
quinta-feira, 6 de junho de 2013
sexta-feira, 31 de maio de 2013
o inseto
PA-
LARVA
ferreira gullar
o soneto
fechou-se à
verborreia,
fez careta
ao discurso.
tem agora
o hemistíquio
dos insetos
dissecados.
e entreabriu-se
aos desvãos,
por mais mínimos,
como quem
se abre ao mar.
2
o inseto de
palarva e tinta,
multiplicado
por suas asas,
despega da
margem esquerda.
magro e comprido,
no afã de ser
fero e revivo,
deixará a página
(conta se morre
pouco depois?)
pelas paredes
sem transcendência.
3
antes de pousar
de uma vez por todas
o sonetinseto
revela-se inteiro
à sanha suctória
nas dermes da vida:
imos, méis e conas.
morto, vai feder
quase impercebido:
mínimos abismos.
seu registro no
papel será como
a abelha esmagada
correndo no vidro.
4
ou a fibrólise:
carne do susto,
e não do sono,
mil florações.
duma crisálida
renascerá:
sangue de tinta,
asas-sulfite,
a carnadura
de gosma e de âmbar.
para queimar
no ar e nas veias,
como um veneno,
como o verão.
(pássaro ruim, 2009)
quarta-feira, 29 de maio de 2013
arakida moritaki (1472-1549)
A flor caída retorna ao seu ramo:
uma borboleta
* traduzido do italiano (Il fiore caduto rivola a suo ramo:/una farfalla)
terça-feira, 28 de maio de 2013
murilo mendes
OSSOS DE BORBOLETA
São lindos os ossos de borboleta. Bem sei que só existem em
sentido figurado; ninharias que lhes deram o nome; um ceitil, um sexto de real
ou do irreal, um milésimo do zero. Mas acredito teimosamente na existência dos
ossos de borboleta.
Bem sei que por exemplo os ossos de siba ou sépia são
admiráveis; tanto assim que o poeta Montale batizou Ossi di seppia um dos seus
melhores livros. Bem sei que o molusco de que é tipo a Sepia officinallis
tornou-se precioso até na oficina do pintor.
Mas os ossos de borboleta! Que finura, que delicadeza! Voam.
MURILO MENDES (in: poliedro, 1965-66)
segunda-feira, 27 de maio de 2013
affonso ávila
arte de elisabete lucido
CRISÁLIDA
onde a vida viça
a um sol ou graça
e à luz se esgarça
forma ou flor
cambiante escante
fio de ar ou asa
pânica ou impávida
entanto ávida
de ritmo e instante
ao vir a ser de ser
aula de nascer
mínimo
[Pinto, Manuel da costa. Antologia comentada da poesia brasileira do século 21. São Paulo: Publifolha, 2006.]
domingo, 26 de maio de 2013
paulo neves
A BORBOLETA
Ela passeia sozinha
sem rumo e sem rumor.
Aparece, embora ela seja
no incerto modo uma essência,
pois basta uma só borboleta
para que o ar se perfume
e a gente queira adejar
com ela nas adjacências.
[Neves, Paulo. Viagem, espera: 40 poemas e outros escritos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.]
sexta-feira, 24 de maio de 2013
emily dickinson
XVIII
DUAS borboletas valsavam, meio-
dia, sobre um rio em bemol;
Correram depois firmamento afora,
Pousaram num raio de sol;
E então elas, juntas, seguiram viagem
Sobre um mar todo ensolarado, —
Embora não haja, em qualquer dos portos,
Relato de haverem chegado.
Se anunciadas pelo pássaro ao longe,
Se achadas em éter no mar,
Por uma fragata, algum mercador,
Notícia não veio me achar.
trad: r.m.
