terça-feira, 19 de junho de 2012

cláudio bettega

   
             
       
sem bichinho de maçã...
     
quero
respirar o ar
para poder
amar,
quero ver o
mar
em ondas de
mistério,
quero defender
a vida em
forte ministério,
quero ver brotar
parte do meu eu
dentro de um fruta
que verme nenhum
comeu.

              
          CLÁUDIO BETTEGA (1971-2010)

domingo, 17 de junho de 2012

e.e. cummings (IV)

 
morrer é bom)mas a Morte

       
morrer é bom)mas a Morte
?ah
meu bem
eu

não curtiria
a Morte se a Morte
fosse
boa:pois

quando(em vez de parar pra pensar)você

começa a senti-la,morrer
é milagroso
por quê?por

que morrer é
perfeitamente natural;perfeitamente
pra dizer
o mínimo vívido(mas

a Morte

é rigorosamente
científica
& artificial &

má & jurídica)
 
nós vos agradecemos
deus
todo-poderoso por morrermos

(perdoai-nos,ó vida!o pecado da Morte
                               
                             
tradução: r.m.
                    
                           
dying is fine)but Death
            
dying is fine)but Death
   
?o
baby
i
   
wouldn’t like
Death if Death
were
good:for
     
when(instead of stopping to think)you
   
begin to feel of it,dying
‘s miraculous
why?be
   
cause dying is
   
perfectly natural;perfectly
putting
it mildly lively(but
           
Death
       
is strictly
scientific
& artificial &
     
evil & legal)
                       
we thank thee
god
almighty for dying
                         
(forgive us,o life!the sin of Death

quinta-feira, 14 de junho de 2012

                                                           


Foto de 1920. Ignacio Mejías diante do corpo de seu cunhado e também toureiro, o lendário Joselito. Mejías morreu, também durante uma corrida, em 1934.
(blogs periodistadigital)

federico garcía lorca





                         
A CORRIDA E A MORTE

         
Às cinco horas da tarde.
Eram as cinco em ponto da tarde.
Um menino trouxe um lençol branco
às cinco horas da tarde.
Um cesto de cal já preparado
às cinco horas da tarde
O resto era morte e apenas morte
às cinco horas da tarde

O vento levou os algodões
às cinco horas da tarde
O óxido lavrou cristal e níquel
às cinco horas da tarde
Já lutam a pomba e leopardo
às cinco horas da tarde
E a coxa por um chifre destruída
às cinco horas da tarde
Começaram os sons do bordão
às cinco horas da tarde
Os sinos de arsênico e fumaça
às cinco horas da tarde
Nas esquinas grupos de silêncio
às cinco horas da tarde.
E o touro, só coração pra cima!
às cinco horas da tarde.
Quando o suor de neve foi chegando
às cinco horas da tarde,
e toda a arena cobriu-se de iodo
às cinco horas da tarde,
a morte pôs ovos na ferida
às cinco horas da tarde.
Às cinco horas da tarde.
Às cinco em ponto da tarde

Um esquife com rodas é a cama
às cinco horas da tarde
Aos seus ouvidos ossos e flautas
às cinco horas da tarde
Já mugia o touro a sua frente
às cinco horas da tarde
De agonia se irisava o quarto
às cinco horas da tarde
Já se vê no horizonte a gangrena
às cinco horas da tarde
Trompa de lírio em virilhas verdes
às cinco horas da tarde
Feito sóis queimavam as feridas
às cinco horas da tarde,
e a multidão quebrava as janelas
às cinco horas da tarde
Às cinco horas da tarde.
Ah, terríveis cinco horas da tarde.
Eram cinco em todos os relógios!
Eram as cinco em sombra da tarde!

        
tradução: rodrigo madeira
                  
* primeiro dos quatro poemas que compõem a elegia Llanto por Ignacio Sanchéz Mejías
 

terça-feira, 12 de junho de 2012

a morte

     
5.

todos presentes,
o corpo presente:
tudo é ausência.
tudo o que vejo:

o corpo (o homem que havia nele),

arrebentadas
                    as cordas
quando ainda
tentava afinar-se,
infinitamente

despreparado,

que diante da morte
somos todos
recém-nascidos.


