segunda-feira, 18 de março de 2013

antônio machado

              
        
AS MOSCAS
 
     
Vocês, moscas familiares,
onde a fome sempre pousa,
vocês, as moscas vulgares,
me evocam todas as coisas.

Oh, velhas moscas vorazes,
como abelhas em abril,
velhas moscas pertinazes
em minha calva infantil!

Moscas daquele fastio
pela sala familiar,
as claras tardes de estio
em que me pus a sonhar!

E na aborrecida escola,
ágeis moscas divertidas,
perseguidas
por amor do que decola,

– que tudo é voar –, sonoras
esbarrando nos cristais
pelos dias outonais...
Moscas de todas as horas,

de infância e adolescência,
da juventude dourada;
desta segunda inocência,
que nos leva a crer em nada,

de sempre... Moscas vulgares,
a quem, de tão familiares,
não há um digno cantor:
bem sei que vocês pousaram

sobre os jogos encantados,
o livro escolar fechado,
sobre uma carta de amor,
sobre as pálpebras rígidas
dos que jazem já sem vida.

Inevitáveis gulosas,
que nem lavram como abelhas,
nem são belas mariposas;
pequeninas, revoltosas,
só vocês, amigas velhas,
me evocam todas as coisas.  
           
versión: r.m.

segunda-feira, 11 de março de 2013



pintura de uma mulher da família hofer
autor desconhecido (1470, aproximadamente)


a retratada é uma nobre alemã do século XV. 
na mão esquerda, um ramo de flor conhecida como "não-me-esqueças". 
do lado oposto, aterrissada em sua touca, uma mosca que ao mesmo tempo "em silêncio grita" a sua (e a nossa) mortalidade: am not i/ a fly like thee?

essa é certamente a mais extraordinária mosca da história das artes. a mosca sem nome de um artista sem nome. 

a mim, sempre me pareceu que essa mosca perturba não apenas nosso sonho de eternidade, mas o sonho de eternidade da própria arte.  

sexta-feira, 8 de março de 2013

fabrício carpinejar

                     
Tira as flores da água.
Ainda não morri.

Ainda sobrevoo
minha sombra,
essa vida insuportável de moscas.
As moscas são os anjos da miséria,
estão em toda parte,
escoltando o apodrecimento.

Deus, peço tua demissão por justa causa.
Não saberás se falo sério ou se estou rindo.
Vou indo. Na incerteza, o réu é sempre absolvido.

         
(fabrício carpinejar)

quarta-feira, 6 de março de 2013

guilherme gontijo flores

         
                 
3

sobre o couro do búfalo
moscas pairando
            somos –

no raso da razão
como
a larva da seda
jaz morta em casa
no seu próprio laço
envolta
            envolta
no fio de si –
nós somos


(guilherme gontijo flores) 


* terceira das quatro partes do poema "orações". do livro "brasa enganosa", prestes a ser lançado. li-o em arquivo há algumas semanas. belo livro, com momentos verdadeiramente luminosos. uma baita estreia!    

segunda-feira, 4 de março de 2013

e.e.cummings (VII)

                                
                        * em duas tentativas    
                           

de uma vidraça)a

             
de uma vidraça)a
(cai
ndogiraemtorno
de si
mesma louca)mosca(mente
que
duma só)cessa
(vez


*
                   
pela vidraça)a

                     
pela vidraça)a
(goteja
ndoes
pir
ala louca)mosca(mente
que
era)cessa
(uma vez
          
        
trad. r.m.
                 
                        
off a pane)the

                             
off a pane)the
(dropp
ingspinson
his
back mad)fly(ly
who
all at)stops
(once
             

sexta-feira, 1 de março de 2013

rómulo bustos/ trad. ricardo pozzo

                                                                                                                                                                                                 
DA DIFICULDADE EM CAPTURAR UMA MOSCA
                   

A dificuldade em capturar uma mosca
reside na complexa composição de seu olho

É a mais próxima ao olho de Deus

Através de uma rede de ocelos diminutos
pode observá-lo a partir de todos os ângulos
sempre disposta ao voo

Parece que o grande olho da mosca
não distingue cores

Provavelmente também não faça distinção entre você,
que tenta capturá-la, e os restos decompostos em que pousa


trad. ricardo pozzo
                
    
DE LA DIFICULTAD PARA ATRAPAR UNA MOSCA

      
La dificultad para atrapar una mosca
radica en la compleja composición de su ojo

Es el más parecido al ojo de Dios

A través de una red de ocelos diminutos
puede observarte desde todos los ángulos
siempre dispuesta al vuelo

Parece ser que el gran ojo de la mosca
no distingue entre los colores

Probablemente tampoco distinga entre tú
que intentas atraparla y los restos descompuestos en que se posa
               
(rómulo bustos)

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

machado de assis

              
A MOSCA AZUL

            
Era uma mosca azul, asas de ouro e granada,
            Filha da China ou do Indostão.
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada
            Em certa noite de verão.