*
Part Two: Nature
XVIII
|
quarta-feira, 22 de maio de 2013
rodrigo garcia lopes
BUTTERFLY
betrayed by
a winter windthe beautiful butterfly
slowly flo-
wing like a
flying flower
fallen over
a frozen
river
(bitter is
to fly
so far
to die:
better flying forever)
*
traída pelo
vento do inverno
a bela
borboleta
lenta- (asa
flor fluindo)
mente
caindo sobre
um rio
congelado
(amargo é
voar
tão longe
pra morrer:
melhor voar pra sempre)
RODRIGO GARCIA LOPES
* aqui, a bela canção de garcia lopes (parceria com neuza pinheiro), interpretada pelo próprio poeta.
segunda-feira, 20 de maio de 2013
kobayashi issa
desenho e haiku (borboleta de jardim): kobayashi issa
borboleta de jardim -
o bebê engatinha, ela voa
engatinha atrás, ela voa
*
janela aberta -
a borboleta carrega meus olhos
através do campo
* a partir das traduções (japonês-inglês) de david g. lanoue.
sábado, 18 de maio de 2013
francis ponge/ trad. adalberto müller e carlos loria
JOAN MIRÓ, a caça à borboleta (1975)
A BORBOLETA
Quando o açúcar elaborado nos talos surge no fundo das flores, como em xícaras mal lavadas - um grande esforço se produz no solo de onde, súbito, as borboletas alçam voo.
Porém, como cada lagarta teve a cabeça ofuscada e enegrecida, e o torso adelgaçado pela verdadeira explosão de onde as asas simétricas flamejaram,
Desde então, a borboleta errática só pousa ao acaso do percurso, ou quase isso.
Fósforo voejante, sua chama não é contagiosa. E, além do mais, ela chega muito tarde e pode apenas constatar as flores desabrochadas. Não importa: comportando-se como acendedora de lâmpadas, verifica a provisão de óleo de cada uma. Pousa no cimo das flores o farrapo atrofiado que carrega, e vinga assim sua longa humilhação amorfa de lagarta ao pé dos caules.
Minúsculo veleiro dos ares maltratado pelo vento como pétala superfetatória, vagabundeia pelo jardim.
trad. adalberto müller e carlos loria
LE PAPILLON
Lorsque le sucre élaboré dans les tiges surgit au fond des fleurs, comme des tasses mal lavées, - un grand effort se produit par terre tous les Papillons tout à coup prennent leur vol.
Mais comme chaque chenille eut la tête aveuglée et laissée noire, et le torse amaigri par la véritable explosion d'où les ailes symétriques flambèrent,
Dès lors le papillon erratique ne se pose plus qu'au hasard de sa course, ou tout comme.
Allumette volante, sa flamme n'est pas contagieuse. Et d'ailleurs, il arrive trop tard et ne peut que constater les fleurs écloses. N'importe : se conduisant en lampiste, il vérifie la provision d'huile de chacune. Il pose au sommet des fleurs la guenille atrophiée qu'il emporte et venge ainsi sa longue humiliation amorphe de chenille au pied des tiges.
Minuscule voilier des airs maltraité par le vent en pétale superfétatoire, il vagabonde au jardin.
FRANCIS PONGE
FRANCIS PONGE
quinta-feira, 16 de maio de 2013
maría elena walsh/ mercedes sosa
(versãozinha super livre)
COMO UMA CIGARRA
Tantas vezes me mataram
Tantas vezes eu morri
E no entanto estou aqui
Ressuscitando
Eu dou graças à desgraça
E à mão com um punhal
Porque me matou tão mal
E segui cantando
Cantando ao sol como uma cigarra
Depois de um ano embaixo da terra
Igual ao sobrevivente
Que volta de uma guerra
Tantas vezes me apagaram
Tantas desapareci
A meu próprio enterro eu fui
Só e chorando
Fiz um longo e triste aceno
Mas depois eu me esqueci
De abandonar-me ali
E segui cantando
Cantando ao sol como uma cigarra
Depois de um ano embaixo da terra
Igual ao sobrevivente
Que volta de uma guerra
Tantas vezes te mataram
Tantas ressuscitarás
Quantas noites passarás
Desesperando
E na hora do naufrágio
Da total escuridão
Alguém te estenderá a mão
E seguirás cantando
Cantando ao sol como uma cigarra
Depois de um ano embaixo da terra
Igual ao sobrevivente
Que volta de uma guerra
maría elena walsh (1930-2011)

quarta-feira, 15 de maio de 2013
carlos drummond de andrade
ÁPORO
Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.
Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?
Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:
em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.
*
trechos da análise do poema "o áporo" por davi arrigucci júnior ("coração partido", cosac naify, 2002):
Incluído num longo livro, "A Rosa do Povo", livro longo e difícil, o breve poema pode ser destacado como um ponto alto, não só pela qualidade em si, mas pelo caráter exemplar com relação ao conjunto da obra. É que contém, em máxima condensação, características básicas da lírica reflexiva e problemas centrais que o poeta enfrenta e supera com seu trabalho. Nele se vê como Drummond faz da dificuldade arte.