6.

estacado
vez de vez
em estado de pedra

(o corpo
           é quando a pedra
pesa o mesmo
           que um homem),

numa mineralogia
sem alquimias
ou metafísicas.

não o que o corpo minera
na saudade,
não o que deita de ervas
entre nossos músculos,
não o que é fruto no chão,
inchaço de dúvidas,
não o que salga de esperas
vãs em cais ou escadas.

o corpo,
somente
o corpo,

monumento
ao perplexo

(quase sem rosto,
que o morto,
máscara
mortuária de si
mesmo,
perdeu seus traços).

o que vejo,
além do que lembro,
está arruinado,
vertido (intraduzível),
estragando
                  em paz
a pedra orgânica,

contido
na rigidez
e no esgarçamento:

apenas
                  [corpo...]

       
* dois últimos trechos do poema "a morte" (pássaro ruim, 2009)

sexta-feira, 8 de junho de 2012

e.e. cummings (III)

                                                     
NINGUÉM PERDE SEMPRE

     
tive um tio chamado Sol
que era um fracasso completo e
quase todo mundo comentava que ele deveria
ter partido para o vaudeville talvez pois meu Tio Sol podia
cantar McCann He Was A Diver na noite de natal como o Diabo o
que pode ou não explicar o fato de meu Tio

Sol haver se metido na possivelmente mais imperdoável
de todas para usar uma frase pomposa
extravagâncias que é ou para aprender
a fazer criações e cultivos e seja
desnecessariamente acrescentado

a fazenda de meu Tio Sol
fracassou porque as galinhas
comeram as verduras então
meu Tio Sol teve uma
fazenda de galinhas até que
os gambás comessem as galinhas quando

meu Tio Sol
teve uma fazenda de gambás mas
os gambás pegaram gripe e
morreram então
meu Tio Sol imitou os
gambás de uma sutil maneira

ou porque se afogou na cisterna
mas alguém que havia dado ao meu Tio Sol uma Vitrola
Victor e discos enquanto ele era vivo deu-lhe de presente
à auspiciosa ocasião de seu falecimento um
delicioso para não dizer esplêndido funeral com
meninos grandes de luvas negras e flores e tudo mais e

eu lembro que todos choramos como o Missouri
quando o caixão de meu Tio Sol súbito se moveu pois
alguém apertou um botão
(e para baixo se foi
meu tio
Sol

e começou uma fazenda de vermes)

       
tradução: rodrigo madeira 
           
poema no original

quarta-feira, 6 de junho de 2012

nelson ascher

    
ELEGIAZINHA

             
              i. m. nikita (gata da inês)


Gatos não morrem de verdade:
eles apenas se reintegram
no ronronar da eternidade.

Gatos jamais morrem de fato:
suas almas saem de fininho
atrás de alguma alma de rato.

Gatos não morrem: sua fictícia
morte não passa de uma forma
mais refinada de preguiça.

Gatos não morrem: rumo a um nível
mais alto é que eles, galho a galho,
sobem numa árvore invisível.

Gatos não morrem: mais preciso
– se somem  é dizer que foram
rasgar sofás no paraíso

e dormirão lá, depois do ônus
de sete bem vividas vidas,
seus sete merecidos sonos.

                 
                   NELSON ASCHER

   
cat and bird (1928), paul klee  
Paul Klee. Cat and Bird. 1928

segunda-feira, 4 de junho de 2012

age de carvalho

                       
A CADELA

   
Caminhava grave pela casa
            a cadela.
A cabeça quieta era sua altivez
quadrúpede no centro da cozinha.
            Caminhava. Os olhos, as costelas,
            o mar de ossos, o coração
pardo e lento  caminhava.

A manhã debruçava-se pela janela: cristais no pó,
o púcaro da china, horas de louça
batendo nas palavras na sala da casa.
           A cadela caminhava, dura,
           secular.
(Domingo dormia
prolongado como um funcionário feriado).

Vivera demais. Descansava à sombra,
perto do quarador.
            Sonhava farta, invisível,
            a cadela azul,
            nua
            (o sexo velho e molhado,
            um caranguejo arcaico sob o rabo).