E zumbia, e voava, e voava, e zumbia,
            Refulgindo ao clarão do sol
E da lua — melhor do que refulgiria
            Um brilhante do Grão-Mogol.

Um poleá que a viu, espantado e tristonho,
           Um poleá lhe perguntou:
— "Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,
           Dize, quem foi que te ensinou?"

Então ela, voando e revoando, disse:
           — "Eu sou a vida, eu sou a flor
Das graças, o padrão da eterna meninice,
          E mais a glória, e mais o amor".

E ele deixou-se estar a contemplá-la, mudo
          E tranqüilo, como um faquir,
Como alguém que ficou deslembrado de tudo,
          Sem comparar, nem refletir.

Entre as asas do inseto a voltear no espaço,
          Uma coisa me pareceu
Que surdia, com todo o resplendor de um paço,
          Eu vi um rosto que era o seu.

Era ele, era um rei, o rei de Cachemira,
         Que tinha sobre o colo nu
Um imenso colar de opala, e uma safira
         Tirada ao corpo de Vixnu.

Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas,
          Aos pés dele, no liso chão,
Espreguiçam sorrindo as suas graças finas,
          E todo o amor que têm lhe dão.

Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios,
          Com grandes leques de avestruz,
Refrescam-lhes de manso os aromados seios,
          Voluptuosamente nus.

Vinha a glória depois; — quatorze reis vencidos,
           E enfim as páreas triunfais
De trezentas nações, e os parabéns unidos
           Das coroas ocidentais.

Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto
           Das mulheres e dos varões,
Como em água que deixa o fundo descoberto,
           Via limpos os corações.

Então ele, estendendo a mão calosa e tosca,
           Afeita a só carpintejar,
Com um gesto pegou na fulgurante mosca,
           Curioso de a examinar.
                              
Quis vê-la, quis saber a causa do mistério.
           E, fechando-a na mão, sorriu
De contente, ao pensar que ali tinha um império,
           E para casa se partiu.

Alvoroçado chega, examina, e parece
          Que se houve nessa ocupação
Miudamente, como um homem que quisesse
          Dissecar a sua ilusão.

Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,
          Rota, baça, nojenta, vil
Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela
          Visão fantástica e sutil.

Hoje quando ele aí cai, de áloe e cardamomo
         Na cabeça, com ar taful,
Dizem que ensandeceu e que não sabe como
         Perdeu a sua mosca azul.
                         
(machado de assis)

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

parênteses (sobre os miolos moles que "recepcionaram" yoani sánchez)

   
Esquerdistas radicais  via de regra radicalmente manipuláveis  são pugilistas dignos de pena: toda vez que atacam com a Esquerda, deixam flagrantemente aberta sua Direita.
         

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

william blake

     
  

                     
A MOSCA


Pequena Mosca,
Sem ter noção,
Varreu-te a festa
A minha mão.

E não sou eu
Mosca sem nome?
Ou não és tu
também um homem?

Também eu danço
E bebo e entoo,
Até a mão cega
Varrer meu voo.

Se o pensamento
Respira e é forte
E o pensamento
Aspira à morte,

Alegre mosca
Eu venho a ser,
Se eu seguir vivo,
Ou se eu morrer.

trad. r.m. 


THE FLY


Little Fly,
Thy summer's play
My thoughtless hand
Has brushed away.

Am not I
A fly like thee?
Or art not thou
A man like me?

For I dance
And drink, and sing,
Till some blind hand
Shall brush my wing.