[...]
Tempos atrás, Décio Pignatari se deteve a estudá-lo. Ao descrevê-lo formalmente, fez uma série de observações esclarecedoras sobre aspectos parciais, mas importantes da construção do texto, deixando claro o método "indicativo" que inventou para sua leitura.
Em primeiro lugar, registra, transcrevendo verbetes de vários dicionários, desdobramentos semânticos da palavra "áporo": um problema sem saída, com solução difícil ou impossível (sinônimo de aporia); um gênero de plantas da família das orquídeas; um inseto himenóptero, da família dos cavadores (...)
Descreve, em seguida, a metamorfose do inseto em flor-poema. O percurso sonoro-semântico desse termo e de sua ação (cavar) se imprimiria, isomorficamente, na tessitura física dos signos, ao formar-se a orquídea e o poema, através de uma cadeia de aliterações verticais, completando-se o processo com a sílaba central do "inseto semiótico" em posição de libertar-se ("forma-se").
Comenta também o tratamento parodístico de miniaturização do "inseto-soneto": decassílabos tradicionais rasgados pelo meio em pentassílabos; glosa crítica de expressões pseudo-castiças ("Eis que", "Oh razão"); enlace entre ritmo e significado, a ponto de insinuar de repente, em compasso de valsa romântica, uma inflexão irônica sobre a própria forma do soneto. Sugere ainda, sem crer que com ela se possa acrescentar algo de essencial, uma abertura à interpretação, entendendo por isso alusões referenciais a certos fatos histórico-políticos da década de 40 a que fragmentos do texto poderiam se prestar (como "país bloqueado" , relacionado com o Estado Novo, ou "presto se desata", com a libertação de Luís Carlos Prestes...).
[...]
O áporo enquanto inseto nada tem a ver, certamente, com a orquídea, mas ambos, inseto e orquídea, se referem ao mesmo significante na origem, fazendo parte de uma mesma história desenvolvida no texto. Ao conectá-los, a historieta envolve de fato uma extrema dificuldade, pois deve superar a contradição que opõe os seres nela enredados, uma vez que se trata de seres completamente distintos em sua identidade de animal e flor. No entanto, o primeiro se converte no segundo, integrando a contradição: só no mito, e na metáfora poética, que é um mito em pequeno, como afirmou Vico, se abre a possibilidade de deslizamento da identidade, à maneira de "isso é aquilo", para lembrar termos de Drummond.
[...]
O significante inicial pode ter surgido de um achado casual de leitura, mas o poema, significante final, estabelece relações necessárias entre os termos que desdobram as denotações da palavra-chave numa nova estrutura, que é a do mini-soneto, no qual esses materiais aproveitados ressurgem, também eles, completamente mudados. O que permite a metamorfose interna do inseto em flor não é, obviamente, um processo da natureza, embora se faça à sua semelhança; é resultado de um esforço humano de mudança: a do trabalho do poeta com as palavras talvez achadas no dicionário.
[...]
Essa transformação dos materiais, que dá lugar à metamorfose interna do inseto em orquídea (...) decorre em parte da mobilização dos elementos linguísticos encontrados talvez ao acaso, mas depende sobretudo do trabalho do poeta e de como funcionou sua imaginação despertada pelo achado. (...) Essa mudança realmente radical consiste na "articulação" , antes inexistente, entre termos absolutamente divergentes entre si quanto à expressão e ao significado. Eles nada parecem ter em comum, a não ser seu passado de dicionário ligado ao signo "áporo" e, no entanto, vão formar, em novo contexto, um todo completo, um enredo (também chamado "mythos", na acepção aristotélica da "Poética").
Isso quer dizer que os materiais foram trabalhados numa direção que lhes deu coerência pela forma de organização: a da narrativa, e passaram a constituir a historieta do inseto cavador que se metamorfoseia, após um caminho difícil, de súbito e contra toda lógica, numa orquídea.
*
trechos da análise do poema "o áporo" por davi arrigucci júnior ("coração partido", cosac naify, 2002):
Incluído num longo livro, "A Rosa do Povo", livro longo e difícil, o breve poema pode ser destacado como um ponto alto, não só pela qualidade em si, mas pelo caráter exemplar com relação ao conjunto da obra. É que contém, em máxima condensação, características básicas da lírica reflexiva e problemas centrais que o poeta enfrenta e supera com seu trabalho. Nele se vê como Drummond faz da dificuldade arte.