Dormia, vazia.

Outubro doía longe, na Ásia,
quando a Fuluca anunciou: "A Catucha morreu".

                             
                             AGE DE CARVALHO

sexta-feira, 1 de junho de 2012

alexandre frança

                                               
MEU AMIGO DOENTE,
quem poderá saber que você
está assim?
e quem vai ouvi-lo quando você
não conseguir dormir?
e que culpa as pessoas têm
de tudo isto?
estarei ao seu lado, amigo.
eu, um pedaço de sombra do seu passado.
quem dita as regras da amizade?
meu amigo doente, meu amigo,
você gostará de mim
mesmo que eu não morra contigo?
     
                             
                  ALEXANDRE FRANÇA
 

quarta-feira, 30 de maio de 2012

terça-feira, 29 de maio de 2012

paul celan (II) / trad. claudia cavalcanti

       
SALMO        

Ninguém nos molda de novo com terra e barro,
ninguém evoca o nosso pó.
Ninguém.

Louvado sejas, Ninguém.
Por ti queremos
florescer.
Ao teu
encontro.

Um nada
éramos nós, somos, continuaremos
sendo, florescendo:
a rosa-do-nada, a
rosa-de-ninguém.

Com
o estilete claralma,
o estame alto-céu,
a coroa rubra
da palavra púrpura, que cantamos
sobre, oh, sobre
o espinho.

tradução: claudia cavalcanti



PSALM

Niemand knetet uns wieder aus Erde und Lehm,
niemand bespricht unsern Staub.
Niemand.

Gelobt seist du, Niemand.
Dir zulieb wollen
wir blühn.
Dir
entgegen.

Ein Nichts
waren wir, sind wir, werden
wir bleiben, blühend:
die Nichts-, die
Niemandsrose.

Mit
dem Griffel seelenhell,
dem Staubfaden himmelswüst,
der Krone rot
vom Purpurwort, das wir sangen
über, o über
dem Dorn.

sábado, 26 de maio de 2012

eliseo diego

       
* poema surrupiado (no original) de http://daniellagrego.blogspot.com.br/



TESTAMENTO

Havendo chegado ao tempo em que
a penumbra já não me consola
e me apequenam os presságios pequenos;

havendo chegado a este tempo;

e como a borra do café
súbito me abre agora
suas redondas bocas amargas;

havendo chegado a este tempo;

e já perdida toda esperança de
algum merecido ascenso, de
ver o sereno manar da sombra;

e eu sem possuir senão o tempo;

sem possuir mais, enfim,
que minha memória das noites e
sua vibrante delicadeza enorme;

sem possuir mais
entre o céu e a terra que
minha memória, que este tempo;

decido fazer meu testamento.

É este:
deixo-lhes 

o tempo, todo o tempo.

     
tradução: rodrigo madeira
         

sexta-feira, 25 de maio de 2012

                 
Caminhamos entre a infância (a eternidade) e a morte (a morte).  
        

quinta-feira, 24 de maio de 2012

vida

              
quando a morte abriu a porta da garagem,
anne, usando o velho casaco,
acelerou.
         

quarta-feira, 23 de maio de 2012

segunda-feira, 21 de maio de 2012

anne sexton

                                   
CORAGEM

É nas pequenas coisas que o vemos.
O primeiro passo da criança,
tão incrível como um terremoto.
A primeira vez que você andou de bicicleta,
desequilibrando-se pela calçada.
A primeira surra, quando seu coração
saiu sozinho em viagem.
Quando o chamaram de bebê chorão
ou pobre ou gordo ou maluco,
e o tornaram um completo estranho,
você bebeu aquele ácido
e o ocultou.

Mais tarde,
se você enfrentou a morte das balas e bombas,
não o fez com um estandarte,
mas apenas com um chapéu para
cobrir seu coração.
Você não afagou sua fraqueza
embora ela estivesse ali.
Sua coragem era um carvão
que você continuou engolindo.
Se seu camarada o salvou
e morreu fazendo-o,
então aquela coragem não era coragem,
mas amor; amor tão simples como espuma de barbear.

