queer
old ballonman whistles
far        and        wee
and bettyandisbel come dancing

from hop-scotch and jump-rope and

it´s
spring 
and

        the

                goat-footed
              
ballonMan            whistles
far
and
wee
                                     

domingo, 29 de abril de 2012

william blake

                              


O PEQUENO VAGABUNDO

Mãe querida, mãe querida, a Igreja é tão fria;
Mas o Boteco, quentinho, é pura alegria!
No mais, é fato, aqui já estou acostumado;
Este hábito no céu não será tolerado.

Se ofertassem, porém, ali mesmo na Igreja,
Uma agradável lareira e alguma cerveja,
 A gente louvaria todo e qualquer dia,
E da Igreja ninguém jamais se apartaria.

Junto ao pároco, bebendo e pregando, então
Cantaríamos, aves soltas no verão;
Dona Descontente, sempre na igreja, sempre,
Não tinha os filhos tortos, privações, rebenque.

E Deus, feito um pai, assistindo à aventurança
De serem felizes como Ele suas crianças,
Com o Diabo e a pipa já não comprava briga,
Mas sim lhe dava um beijo e trajes e bebida.
                      
tradução: rodrigo madeira


THE LITTLE VAGABOND

Dear mother, dear mother, the Church is cold;
But the Alehouse is healthy, and pleasant, and warm;
Besides, I can tell where I am used well;
Such usage in heaven will never do well.

But, if in the Church they would give us some ale,
And a pleasant fire our souls to regale,
We´d sing and we´d pray all the livelong day,
Nor ever once wish from the Church to stray.

Then the parson might preach, and drink, and sing
And we´d be as happy as birds in the spring;
And modest dame Lurch, who is always at church,
Would not have bendy children, nor fasting, nor birch.

And God, like a father, rejoincing to see
His children as pleasant and happy as He,
Would have no more quarrel with the Devil or the barrel,
But kiss him, and give him both drink and apparel.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

2 crianças canônicas

                                                                                     

VELHICE

O netinho jogou os óculos 
Na latrina

(oswald de andrade)



A PUTA

Quero conhecer a puta.
A puta da cidade. A única.
A fornecedora.
Na rua de baixo
onde é proibido passar.
Onde o ar é vidro ardendo
e as labaredas torram a língua
de quem disser: Eu quero
a puta
quero a puta quero a puta.

Ela arreganha dentes largos
de longe. Na mata do cabelo
se abre toda, chupante
boca de mina amanteigada
quente. A puta quente.

É preciso crescer
esta noite a noite inteira sem parar
de crescer e querer
a puta que não sabe
o gosto do desejo do menino
o gosto menino
que nem o menino
sabe, e quer saber, querendo a puta.

(carlos drummond de andrade)    

quinta-feira, 26 de abril de 2012

literatura é infantilidade


* vídeo roubado do blog poeteias.blogspot.com.br
              


- Mas, se ser um escritor é ser culpado de alguma coisa, então para Kafka ou Baudelaire ser um escritor também é ser alguém que não é lá muito responsável. Essa era a opinião de suas famílias. Esta culpabilidade para eles é algo infantil. E você pensa que Kafka e Baudelaire sentiam-se culpados de ser infantis quando escreviam?

- Creio que isso fica muito claro, eles mesmos o dizem: eles sentiam que estavam na mesma situação de uma criança diante de seus pais. Uma criança que desobedece aos pais e que, consequentemente, tem a consciência pesada, porque pensa nos pais que tanto ama e que sempre lhe dizem o que não fazer, dizem que aquilo é mal, no sentido mais forte da palavra.  (georges bataille)

*

O trecho acima me fez lembrar a primeira vez que assumi em voz alta: sou poeta!
Meu pai, coberto de razão, disse-me o seguinte: poeta, não, você é punheteiro! Vai estudar, moleque!    