[...]
Tempos atrás, Décio Pignatari se deteve a estudá-lo. Ao descrevê-lo formalmente, fez uma série de observações esclarecedoras sobre aspectos parciais, mas importantes da construção do texto, deixando claro o método "indicativo" que inventou para sua leitura.
Em primeiro lugar, registra, transcrevendo verbetes de vários dicionários, desdobramentos semânticos da palavra "áporo": um problema sem saída, com solução difícil ou impossível (sinônimo de aporia); um gênero de plantas da família das orquídeas; um inseto himenóptero, da família dos cavadores (...)
Descreve, em seguida, a metamorfose do inseto em flor-poema. O percurso sonoro-semântico desse termo e de sua ação (cavar) se imprimiria, isomorficamente, na tessitura física dos signos, ao formar-se a orquídea e o poema, através de uma cadeia de aliterações verticais, completando-se o processo com a sílaba central do "inseto semiótico" em posição de libertar-se ("forma-se").
Comenta também o tratamento parodístico de miniaturização do "inseto-soneto": decassílabos tradicionais rasgados pelo meio em pentassílabos; glosa crítica de expressões pseudo-castiças ("Eis que", "Oh razão"); enlace entre ritmo e significado, a ponto de insinuar de repente, em compasso de valsa romântica, uma inflexão irônica sobre a própria forma do soneto. Sugere ainda, sem crer que com ela se possa acrescentar algo de essencial, uma abertura à interpretação, entendendo por isso alusões referenciais a certos fatos histórico-políticos da década de 40 a que fragmentos do texto poderiam se prestar (como "país bloqueado" , relacionado com o Estado Novo, ou "presto se desata", com a libertação de Luís Carlos Prestes...).
[...]
O áporo enquanto inseto nada tem a ver, certamente, com a orquídea, mas ambos, inseto e orquídea, se referem ao mesmo significante na origem, fazendo parte de uma mesma história desenvolvida no texto. Ao conectá-los, a historieta envolve de fato uma extrema dificuldade, pois deve superar a contradição que opõe os seres nela enredados, uma vez que se trata de seres completamente distintos em sua identidade de animal e flor. No entanto, o primeiro se converte no segundo, integrando a contradição: só no mito, e na metáfora poética, que é um mito em pequeno, como afirmou Vico, se abre a possibilidade de deslizamento da identidade, à maneira de "isso é aquilo", para lembrar termos de Drummond.
[...]
O significante inicial pode ter surgido de um achado casual de leitura, mas o poema, significante final, estabelece relações necessárias entre os termos que desdobram as denotações da palavra-chave numa nova estrutura, que é a do mini-soneto, no qual esses materiais aproveitados ressurgem, também eles, completamente mudados. O que permite a metamorfose interna do inseto em flor não é, obviamente, um processo da natureza, embora se faça à sua semelhança; é resultado de um esforço humano de mudança: a do trabalho do poeta com as palavras talvez achadas no dicionário.
[...]
Essa transformação dos materiais, que dá lugar à metamorfose interna do inseto em orquídea (...) decorre em parte da mobilização dos elementos linguísticos encontrados talvez ao acaso, mas depende sobretudo do trabalho do poeta e de como funcionou sua imaginação despertada pelo achado. (...) Essa mudança realmente radical consiste na "articulação" , antes inexistente, entre termos absolutamente divergentes entre si quanto à expressão e ao significado. Eles nada parecem ter em comum, a não ser seu passado de dicionário ligado ao signo "áporo" e, no entanto, vão formar, em novo contexto, um todo completo, um enredo (também chamado "mythos", na acepção aristotélica da "Poética").
Isso quer dizer que os materiais foram trabalhados numa direção que lhes deu coerência pela forma de organização: a da narrativa, e passaram a constituir a historieta do inseto cavador que se metamorfoseia, após um caminho difícil, de súbito e contra toda lógica, numa orquídea.
sexta-feira, 10 de maio de 2013
vinicius de moraes
O MOSQUITO
Parece mentira
De tão esquisito:
Mas sobre o papel
O feio mosquito
Fez sombra de lira!
