sexta-feira, 26 de outubro de 2012

pintor e poeta (iberê camargo)

   
NATUREZA-MORTA

             
Sol do meio-dia. Um pálido clarão sobre o muro defronte à janela. O peitoril se acende. Uma abrasada lâmina de luz penetra dentro da sala: corta a mesa, transpassa e recorta os objetos que lhe estão em cima. Eles se acendem: os caramujos gritam seus brancos. Manchas negras lhes escapam debaixo, circundando-os. O vermelho torna-se púrpura; o amarelo, laranja: o arco-íris está sobre a mesa. As garrafas irisadas se tornam irreais.
Não há mais peso nem dimensão, são apenas cores que flutuam no ar. O sol sobe pela parede, ilumina o espelho: enraivecido, foge dele. Desce. Caminha sobre o chão, reto. Não pode parar. Esgrima contra as coisas. Jamais incide no mesmo traço. Não tropeça. Ele se quebra e se recompõe sobre os planos num instante. Traça o perfil da cadeira, toca debaixo da mesa, mede-lhe a altura, desenha-lhe a planta, arrastando-a sobre o chão, a encosta à parede.
Enquanto circula faz desenhos geométricos impalpáveis, figuras de luz, espectros que imediatamente apaga. Depois vai embora. Não deixa vestígio de seu trajeto. Tudo é sanado. Tudo cala.          


                                                                                                           Rio de Janeiro, 1958


[CAMARGO, Iberê. Gaveta dos Guardados. Org. Augusto Massi. São Paulo: Cosac Naify, 2009]

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