terça-feira, 24 de abril de 2012

exercícios de caligrafia

                                              
meus 8 anos
                   
mas se o vento de hoje ainda balança
o balanço enferrujado da infância
                                                                            
                                                                                                                                   
meus 10 anos
       
meu pai tá chegando em casa
judiei do gato, quebrei o armário, comprei fiado
meu pai tá chegando em casa
dormi nos livros, fugi da aula, zerei em matemática
meu pai tá chegando em casa
mijei no vaso, chutei no saco, roubei 10 mil cruzados
meu pai tá chegando em casa
sujei o pátio, menti de novo, bolinei minha prima na escada
meu pai tá chegando em casa
xinguei meu pai, cuspi no assoalho, subi no telhado
meu pai tá chegando em casa

          
meus 11 anos

punhetinha quando bate
esparrama pelo chão
menininho quando dorme
põe a mão no coração
                    
            
meus 11 e 1/5

[pelo buraco da fechadura]

as meninas ingê-
nuas se tocavam

e o rodrigo madeira também.

(elas se riam)
foi o meu primeiro libertinamento

       
meus 12 anos
       
será que Deus, acima dos pastos e pássaros,
assistia ao menino no lavabo?
           
                                                                        
meus 32 anos
 
ainda pego minha inoxidável caloicross e volto pra casa: só pra dar uns cascudos no rodrigo madeira.

*
volto a foz do iguaçu com uma ou duas palavras ingênuas e precisas: pra que o rodrigo, coitado, não fique pra sempre emudecido diante da marcelinha.

*
volto pra roubar aquele vinil  (HELP!), bem melhor que minha coleção de guarânias. foi o primeiro disco que me fez a cabeça. meu irmão, de puxa-sádico, nunca quis que eu ouvisse.
          
já era, mano veio! roubado não é achado!, desafinarei, pedalando alucinado minha bicicletinha. vou ouvir i've just seen your face até virar um besouro.

*
[hontem]

o homem de cócoras lava o rosto, se sacia – errando sozinho pela infância – nas poças de sol que as paineiras filtram.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

vai tomar no cu, alfredo!

                                         
                                         (Cinema Paradiso, giuseppe tornatore, 1988)

sábado, 21 de abril de 2012

mário quintana

       
O CIRCO, O MENINO, A VIDA

A moça do arame
equilibrando a sombrinha
era de uma beleza instantânea e fulgurante!
A moça do arame ia deslizando e despindo-se.
Lentamente.
Só pra judiar.
E eu com os olhos cada vez mais arregalados
até parecerem dois pires.
Meu tio dizia:
"Bobo!
Não sabes
que elas sempre trazem uma roupa de malha por baixo?"
(Naqueles voluptuosos tempos não havia maiôs nem biquínis...)
Sim! Mas toda a deliciante angústia dos meus olhos virgens
segredava-me
sempre:
"Quem sabe?..."

Eu já tinha oito anos e sabia esperar.

Agora não sei esperar mais nada
desta nem da outra vida.
No entanto
o menino
(que não sei como insiste em não morrer em mim)
ainda e sempre
apesar de tudo
apesar de todas as desesperanças,
o menino
às vezes
segreda-me baixinho:
"Titio, quem sabe?..."

Ah, meu Deus, essas crianças!
               
             
                  MÁRIO QUINTANA

quinta-feira, 19 de abril de 2012

                  
             (I Clowns, federico fellini, 1970)                                                 


MANUEL,

não só crianças, passarinhos
e andarilhos, cães vira-latas incluídos,
tem o dom de ser poesia.

(longe de mim querer ensinar 

o palhaço 
a rezar 
uma farsa de missa 
ou as crianças 
a colocar 
tachinhas
e atirar pedras 
nos sapos comer
lírios)  

se você não me disse, 
você mesmo me diria:
 os palhaços, os acrobatas,
as bailarinas também 
tem o dom de ser poesia.

tudo é riso e risco.

em minha infância
fugirei sempre com o circo
                         
                                                                 
* poema reescrito (sol sem pálpebras, 2007).
"os andarilhos, as crianças e os passarinhos têm o dom de ser poesia." (manuel de barros, memórias inventadas: a infância, 2003.)               
       
(Uma amiga me perguntou por que fico postando poemas de infância de outros autores. Ora, porque são poemas da minha infância. Porque minha infância é maior que minha poesia, porque minha infância é maior que minha vida. Minha infância é também uma invenção dos outros.)