Montevidéu, 1959.
quinta-feira, 9 de maio de 2013
e.e. cummings/ trad. augusto de campos
o-h-o-t-n-a-f-g-a
que
s)e e(u olh)o
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HOTGOAFAN
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tradução: augusto de campos
r-p-o-p-h-e-s-s-a-g-r
who
a)s w(e loo)k
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PPEGORHRASS
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rea(be)rran(com)gi(e)ngly
,grasshopper;
segunda-feira, 6 de maio de 2013
epígrafe
Wolę czas owadzi od gwiezdnego.
wisława szymborska
*
Prefiro o tempo dos insetos ao das estrelas.
sexta-feira, 26 de abril de 2013
kobayashi issa
Apenas um homem
e uma mosca apenas
e uma mosca apenas
num vasto dormitório
(trad. r.m., a partir do inglês - david g. lanoue)
Ao lado de Bashô e Buson, Kobayashi Issa (1763-1827) é um dos vértices da trindade de mestres haicaístas japoneses. Os três, cada qual a sua maneira, trabalharam de modo exemplar a matéria pouca e fugidia do instantâneo e do corriqueiro. Cada qual, a partir do banal e do mínimo necessário, produziu em quase silêncio seus bonsais de enormidades.
Se Buson é conhecido como o poeta que mais e melhor apurou o rigor técnico e estilístico do haicai, e Bashô é o mais seminal e original dentre todos os poetas do Japão, Issa em nada lhes fica devendo em termos de relevância e autenticidade. Com sua objetividade um tanto indisciplinada e sua dicção coloquial, muito antes de quaisquer dos modernismos no Ocidente, arejou e inovou a poesia nipônica.
Se Buson é conhecido como o poeta que mais e melhor apurou o rigor técnico e estilístico do haicai, e Bashô é o mais seminal e original dentre todos os poetas do Japão, Issa em nada lhes fica devendo em termos de relevância e autenticidade. Com sua objetividade um tanto indisciplinada e sua dicção coloquial, muito antes de quaisquer dos modernismos no Ocidente, arejou e inovou a poesia nipônica.
Sua vida e obra são ao mesmo tempo um infindável repertório
de calamidades pessoais, por um lado, e por outro, uma expressão de humor e
delicadeza ímpares, registrados em mais de cinco mil poemas. Nascido no distrito de Nagano,
Kobayashi Issa passou por uma sequência inacreditável de infortúnios. Perdeu
sua mãe aos três anos de idade; sua madrasta o expulsou de casa com apenas
treze anos; desamparado e miserável, comeu o pão que o diabo amassou ao mudar-se para Tóquio; seus quatro filhos do primeiro casamento morreram ainda na infância (sob o impacto de uma dessas mortes, escreveu: Este mundo de orvalhos/ é só um mundo de orvalhos/ e mesmo assim), bem como a mulher, vítima dos reveses de seu último parto. Nada
disso, porém, o impediu de escrever uma obra delicada, tocante, norteada pelos princípios empáticos do zen-budismo.
Diz-se que apenas aos 25 anos Kobayashi Nobuyuki teria arriscado seus
primeiros versos, e suas viagens pelo interior do Japão certamente aguçaram-lhe
a imagística e forneceram-lhe alguns de seus temas mais caros. Seu nome artístico teria exatamente aí sua origem: Issa – “xícara-de-chá” em japonês
– faria referência ao tempo de estada do poeta em cada um dos lugarejos por que passou: tempo suficiente, antes de novamente errar pelas estradas, apenas para uma xícara.
Nos olhos da libélula
refletem-se
montanhas distantes
(trad. paulo franchetti)
Em termos de deambulações ou vadiagens, Issa, até certo
ponto, se aproxima de outro grande poeta: Arthur Rimbaud. Conforme escreveu
Graham Robber, um dos mais importantes biógrafos do poeta ardenense: “Como
tantos viajantes inveterados, ele estava preso a seu ponto de partida
[Charleville] por um poderoso elástico.”
No caso de Issa, o distrito de Nagano. A comparação, no entanto, não vai
muito além disso: Rimbaud morreu jovem, “mudo” e profundamente seguro de que
tudo e todos eram desprezíveis; Issa, ao contrário, budista que era, morreu
velho e poeta: até o fim "fixou vertigens" e "anotou silêncios", transformando mesmo as maiores dores em atos – em haicais – de
alegria e louvor à vida.