Mais tarde,
se suportou um grande desespero,
você o fez sozinho,
recebendo uma transfusão do fogo,
raspando as crostas de seu coração,
e então o arrancando feito uma meia.
Depois, meu irmão, você pulverizou sua pena,
fez-lhe uma massagem nas costas,
então a cobriu com uma manta
e, após haver dormido um pouco,
ela acordou para as asas das rosas
transformada.

Mais tarde,
quando tiver de encarar a velhice e a natural conclusão,
sua coragem ainda se mostrará nas pequenas coisas,
cada primavera será uma espada que você afiará,
aqueles que você ama viverão em febres de amor
e você barganhará com o calendário
e no último instante,
quando a morte abrir a porta dos fundos,
você vai calçar suas pantufas
e sair.

tradução: rodrigo madeira

poema em inglês

sexta-feira, 18 de maio de 2012

carlito azevedo

                                                         












                   
                 
AO RÉS DO CHÃO


I

Um menino passou na ventania,
um momento passou de epifanias.

É a memória que quer, com seus acervos,
expor-se em luminosos néon-nervos?

É, doendo, o tempo, essa doença
da infância, a gerar velhos de nascença?

É que tudo, se passa, vira nada?
mesmo que anele ainda a alugada

e sexy roupa fátua do poema
(seu rol de rimas ricas, diadema

tremeluzente), e até as gotas finas,
que no ar denso, porém, abrem ravinas

vertiginosas e em revolução,
antes de explodirem ao rés do chão

(ciscos de água luzindo nos lancis),
relembrem, extraluzes, o céu gris?


II

A trama era tão simples, sob um céu
tão simples, sem visões e sem um véu

sobre os olhos... Num poderoso instante
um ponto se congela e, circundante,

tudo passa a fluir lento, arrastado,
e à volta desse círculo um mais largo

se abre onde prossegue normalmente
a vida e seu caudal; mais abrangente

há outro onde tudo é tão veloz
que nem o percebemos. Onde a foz

e onde a nascente é algo indecidível:
se tudo nasce quieto e até um nível

vertiginoso vai-se acelerando,
ou se, ao contrário, é justamente quando

chega ao seu fim que o fluxo se detém,
nascido acelerado e por ninguém?


III

A ideia é não ceder à tentação
de escrever o poema desse não-

lugar, desse círculo congelado
sem vasos comunicantes, fechado

em si, em sua pose, sua espera,
a ideia é alcançar a outra esfera,

não aquela onde tudo flui tão lento,
nem a outra, comum no movimento,

mas a última, a roda da vertigem
(esteja ela no fim ou na origem),

a ideia é pôr as duas mãos no centro
nervoso do delírio (aquele vento

na praça), para que a palavra ativa
congele a vida, como sói, mas viva

mesmo ferida da paralisia,
fluxo paralisado, a poesia.


IV

Quando a chuva passou (quando assentou-se
a ideia do dilúvio) e o que ela trouxe,

a memória encolheu-se como poça
de água limpa que em si mesma se empoça

e deixa de existir, sutil velame
na densa luz que se evapora à lâmina

d'água. Assentou-se o dilúvio, o presente
investiu todo espaço lentamente:

cada curva do espaço, cada canto
de curva, cada praia de amianto.

Assentou-se o dilúvio. Sob o acosso
da quietude, que é toda um alvoroço

(tal como é lisa a pele onde se roça
a superfície áspera e lenhosa

do gozo, que lacera o tempo), a hora
retomou seu fiapo de memória.

                                             
                          CARLITO AZEVEDO

terça-feira, 15 de maio de 2012

fabrício carpinejar

     
O livro é de 2045, escrito aos 72 anos.
Como posso ter morrido antes, decidi antecipar a velhice. 
(carpinejar)

*

DÉCIMA ELEGIA

Só na velhice o vento não ressuscita.
A água dos olhos entra na surdez da neve
e escuta a oração do estômago, dos rins, do pulmão.

O sono desce com a marcha dos ratos no assoalho.
Tudo foi julgado e devemos durar nas escolhas.

Só na velhice os grilos denunciam o meio-dia.
O exílio é na carne.