If thought is life
And strength and breath
And the want
Of thought is death;

Then am I
A happy fly,
If I live,
Or if I die.
                   

blake/ bagley

                                                                           
arte de blake


***

arte de aaron bagley

sábado, 16 de fevereiro de 2013

jack kerouac

                                     
                                        
No armário do banheiro
Uma mosca da temporada
Morreu de velhice
                        
trad. beto palaio


*

In my medicine cabinet
The winter fly
Has died of old age

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

                           
ó Vida, deixai-me subir, e cair, e subir novamente
aos Céus das Coisas Efêmeras
com estas asinhas de mosca!
     

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

breviário das moscas

               
monomaníacas,
lindas como os rouxinóis:

as moscas.

infatigáveis,
insuportáveis,

abertas às febres
todas, todos os modos (e cheiros, sabores)
de vida e morte.

benditas sejam
as moscas!

mais vivem do que
pousam,
mais vivem do que
voam.

a teimosia feroz, a algaravia,
as filigranas de saliva,
únicos filamentos
do brio.

voltar sempre, como
uma alma penada,
um cão com fome,

um homem,

atordoado inseto
em redor do sol.

um homem
que, afogando-se 
no ar, na baba espessa de enigmas, na
ígnea ignorância de amar,

quer porque quer

viver
por viver. 

                                     
(pássaro ruim, 2009)
* poema revisitado

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

uma oração (quase) franciscana

                 
             
IRMÃ MOSCA, depositai em minha
lírica, em minha boca, vossos
ovos (vossos ossos de
saliva)

IRMÃ MOSCA, que eles eclodam
mal e mal persistam

às alegrias
e alergias

à vontade
e à voragem

que multipliquem-me na
língua, entre as margens

monocordi-
                comovidas

                as canções de vossas e de minhas
brev
vvvvvvvvvvvvvvvvvvv
idades
                 

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

às moscas

                                               
                   
a avenida estava às moscas
numa cidade vazia.
nenhum carro circulava,
alma alguma vinha ou ia.

mesmo o sol estava às moscas,
quer raiasse ou se pusesse,
como uma poça de urina
que às moscas tanto apetece.

o mendigo estava às moscas
e da mosca se diria
que nervosa, pouso-e-voo,
os farrapos lhe cerzia.

mesmo o livro estava às moscas,
esquecido em prateleira,
como as frutas já passadas,
como um rio parado cheira.

e também a História às moscas,
sem desastre, troias, glória,
que, se um deus recordaria,
moscas não retêm memória.

poemas enfim às moscas,
prelibando o próprio Nada,
lambendo a palavra flor
na folha despetalada...

e as moscas cobriam não
o que morto era estragado;
elas não velavam mortes,
e sim um sono agitado:

poemas, História, livro,
mendigo, sol, avenida
despertaram já intranquilos,
moscas de fome renhida.

pois que um viscoso melaço
é como escorre-se o dia:
um nojo, um refestelar-se,
desperdícios, alegria.

porque assim se escorre a vida,
doce melaço de travos:
desprezivo que delícia,
raro e reles, fezes, favos.
                                   

sábado, 19 de janeiro de 2013

rancho das varejeiras

     
amor tão grande, nunca visto,
beijar sempre os lábios do lixo.
a enxaqueca canora, o vício
em restos sem qualquer espírito.
o despejado no esquecido:
xepas, trapos, cacos de vidro;
o descartado e sem amigo:
laranjas podres, corpos findos;
o desdentado e absurdo lírio
mais legumes envilecidos.

tipo assim, floreira de esquina,
desastre calmo, entardecido,
lhes oferta o monturo ainda
(que importa o minério da sílaba?)
herói, amada, estrela extinta:
sem nojo, o despojo de um livro.

suguem, moscas! ou melhor, libem
o caldo pouco da poesia.      
                                 
         
(o latim das moscas)

domingo, 30 de dezembro de 2012

      


Imitons la ténacité
De cet insecte qu'on méprise

(apollinaire)

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

                         
Então, durante o Inferno, nós também, do outro lado do arame farpado, nós também olhávamos para a neve e para Deus. É assim que Deus é. Uma forma infinita e surpreendente. Bela, indolente, imóvel, sem vontade de fazer nada. Como algumas mulheres com as quais, quando éramos meninos, só ousávamos sonhar.