Encontram-se ali, na obra de Kobayashi Issa, os consagrados
elementos da tradição haicaísta: a economia de meios, a objetividade
contemplativa, a apologia do silêncio, a reprodução ou cristalização do efêmero. Tudo com aquele estilo que, fiel na forma
e no conteúdo à transitoriedade cíclica de todas as coisas, expressa-se num “voluntário inacabamento” (Octavio Paz). Neste sentido, o haicai de fato
estabelece, em prejuízo da ação e da retórica, o primado da contemplação.
O haicai: sucinto, belo, fugaz. Como três gotas de orvalho. Três versos. Três gotas de algum surpreendente colírio num olhar já enfastiado de ver o mundo.
Se tudo isso vale também para os haikus de Kobayashi Issa, a
eles acresceram-se ainda o humor e a emoção. E uma "tristeza leve" e a "alegre melancolia", um até então inédito ardor que para muitos soou como apelação ou pieguice. Afinal, este é o autor de
versos pungentes como: Venha brincar comigo/ pardalzinho/ sem pai
nem mãe. Exatamente por isso, os ocidentais tenderiam a apreciá-lo mais do
que apreciam qualquer outro mestre da poesia japonesa. Veja o que diz o professor Paulo Franchetti, num texto com o qual topei enquanto fuçava pela internet:
“Para o leitor ocidental, Issa é talvez o mais acessível dos grandes haikaístas. É mais fácil lê-lo e gostar dele do que de Bashô ou Buson. Isso talvez se deva em parte ao humor franco e simples de boa parte de seus textos, ou à sua preferência por temas ligados à vida e comportamento de animais e insetos. A principal razão, porém, para essa acessibilidade é o fato de Issa pouco se valer do procedimento mais comum da poesia japonesa, que é a alusão a fatos, poemas e personagens das obras clássicas e nipônicas. Em sua vasta obra encontram-se, entre altos e baixos, objetividade e pieguismo, iluminação e vulgaridade, um sempre sensível calor humano, uma sempre tocante e despojada apresentação (muitas vezes cômica) da condição humana.”
“Para o leitor ocidental, Issa é talvez o mais acessível dos grandes haikaístas. É mais fácil lê-lo e gostar dele do que de Bashô ou Buson. Isso talvez se deva em parte ao humor franco e simples de boa parte de seus textos, ou à sua preferência por temas ligados à vida e comportamento de animais e insetos. A principal razão, porém, para essa acessibilidade é o fato de Issa pouco se valer do procedimento mais comum da poesia japonesa, que é a alusão a fatos, poemas e personagens das obras clássicas e nipônicas. Em sua vasta obra encontram-se, entre altos e baixos, objetividade e pieguismo, iluminação e vulgaridade, um sempre sensível calor humano, uma sempre tocante e despojada apresentação (muitas vezes cômica) da condição humana.”
E a condição humana, no fim das contas, é universal...
Embora o parecer transcrito acima seja quase que
incontrastável, ele deixa sem resposta uma óbvia pergunta: se é inteiramente verdade
o que escreve Franchetti, por que então, mais do que em qualquer outro
lugar do Ocidente, Issa é ainda mais lido, compreendido e amado em seu próprio país?
A verdade é que, exceto aos tradicionalistas, japoneses ou não, exceto àqueles poucos que ainda teimam em acusar-lhe um estilo adulterino e a suposta marca do diluidor, Kobayashi Issa, como "uma eterna mosca de verão", permanecerá voltando e tornando a pousar.
Esta noite, por exemplo, em que Nobuyuki visitou-me para uma xícara de chá.
A verdade é que, exceto aos tradicionalistas, japoneses ou não, exceto àqueles poucos que ainda teimam em acusar-lhe um estilo adulterino e a suposta marca do diluidor, Kobayashi Issa, como "uma eterna mosca de verão", permanecerá voltando e tornando a pousar.
Esta noite, por exemplo, em que Nobuyuki visitou-me para uma xícara de chá.