Esmorece o esforço de conciliar a verdade
com a realidade.
A neblina nos enterra vivos.

(...)

Só na velhice a forma está na força do sopro.
Respeito Lázaro, que a custo de um milagre
faleceu duas vezes.

O medo é de dormir na luz.
Lamento ter sido indiscreto
com minha dor e discreto com minha alegria.

Só na velhice a mesa fica repleta de ausências.
Chego ao fim, uma corda que aprende seu limite
após arrebentar-se em música.
Creio na cerração das manhãs.
Conforto-me em ser apenas homem.

Envelheci,
tenho muita infância pela frente.

                       
                         FABRÍCIO CARPINEJAR               

domingo, 13 de maio de 2012

t.s. eliot/ trad. rodolfo jaruga

               
* surrupiado do blog pó&teias.
para ler o poema na íntegra clique aqui.

               
       
GERONTION

Eis-me aqui, um velho em mês de seca
a quem um jovem lê, enquanto espera a chuva.
Jamais estive entre os umbrais ardentes,
nem combati sob a morna chuva,
nem afundei os meus joelhos
no sal do lodo, brandindo um sabre,
aferroado por mosquitos, combatido.
A minha casa é casa derruída.
E o judeu se achega ao parapeito da janela,
o proprietário,
parido num café qualquer lá de Antuérpia,
recheado de pústulas em Bruxelas,
retalhado e descascado em Londres.
O bode tosse à noite, acima, nas campinas;
rochas, musgos, flor-da-pedra, ferro, bostas.
A mulher cuida da cozinha, faz chá,
espirra de noitinha, tateando a goteira lamuriante.
Eu, um velho,
uma cabeça tola em lugar nenhum.
(...)

tradução: rodolfo jaruga



arte de alberto giacometti

quinta-feira, 10 de maio de 2012

a 4 patas (II)




              
para

crianças em extinção
& adultos bestas quadradas

  
             
Centopeia

A centopeia, depois de veia,
ficou coroca:

resolveu jogar as pernas fora
e virar uma minhoca.
       
***

Tráfego aéreo

A periquita esbravejava
de ave-autoridade pra ave-avoada:

– Vinha vindo na contramão...
Nem mais um piu, seu sanhaço!
Só mais uma infração
e perde o brevê de pássaro!

***

O cão

A cachorra falou pro cão:
– Uau-au, que gatão!!

E o cachorro indignado,
sem entender a azaração,
girou atrás do próprio rabo
pra dar ao gato uma lição.
       
***

Vaca

A vaca leiteira pensa
que é vegetariana...
Mal sabe a boboca
que ao abocanhar tanta grama
engole também
formiguinhas e minhocas.  
   
***

Joaninha

João era uma joaninha
que não queria ser João.
Ganhou então um belo dia
(Dia da Mãe Natureza)
as tão sonhadas pintinhas
na mesa de operação.
   
***

Peixes mortos

Perguntou um peixe morto
para outro peixe morto,
com olhos esbugalhados
de peixe e espanto:

– Como é que pode,
lavados de sal e água,
de correntes e ondas,
federmos tanto?
                 
***

Estrela-do-mar

A estrela-guia do mar,
escura, sozinha, quase enterrada,

guiava ao fundo de outro céu
uma barquinha naufragada.
       
***

O homem

O homem também é um bicho,
seja ele mau, seja ele bom:

o que faz de um homem
homem dentre os bichos
é só o instinto da invenção.
                                        
                LU CAÑETE E RODRIGO MADEIRA
  

* NOTA DOS CRIANÇAS:
brevê: autorização para pilotar aviões, helicópteros, pipas e passarinhos.
vegetarianos: pessoas e animas da família dos grilos e bichos-grilos.
               