[fala de um judeu polonês, sobrevivente do Holocausto, no filme Aqui é o meu lugar - 2011]  

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

As rosas

   
se abrirem as pernas-primas, primas,
será primavera.
será primavera, primas,
se abrirem as pernas.

na roça do corpo a rosa, que rosa
na roça rosa do corpo que roça
róscida rosa, silêncio e cio
na roça rosa do corpo que rosna
rosas rosa roças: rocio

rosas mucosas ventosas amorosas rosas
ó rosas leitosas no leito de abril...

e se seca a roça e tudo é escarpa
onde o duro cerne
do amor já não serve macio,
onde os seixos-sexos rolam e cedem
entre pedras, perdas e pernas
por paisagens violáceas,
outra rosa, outras rosas ainda
nascem,

se abrirem as pernas, primas, aos pares,
se abrirem as pernas aos párias,
se abrirem as pernas...

e mesmo que chegue o inverno
e tudo em torno transido em inverno
se feche em fracassos, promessas, espera
e mesmo que o inverno emende com outro
que emende com outros invernos,

se abrirem as pernas, primas,
será primavera.
será primavera, primas,
se abrirem as pernas.
                                                                           

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

I - Soneto a uma mulher desiludida

                              
EDWARD HOPPER, summer interior (1909)  


   









                                                               
Se o amor bater, bater a tua porta,
abre, abre gentilmente tuas pernas.
Quem ama assim, na cama, jamais erra,
e estás desiludida mas não morta.

Se bate quem é feio, pouco importa;
recebe qual recebe uma cadela,
declara-te no rabo, dando trela,
ao dono que da lida exausto volta.

Se o amor acaba mas a vida segue,
aos homens, tão tarados, não te negues,
àqueles que inda chovem na tua horta.

Dá, dá, dá mais do que chuchu na serra:
quem ama assim, sacana, jamais erra;
aos homens que te chegam, abre a porta.


* primeiro de 6 sonetos da seção O xifópago aconselha 
(do livro de poemas putanheiros Xifópago e libertinas - inédito). 

domingo, 9 de dezembro de 2012

2 sonetilhos

       
               
nu fechando a porta
                                   
teu corpo nu
sob a torneira
de tanto orvalho
teu corpo nu

é todo feito
de abertos lábios
navegações
em manhã clara

traduz o sol
para o alfabeto
das coisas líquidas

o mar vai sempre
arrebentar
em tuas costas

(sol sem pálpebras, 2007)


*

soneto de cabeceira
                            
aberta na cama,
você de você,
cais, ais, minha carne
aberta na cama.

você, anjo no
puteiro de meu
peito-luminoso:
peitos de néon.

rostoventredorso.
na vala onde jaz
vertida, de borco,
sábado do corpo,
                               
aprendo que a morte
também nos esquece.

(pássaro ruim, 2009)                                                           

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Cavala agalopada

                                              
                    E Ô,os pés turvos dos
                    Desejos de crina branca!                                               
                                                  
                                e.e. cummings (trad. mauricio cardozo)


Se eu seguir pelos pampas delicados,
na garupa, na nuca e nas virilhas;
e seguires nitrindo, os dois pelados
galopando sensíveis e sem cilha;
se empinares, cavala sob a lua,
ou saltares se chego-me a culina;
e se, quase indomável, tu recuas,
quase mansa, agarrada pela crina;
e o cavalo sou eu, ah! cavaleira,
se me montas, quilômetros de espasmos,
 galopamo-nos juntos, longe, ao léu,
à distância a que leve-nos o orgasmo:
novamente a cidade costumeira,
novamente este quarto de motel. 
                                

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

natureza-morta

      
                          (no gato preto)


teu beijo deve ter gosto
de ácido de bateria 
do licor das enzimas
e vaginas
dos dentes do silêncio
de vestido azul sobre a cama

teu beijo deve ter gosto
do horizonte bordado de barcas
de peixe que se bate no raso
e do fôlego das conchas

deve ter gosto
de margarida brotada na lua
de sangue na paleta da tarde
dos becos úmidos da cidade
da noite que aperta
                    entre as coxas

teu beijo deve ter gosto
de lábios só saliva
das flores negras das axilas
de lesma atravessando
                   o pátio

deve ter gosto
do amanhã, as raízes e hastes
de respiração boca a boca
dos corpos no escuro
de nuvens carregadas e mordaças

teu beijo deve ter gosto
das lâminas
do aceiro de âncoras
da gasolina do açúcar

do fruto nem nascido
(e de um fruto que existindo
já recende quase podre)
do gelo das gemas do fogo
dos lábios da ferida

teu beijo deve ter gosto
de língua
          

(sol sem pálpebras, 2007)