Agora que saí
Podeis fazer amor à vontade
Moscas da minha cabana
(trad. jorge sousa braga)
r.m.
quinta-feira, 4 de abril de 2013
haroldo de campos
mosca ouro
mosca fosca
mosca prata
mosca preta
mosca íris
mosca reles
mosca anil
mosca vil
mosca azul
mosca mosca
mosca branca
poesia pouca

o azul é pus
de barriga vazia
o verde é vivo
o verde é vírus
de barriga vazia
o amarelo é belo
o amarelo é bílis
de barriga vazia
o vermelho é fúcsia
o vermelho é fúria
de barriga vazia
a poesia é pura
a poesia é para
de barriga vazia
poesia em tempo de fome
fome em tempo de poesia
poesia em lugar do homem
pronome em lugar do nome
homem em lugar da poesia
nome em lugar do pronome
poesia de dar o nome
nomear é dar o nome
nomeio o nome
nomeio o homem
no meio a fome
nomeio a fome
* OBS: estes versos foram “degravados” de um cd de récitas concretistas. o próprio haroldo de campos os recitou assim, como se fossem – as três peças – um único poema. como os transcrevi apenas a partir da audição, é bem possível que os originais não sejam, em termos de estrofação e espacialização, exatamente como reproduzi acima.
terça-feira, 2 de abril de 2013
leopoldo maría panero/ trad. jorge melícias
XV
Eu, François Villon, aos cinquenta e um anos
gordo e corpulento, de lábios cor de cinza
e bochechas que o vinho arroxeara,
a uma corda enforcado
sei tudo acerca do pecado.
Eu, François Villon,
de uma corda pendido
balanceio-me lento, tendo sido
pior que Judas, que também morreu enforcado.
As velhas estremecem ao ouvir as minhas façanhas
pois não tive respeito pela vida humana.
Que o vento me mova, oiço já próximas as vozes
daqueles a quem mandei pentear macacos.
Esperam-me no inferno
e esfregam as mãos
porque correu ali, do Lete* ao Cócito**,
que por fim Villon tinha morrido enforcado!
E a lua aparece, e ilumina a forca
dando ao meu rosto a cor do sangue,
eu, que me fiz de mau entendedor do que fazia
até que por fim morri enforcado.
E os lobos ladram em torno do patíbulo
e, semelhantes a ratazanas, as crianças gritam:
Villon morreu enforcado!
Velhas que me insultáveis na estrada escura:
sabei que o sémen molha os meus quadris
e é fresco e saboroso o sémen do enforcado!
Que os meus dentes façam
proveito ao teu caldeirão
bruxa dos confins, tu a quem admiro
conhecedora de bruxedos, de poções e de feitiços
mais poderosos que
a fé e que os apóstolos
de quem se riu Simão, o Mago***, mais apta que eles
a conhecer a dor
deste que nem um sepulcro merece!
E que o vento, ao amanhecer, amanhã,
vaidosamente diga a rãs e a vermes
Villon tornou-se finalmente célebre
pois no fim uma forca delineia a sua figura
Villon morreu enforcado!
E que da minha mão emurchecida caia a rosa
que os meus dentes apertaram
pois ela soube os meus crimes
e foi minha confidente
e que o diga ela ao mundo, caindo ao chão
Villon morreu enforcado!
Logo virá a canalha
fossar no meu túmulo
e urinarão em cima, e certamente os amantes
farão amor sobre os meus ossos
e será o nada a minha mais simples recompensa
para que o diga,
não sei se o nada ou a rosa:
Villon morreu enforcado!
De mim saberão as crianças
de idades vindouras
como de um grande pecador
e assustadas correrão a esconder-se
debaixo dos lençóis quando as suas mães
lhes disserem: “Cuidado, vem aí.”
E essa será a fama de Villon, o Enforcado.
E será tanta a minha fama que prefiro o esquecimento
porque um dia, amanhã
desse futuro que o fedor
assemelha à memória, uma mão
deixará cair, ao ouvir o meu nome
o fruto do cu, o excremento
e a minha vida, e a minha carne, e todos os meus
escritos
serão, prometo, só para as moscas!
trad. jorge melícias
sábado, 30 de março de 2013
segunda-feira, 18 de março de 2013
antônio machado
AS MOSCAS
Vocês, moscas familiares,
onde a fome sempre pousa,
vocês, as moscas vulgares,
me evocam todas as coisas.
Oh, velhas moscas vorazes,
como abelhas em abril,
velhas moscas pertinazes
em minha calva infantil!
Moscas daquele fastio
pela sala familiar,
as claras tardes de estio
em que me pus a sonhar!