** mais 8 poeminhas do livro de pano "A 4 Patas" (ed. Língua de Trapo/ tiragem: 1 cópia)

terça-feira, 8 de maio de 2012

         
ENCHAM-SE os forros da lembrança.
existam!
traia-se à maturidade
a verdura da infância.

a menina é arrancada do chão,
antes da escola,
da igreja, do trabalho,

dos carros e contas
e casamentos,

dos tribunais, asilos
e cemitérios,

como flor guardada
dentro de um livro
– enquanto a outra cresce,
adultescendo
pouco a pouco.

nunca mais a vi.

segurei-a nas palavras o que pude,
com minhas mãos
(as mesmas quando
de manhã na lâmina)
estropiadas
de ternura
            e espanto.

não é apenas saudade,
menina,

é infânsia.             


* trecho final do poema "as crianças #2" (pássaro ruim, 2009) 

domingo, 6 de maio de 2012

arthur rimbaud/ trad. ivo barroso

                               
rimbaud aos 12 anos (1866)
             
















       
OS POETAS DE SETE ANOS    

E então a Mãe, fechando o livro do dever,
Lá se ia, satisfeita e orgulhosa, sem ver
Em seus olhos azuis sob as protuberâncias
Da face, a alma do filho entregue a repugnâncias.

O dia inteiro ele suou de obediência; que
Inteligente! E entanto, uns tiques maus, um quê
Já demonstravam nele acres hipocrisias.
No escuro corredor, junto às tapeçarias
Mofadas, estirava a língua, os punhos fundos
Nos bolsos e, fechando os olhos, via mundos.
Sobre a noite uma porta abria-se: na rampa da
Escada, a resmungar, o viam, sob a lâmpada,
Como um golfo de luz a pender do teto. E no
Verão, abatido, ar estúpido, o menino
Teimava em se trancar no frescor das latrinas
Para pensar em paz arejando as narinas.

Quando o jardim de trás de casa se lavava
Dos odores do dia e, no inverno, enluarava,
Jazendo ao pé do muro, enterrado na argila,
Para atrair visões esfregava a pupila
E ouvia o esturricar das plantas nas treliças.
Pobre! para brincar só com crianças enfermiças
De fronte nua, olhar vazio que lhes erra
Pela face, escondendo as mãos sujas de terra
Nas roupas a cheirar a fezes, todas rotas,
Falando com essa voz melosa dos idiotas!
E quando o surpreendia em práticas imundas,
A mãe se horrorizava; o menino, profundas
Carícias lhe fazia, a apaziguar-lhe a mente.
Era bom. Ela tinha o olhar azul,  que mente!

Aos sete anos compunha histórias sobre a vida
No deserto, onde esplende a Liberdade haurida,
Florestas, rios, sóis, savanas! Recorria
A revistas nas quais, encabulado, via
Italianas a rir e espanholas bonitas.
Quando vinha, olhos maus, louca, em saias de chita,
A filha - oito anos já  do operário ao lado,
A pirralha infernal, que após lhe haver pulado
Às costas, de algum canto, a sacudir as roupas,
Ele por baixo então lhe mordiscava as popas,
Porquanto ela jamais andava de calcinha.
 Cheio de pontapés e socos, ele vinha
Trazendo esse sabor de carne para o quarto.

Da viuvez infernal dos domingos já farto,
Junto à mesa de mogno, empomadado, a ter de
Recitar a bíblia encadernada em verde
E a sofrer a opressão dos sonhos maus em que arde,
Já não amava Deus; mas os homens que, à tarde,
Via, sujos, chegando em suas casas baixas,
A ler seus editais entre risos e pragas.
– Sonhava a vastidão de prados onde as vagas
De luz, perfumes bons, douradas lactescências
Se movem calmamente e evolam como essências.

E como saboreava antes de tudo arcanas
Coisas, se punha, após baixar as persianas,
A ler no quarto azul, que cheirava a mofado,
Seu romance sem cessa em sonhos meditado,
Cheio de plúmbeos céus, florestas, pantanais,
Flores de carne viva em bosques siderais,
Vertigens, comoções, derrotas, falcatruas!
 Enquanto progredia a agitação nas ruas
Embaixo,  só, deitado entre peças de tela
De lona, a pressentir intensamente a vela!

tradução: ivo barroso

quinta-feira, 3 de maio de 2012

saraghina

A primeira vez de um menino
         
                               
Às vezes tenho a impressão de que tudo, absolutamente tudo em minha infância é inventado.