E na aborrecida escola,
ágeis moscas divertidas,
perseguidas
por amor do que decola,
– que tudo é voar –, sonoras
esbarrando nos cristais
pelos dias outonais...
Moscas de todas as horas,
de infância e adolescência,
da juventude dourada;
desta segunda inocência,
que nos leva a crer em nada,
de sempre... Moscas vulgares,
a quem, de tão familiares,
não há um digno cantor:
bem sei que vocês pousaram
sobre os jogos encantados,
o livro escolar fechado,
sobre uma carta de amor,
sobre as pálpebras rígidas
sobre as pálpebras rígidas
dos que jazem já sem vida.
Inevitáveis gulosas,
que nem lavram como abelhas,
nem são belas mariposas;
pequeninas, revoltosas,
só vocês, amigas velhas,
me evocam todas as coisas.
segunda-feira, 11 de março de 2013
pintura de uma mulher da família hofer,
autor desconhecido (1470, aproximadamente)
a retratada é uma nobre alemã do século XV.
na mão esquerda, um ramo de flor conhecida como "não-me-esqueças".
do lado oposto, aterrissada em sua touca, uma mosca que ao mesmo tempo "em silêncio grita" a sua (e a nossa) mortalidade: am not i/ a fly like thee?
essa é certamente a mais extraordinária mosca da história das artes. a mosca sem nome de um artista sem nome.
a mim, sempre me pareceu que essa mosca perturba não apenas nosso sonho de eternidade, mas o sonho de eternidade da própria arte.
sexta-feira, 8 de março de 2013
fabrício carpinejar
Tira as flores da água.
Ainda não morri.
Ainda sobrevoo
minha sombra,
essa vida insuportável de moscas.
As moscas são os anjos da miséria,
estão em toda parte,
escoltando o apodrecimento.
Deus, peço tua demissão por justa causa.
Não saberás se falo sério ou se estou rindo.
Vou indo. Na incerteza, o réu é sempre absolvido.
(fabrício carpinejar)
quarta-feira, 6 de março de 2013
guilherme gontijo flores
3
sobre o couro do búfalo
moscas pairando
somos –
no raso da razão
como
a larva da seda
jaz morta em casa
no seu próprio laço
envolta
envolta
no fio de si –
nós somos
(guilherme gontijo flores)
* terceira das quatro partes do poema "orações". do livro "brasa enganosa", prestes a ser lançado. li-o em arquivo há algumas semanas. belo livro, com momentos verdadeiramente luminosos. uma baita estreia!
segunda-feira, 4 de março de 2013
e.e.cummings (VII)
* em duas tentativas
de uma vidraça)a
de uma vidraça)a
(cai
ndogiraemtorno
de si
mesma louca)mosca(mente
de si
mesma louca)mosca(mente
que
duma só)cessa
(vez
*
pela vidraça)a
pela vidraça)a
(goteja
ndoes
pir
ala louca)mosca(mente
pir
ala louca)mosca(mente
que
era)cessa
(uma vez
trad. r.m.
off a pane)the
off a pane)the
(dropp
ingspinson
his
back mad)fly(ly
who
all at)stops
(once
off a pane)the
(dropp
ingspinson
his
back mad)fly(ly
who
all at)stops
(once
sexta-feira, 1 de março de 2013
rómulo bustos/ trad. ricardo pozzo
DA DIFICULDADE EM CAPTURAR UMA MOSCA
A dificuldade em capturar uma mosca
reside na complexa composição de seu olho
É a mais próxima ao olho de Deus
Através de uma rede de ocelos diminutos
pode observá-lo a partir de todos os ângulos
sempre disposta ao voo
Parece que o grande olho da mosca
não distingue cores
Provavelmente também não faça distinção entre você,
que tenta capturá-la, e os restos decompostos em que pousa
trad. ricardo pozzo
DE LA DIFICULTAD PARA ATRAPAR UNA MOSCA
La dificultad para atrapar una mosca
radica en la compleja composición de su ojo
Es el más parecido al ojo de Dios
A través de una red de ocelos diminutos
puede observarte desde todos los ángulos
siempre dispuesta al vuelo
Parece ser que el gran ojo de la mosca
no distingue entre los colores
Probablemente tampoco distinga entre tú
que intentas atraparla y los restos descompuestos en
que se posa
(rómulo bustos)
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